Atlético-Oriental. Um outro dérbi de Lisboa
Uma viagem à Tapadinha é um regresso ao passado. O Atlético Clube de Portugal é um dos históricos do futebol português e nem o facto de ter nascido após a fusão de outros dois clubes com experiência de primeira divisão, o Carcavelinhos e o União de Lisboa, tira mérito ao seu palmarés.
É impossível passar uma tarde em Alcântara sem perceber as raízes do passado. Onde antes havia bancadas vazias, com degraus que manifestavam o passar dos anos, agora brilham inúmeros cartazes que apontam sobretudo para publicidade mas que têm duas glórias do passado: Germano Figueiredo, que foi campeão europeu pelo Benfica e marcou uma era do Atlético, e Henrique Ben David, um goleador prolífico, um dos melhores dos primórdios do futebol português e um dos jogadores com mais golos apontados (4) nos duelos entre o Atlético e o… Oriental.
O Clube Oriental de Lisboa nasceu em 1946, quatro anos depois da fusão de Carcavelinhos e União de Lisboa. A experiência entre a elite do futebol nacional surgiu não muitos anos depois, já depois do duelo inaugural com o Atlético na edição de 1946/1947 do Campeonato de Lisboa, com um empate a um golo.
Quatro anos depois, as duas equipas defrontaram-se no escalão principal pela primeira vez de um total de dez. Desde então, também estiveram frente a frente na Taça de Portugal, na II Liga, na II Divisão, na II Divisão B, na III Divisão, no Campeonato de Portugal. Mas nunca até hoje, 21 de novembro de 2021, se tinham defrontado nas distritais da Associação de Futebol de Lisboa propriamente falando.
Cinco anos depois de terem partilhado uma presença no segundo escalão profissional, a vida deu muitas voltas e estão agora num patamar ao qual estão pouco habituados. A SAD do Atlético foi um projeto falhado e a equipa do clube teve de recomeçar do zero. Do lado do Oriental, os orçamentos deixaram de ser compatíveis e a reformulação dos quadros competitivos na época passada fez com que caísse do Campeonato de Portugal para as distritais, do então terceiro escalão para o agora quinto escalão.
Quem foi até à Tapadinha neste domingo, não o sentiu. O estádio do Atlético não foi uma experiência nova para mim. O meu pai era do Atlético. Foi um dos primeiros clubes que me foi «apresentado» quando era novo. A tradição de ir aos estádios dos clubes de Lisboa nunca foi muito forte, mas a Tapadinha sempre foi uma agradável exceção, sobretudo na década de 90, quando a equipa criou raízes na II B.
Hoje, mais de duas décadas depois e já sem o meu pai, há sinais do passado que resistem, outros que desapareceram. Onde antigamente via jogadores veteranos como Pacheco, Chiquinho Carlos, Litos, Abel Silva, José Carlos, Filipe Ramos, Amaral e Valido ou jovens como Fajardo e Silas, está agora um grupo de desconhecidos, pelo menos para mim.
O Atlético continua a ser o clube do meu pai, mesmo que ele tenha morrido há um mês. Durante os três meses que esteve internado, o Atlético foi o maior motivo de conversa. Comigo, com os enfermeiros, com os fisioterapeutas. A culpa foi minha. Por acaso, tinha comprado uma camisola do Atlético em junho. E decidi levá-la para o hospital numa fase em que ainda falava muito pouco.
A camisola foi um estímulo necessário. «Ah, isso é o Atlético», reagiu com uma dicção ainda difícil de perceber. Uma hora mais tarde, na despedida, novamente questionado, soltou: «É o melhor clube de Portugal! Ou não é?». Não é, mas a quem interessa isso? Ao meu pai nunca interessou.
