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É Desporto

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23 de Março, 2018

Bo Kimble. A homenagem mais comovente da March Madness

Rui Pedro Silva

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Melhor amigo Hank Gathers morreu durante um jogo umas semanas antes do torneio universitário de 1990. Nesse momento, o colega de longa data decidiu fazer-lhe uma homenagem durante a prova: no primeiro lance livre de cada jogo, ia tentar encestar o primeiro lançamento com a mão esquerda. Nunca falhou. 

 

A última queda

 

Aviso prévio: o lance está disponível no YouTube mas não o quisemos ver. A descrição surge com base nas várias descrições que fomos lendo durante a pesquisa.

 

Era um ataque rápido. O passe foi para as imediações do cesto e Hank Gathers saltou sem dificuldade para completar o alley-oop, como em tantas outras vezes durante as últimas temporadas ao serviço de Loyola Marymount.

 

Desta vez, foi diferente. Gathers olhou para o banco e sentiu-se a perder forças, soube que algo estava errado. E caiu inanimado no chão. Os médicos da equipa correram para ir buscar um desfibrilador, comprado por 5000 dólares uns meses antes, quando o jogador tinha sido diagnosticado com uma condição cardíaca após cair durante um lance livre. Depois de ser transportado numa maca, chegou a recuperar os sentidos, depois de um primeiro choque, mas apenas para voltar a ficar inconsciente.

 

Hank Gathers foi transportado para um hospital de Los Angeles e foi declarado morto pouco tempo depois. A mãe, que o acompanhou desde o pavilhão, teve um grito de enorme impotência. O irmão esmurrou uma parede do quarto. Para Brian Berger, que trabalhava numa rádio local, «foi como estar a assistir a uma tragédia grega».

 

«Quando se é um rapaz universitário, pensa-se que se é imortal. Hoje, 25 anos depois [disse em 2015] ainda tenho pesadelos com aquela noite. Nos meus sonhos, estou a implorar-lhe para ele não jogar», explicou.

 

Hank Gathers morreu por culpa de uma cardiomiopatia hipertrófica. Mesmo tendo sido diagnosticado, o jogador decidiu continuar a carreira. E, ao perceber que os beta-bloqueadores que tomava afetavam o seu desempenho, começou a reduzir a medicação. Até morrer, a 4 de março de 1990, com 23 anos.

 

Um rosto de uma dupla inesquecível

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Hank Gathers era uma das estrelas da equipa. A outra era Bo Kimble. Os dois conheciam-se desde os tempos do secundário e foram ambos recrutados por USC (University of Southern California) mas, no final da primeira temporada, a dupla técnica que os tinha convencido a ir jogar para lá foi despedida e os dois jogadores decidiram transferir-se para Loyola Marymount.

 

A saída foi polémica. Os dois tinham tomado o lado do treinador despedido e anunciado que queriam ter uma palavra a dizer na contratação do novo responsável. Pelo caminho, conversaram com Paul Westhead, treinador de Loyola Marymount, e acabaram seduzidos pelo estilo de jogo: muitos lançamentos triplos, ataques em que o objetivo era não demorar mais do que sete segundos a lançar e uma defesa com marcação individual a todo o campo.

 

O novo treinador de USC já não interessava. A dupla ignorou o debate e acabou a ver a sua bolsa revogada pela universidade. Nada disso interessava: o objetivo era claro. Gathers e Kimble não iam poder jogar em 1986/87, devido à transferência, mas já começavam a fazer contas ao futuro.

 

Loyola Marymount transformou-se na equipa mais espetacular do basquetebol universitário. As médias de pontos marcados por jogo batiam recordes atrás de recordes: 110,3 em 1988, 112,5 em 1989 e 122,4 em 1990. A 31 de janeiro de 1989, por exemplo, venceram um jogo por um inacreditável resultado de 181-150.

 

Os números da dupla também eram impressionantes. Em 1989, Hank Gathers tinha terminado a temporada com médias de 32,7 pontos e 13,7 ressaltos. Em 1990, os dois parecia ainda mais imparáveis: Bo Kimble fez 35,3 pontos e 7,7 ressaltos por jogo, Gathers juntou-se com médias de 29 pontos e 10,8 ressaltos. Num dos jogos mais memoráveis, contra LSU de Shaquille O’Neal, Gathers tinha marcado 48 pontos e registado 13 ressaltos.

 

Não parecia haver limites para os dois amigos. Sozinhos, eram grandes estrelas, juntos eram imparáveis.

 

O «dia seguinte»

 

A morte de Hank Gathers parou o torneio de divisão. A prova ficou suspensa mas Loyola Marymount assegurou um lugar no torneio nacional que tinha começo previsto para os dias seguintes. Para Paul Westhead, Bo Kimble e companhia, assegurar que a equipa honrava a memória do colega tornou-se uma prioridade. Mas não foi fácil.

