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É Desporto

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01 de Maio, 2017

Ayrton Senna. A morte para um rapaz de oito anos

Rui Pedro Silva

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O herói de uma jovem geração despediu-se sem aviso, deixando para trás uma autêntica legião de fãs, dos mais velhos aos mais novos. Para sempre ficou a frase: «Ayrton Senna está em morte cerebral mas o coração ainda bate.»

 

Ayrton Senna era o tal

 

Quando se é novo, não há tanta capacidade para pôr as coisas em perspetiva. É tudo recente, é tudo imediato, os campeões num ano têm tudo para ser os melhores de sempre, o onze da equipa que se segue reúne os ingredientes necessários para ser o mais memorável. Para quem nasce em 1985, Hajry é jogador do Farense, não existe Benfica. Jaime Pacheco é apenas um jogador do Paços de Ferreira em final de carreira, por muito que as revistas anuais dos jornais desportivos digam que teve os seus momentos de glória no FC Porto e no Sporting.

 

Os primeiros passos da construção da memória são mais duradouros e, na Fórmula 1, Ayrton Senna era rei e senhor. O brasileiro da McLaren venceu em 1990 e novamente em 1991. Era difícil não ficar rendido às proezas do homem do capacete amarelo ao volante de um carro branco e vermelho tão fácil de distinguir.

 

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É importante fazer uma contextualização, especialmente para quem nasceu na década seguinte. Em 1991, quando Ayrton Senna dominava a Fórmula 1, só havia dois canais de televisão. Não era possível passar 12 horas de domingo a ver futebol. Em cada casa, se a televisão estivesse ligada, o mais provável era que todos estivessem sintonizados no mesmo canal.

 

E a Fórmula 1 empolgava. As largadas com tanta confusão na primeira curva, os motores barulhentos e a emoção a cada disputa de posição ou paragem nas boxes. Por isso mesmo, na manhã seguinte, além do futebol, também se discutia muito o que tinha passado na Fórmula 1. E se fora das quatro linhas havia sobretudo olhos encarnados e olhos verdes, fora das chicanes Ayrton Senna era a única preferência.

 

As primeiras memórias vão todas para Senna. Em 1991, fica a recordação de ter deixado passar o colega de equipa Gerhard Berger no Japão, numa altura em que o título já estava assegurado. Ainda por cima tinha fair-play (há uma pequena hipótese de a história não ter sido exatamente assim, mas nas memórias ingénuas de um rapaz de oito anos não se deve remexer 26 anos depois, sob o risco de ficar desiludido).

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Até as festas de aniversário ao domingo tinham os olhos de miúdos irrequietos centrados no ecrã a ver as fabulosas recuperações de Senna, sobretudo em Monte Carlo. Era impossível fugir à tendência. Ayrton Senna era um herói, um campeão, e não havia quem não gostasse dele.

 

Um vilão chamado Williams

 

O ano passou e surgiu uma Williams a revolucionar o mundo da Fórmula 1. Os aspetos técnicos passavam ao lado, mas as contas finais traziam uma triste realidade: Ayrton Senna tinha-se tornado impotente para fazer frente à velocidade de Nigel Mansell (1992) e Alain Prost (1993). Pelo meio ganhou oito corridas, mas o título nunca esteve sequer no horizonte.

 

«Se ao menos pudesse ir para a Williams…», pensava, mal sabendo que isso iria mesmo acontecer em 1994. Tinha tudo para correr bem. A Williams só tinha de manter o poder que tinha demonstrado nos anos anteriores, uma vez que da qualidade de Senna ninguém duvidava. Muito menos alguém com oito anos que ainda se lembrava dos tempos gloriosos três anos antes.

 

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A glória nunca chegou. Não só Senna não conseguia terminar uma corrida (desistiu tanto no Brasil como no Japão), como o poderio da Williams parecia estar a deslocar-se para a Benetton de Michael Schumacher, vencedor das duas primeiras corridas.

 

Até que chegou o Dia da Mãe de 1994, 1 de maio. Possivelmente por ser feriado, não havia futebol nesse dia. O Sporting tinha jogado uns dias antes, o Benfica na véspera e o FC Porto adiara o encontro tendo em vista a futura partida com os leões a meio da semana (o célebre jogo em que a equipa de Carlos Queiroz acabou reduzida a oito).

 

Não tenho a certeza como começou esse domingo. A rotina, num dia bom, era começar a manhã numa das praias do Guincho e voltar a tempo para ver um episódio de Quem Sai aos Seus, com um jovem Michael J. Fox (fácil de adorar devido à trilogia do Regresso ao Futuro) que começava por volta das 12h30. Depois, à uma, era hora de Fórmula 1. Ayrton Senna partia da pole e San Marino era uma pista rápida. A expetativa – minha, pelo menos – era alta.

 

Uma enorme dose de ingenuidade

 

O primeiro encontro com a morte, ou mesmo uma tragédia, não é fácil. Meses antes, um dos jogadores que aparecia semanalmente na televisão, Cherbakov, tinha visto a sua vida atirada para uma cadeira de rodas. E o choque tinha existido.

 

Mas com Senna foi diferente. Com o ucraniano do Sporting a notícia tinha chegado de manhã, horas depois de ter acontecido. Estava feito, acontecera de madrugada enquanto todos dormiam. Ali, através da televisão, o mundo foi acompanhando em direto uma realidade cruel.

 

Sim, Roland Ratzenberger tinha morrido dois dias antes, mas o mediatismo tinha sido muito menor. Com Senna foi tudo brutal. Segundos após o acidente, os primeiros sinais de preocupação começaram a surgir. O brasileiro mantinha-se inerte, não dava sinal de vida.

 

Já com vários paramédicos de volta do carro, ouviu-se um enorme ronronar de motor, como se um monolugar tivesse continuado sem saber. Ali, naquele momento, chegou a primeira dose de ingenuidade: «Será que lhe vai dar o carro para que possa continuar a corrida?» Idiota.

 

O momento familiar a quatro passou rapidamente a apenas dois. Mais tarde, era apenas eu que continuava a acompanhar tudo o que podia na televisão, com os pais já no quarto a dormir a sesta. Umas horas depois, o segundo canal da RTP atualizou a informação: «Ayrton Senna está em morte cerebral, mas o coração ainda bate.»

 

Lembro-me muitas vezes deste binómio. Na ingenuidade (estupidez?) de um rapaz de oito anos, pensei que a notícia não era tão trágica como se tinha chegado a temer. Levantei-me, acordei os meus pais e contei a atualização. «Rui, ele vai morrer», disseram-me. «Não, o coração ainda está a bater», retorqui.

 

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Ayrton Senna morreu. Pode ser um cliché dizer que a Fórmula 1 nunca mais foi a mesma, ou que pelo menos nunca mais se olhou para ela da mesma forma, mas é a verdade. Conseguir torcer por alguém num desporto consegue ser muito importante para manter o interesse numa modalidade e a Fórmula 1 nunca mais o teve.

 

A tradição familiar também morreu. Dos quatro, dois nunca mais viram Fórmula 1. O interesse desapareceu. No dia seguinte, na escola, um conjunto de corações destroçados perguntava-se como seria o futuro. Houve quem se tenha rendido a Schumacher, houve quem tenha tentado encontrar um substituto, vagueando entre pilotos sem nunca conseguir.

 

Ayrton Senna era Ayrton Senna. Só há um. E morreu num primeiro de maio como este há 23 anos.

 

RPS

 

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