 

«O meu momento mais difícil foi o primeiro treino depois da morte. Éramos os dois capitães da equipa por isso éramos sempre nós que dávamos início, liderando o grupo durante a corrida à volta do ginásio. Naquele dia, começámos a corrida e ele não estava lá. Foi a primeira vez que me apercebi, com a força de uma tonelada de tijolos, que ele tinha desaparecido e que nunca mais ia voltar», escreveu Bo Kimble recentemente, numa crónica para o The Players’ Tribune.

 

Bo Kimble continuou uma descrição vívida e cheia de emoção: «O que precisava era de ir lá para fora e chorar, deixar tudo o que estava a sentir sair. Mas não podia fazer isso. Sabia que o resto da equipa estava a alimentar-se da minha força, porque sabiam que não podiam ter dor maior do que a minha. Porque era eu quem o conhecia há mais tempo. Se eu conseguisse ser forte e manter a compostura, eles sabiam que também o conseguiriam».

 

A equipa queria jogar para homenagear Gathers mas Kimble sabia dos riscos: «Tentei desencorajá-los porque não queria que houvesse qualquer desilusão adicional se perdêssemos, como se o tivéssemos deixado ficar mal ou que não tivéssemos sido capazes de honrar a sua memória. Disse-lhes que, acontecesse o que acontecesse, nada mudaria o que sentíamos por ele».

 

Homenagem criativa

 

Pessoalmente, Bo Kimle arranjou uma maneira mais criativa de honrar a memória do seu amigo de infância. «Ele era um inacreditável ser humano e um jogador muito bom, mas era terrível na linha de lance livre. Era tão mau que tinha mudado a mão que lançava: a técnica com a direita era tão má que se sentia mais à vontade ao tentar com a esquerda», começou por recordar.

 

Foi aí que Bo Kimble decidiu dizer a toda a gente durante as entrevistas que ia honrar Hank Gathers ao lançar com a mão esquerda na primeira vez em que fosse para a linha de lance livre durante a March Madness. «Não importaria se marcava ou não. Era como ia honrar o meu companheiro, dizer-lhe que o amava e que sentia a falta dele.»

 

O primeiro jogo foi apenas 12 dias depois da morte. Quando Kimble sofreu a falta, ninguém presente no pavilhão ou a ver o jogo pela televisão desconhecia o que ia acontecer. «Senti-me sozinho. O resultado, os adeptos, o torneio, os bancos, tudo tinha desaparecido. Não era marcar que estava em causa. Era honrar o esforço que ele tinha feito para ser um melhor marcador de lances livres. Realçar o trabalho que teve e a grande pessoa que era. E foi perfeito!»

 

Loyola Marymount chegou até à Elite Eight (quartos-de-final) da prova, perdendo apenas ao quarto jogo. «Teríamos sido campeões se ele não tivesse morrido», garante Kimble, que marcou um lance livre com a mão esquerda em três dos quatro jogos. O que aconteceu no outro? Não chegou a sofrer falta com esse castigo.

 

Paul Westhead recordou o que aconteceu com um sentimento agridoce. «Para citar Charles Dickens, foi o melhor dos tempos e o pior dos tempos. É difícil separar os dois. A morte do Hank é uma das piores coisas que pode acontecer a alguém, a uma equipa, a um treinador. E ainda assim a celebração que se fez nos jogos seguintes e os resultados que se conseguiram no torneio foram do melhor. É algo que só acontece uma vez na vida. Faz-te perceber que precisas de gente à tua volta. Eles pareciam jogar de forma transcendente», disse. 

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«O homem mais forte da América», como Gathers gostava de se chamar, morreu mas manteve-se vivo na mente e no coração de todos aqueles com quem se cruzou. Não chegou a cumprir o sonho da mãe, de ser o primeiro membro da família a tirar o curso [mãe obrigou-o a esquecer a NBA e a fazer mais uma época na universidade], mas assegurou um lugar histórico.

 

Depois daquele torneio, cada um seguiu o seu caminho, olhando para trás, e sem nunca esquecer o impacto que Hank Gathers tinha tido nas suas vidas.

 

A família processou o treinador, a universidade e o cardiologista, pedindo uma indemnização de 32,5 milhões de dólares. Recebeu apenas dois.

 

Paul Westhead seguiu para a NBA e orientou os Denver Nuggets durante duas temporadas, onde tentou implementar o mesmo estilo de jogo, sem grande sucesso, e com apenas 44 vitórias em 164 jogos.

 

Bo Kimble foi a oitava escolha do draft (LA Clippers) e começou por jogar no mesmo pavilhão em que tinha estado com Hank Gathers no primeiro ano da universidade. Ainda jogou nos Knicks mas deixou a liga em 1993, numa experiência afetada pelas sucessivas lesões. Agora, é um dos fundadores de uma organização sem fins lucrativos que tem o objetivo de reduzir as mortes provocadas por problemas cardíacos.