Antigo atleta do clube, no basquetebol, e também com uma passagem como dirigente na mesma secção, nunca se importou que o clube estivesse lá em baixo, a perder, ou mais perto do topo, com o sonho ao alcance. Era do Atlético porque nasceu em Alcântara, sentia a ligação ao clube e nunca teve necessidade de se dizer do Benfica ou do Sporting em troco de uma recompensa «gratuita». E, semana após semana, fui-lhe dizendo os resultados do Atlético. Sem vontade para falar do que tinha comido ou memória de coisas tão fundamentais da vida, o Atlético nunca desapareceu.
Hoje, nas bancadas, devo ter visto mais gente do que em qualquer jogo da década de 90 ou da primeira do século XXI. Aquela que sempre foi uma massa adepta envelhecida parece ter rejuvenescido. Os «velhos de Alcântara» deram lugar a gente mais jovem, talvez com menos ligações ao bairro mas com o mesmo sentimento de pertença e entrega ao Atlético.
O adversário ser o Oriental ajudou. Em dezenas de viagens à Tapadinha, nunca me lembro de ter visto tão poucos lugares para estacionar, o que também ajuda a perceber que são cada vez menos os que conseguem ir para o estádio a pé. Hoje, contudo, também havia uma grande percentagem de adeptos do Oriental, um velho rival e adversário de um dérbi lisboeta sem os mesmos pergaminhos mediáticos de um Benfica-Sporting.
O caso não era para menos. Não era apenas um Atlético-Oriental. Era um duelo entre as duas primeiras equipas da 1.ª Distrital. Duas equipas sem derrotas. Duas equipas apostadas em regressar aos campeonatos nacionais na próxima temporada. Duas equipas que carregam o peso da tradição mesmo que a experiência seja sobretudo indireta. Por outro lado, haverá coisa mais romântica do que uma paixão que nunca se viu? Que nasce através do «ouvi dizer»? Que nos é passada pelos avós, pelos pais, pelos vizinhos, mas que nunca pudemos saborear da mesma forma? É diferente. É especial.
Entrar na Tapadinha continua a ser tão especial como antes. A vista para a Tapada das Necessidades e, sobretudo, para a Ponte 25 de Abril continua a ser tão mágica como antes. Sobretudo numa tarde em que o sol prometia bater durante todo o desafio e aquecer um encontro que por si só já prometia ser quentinho.
O jogo ainda não tinha chegado ao intervalo e o diagnóstico no bar não surpreendia: «Está a ser um jogo muito fraco. Eles [Oriental] marcaram na primeira vez que lá foram». Não estava a ser, de facto, um jogo de elevado recorte técnico. E nem era pelo resultado. Caindo na espiral dos lugares-comuns do futebolês, as duas equipas pareciam não sair do período de estudo mútuo, demasiado encaixadas uma na outra e sem rasgos individuais que criassem desequilíbrios. Mas sim, o Oriental estava a vencer 1-0, para gáudio dos adeptos visitantes.
A segunda parte trouxe dois elementos: um esperado e um inesperado. Se por um lado seria expectável que o Atlético surgisse mais atrevido em busca do empate, talvez fosse difícil prever, sobretudo para quem consultou o IPMA na véspera, que grande parte do segundo tempo fosse disputado debaixo de uma chuva cada vez mais torrencial.
O jogo animou porque começou a sentir-se o desespero. Se as nuvens cerravam no céu, os espaços abriam-se no relvado. O Atlético começou a ter mais bola, o Oriental a perder mais tempo. Do topo norte, o guarda-redes da equipa em vantagem era alvo das críticas dos adeptos na segunda vez que foi ao chão. «Ó guarda-redes, se estás com cãibras come uma banana», gritaram-lhe depois da segunda vez que pediu assistência.
O Atlético forçou e teve uma grande penalidade. Desperdiçada. Defendida por Pardana. Na bancada praticamente oposta, os adeptos do Oriental, pelo menos uma centena mas muito possivelmente muito mais perto das duas (as contas oficiais indicaram que havia 842 espetadores, o que pode levar a perceber que não temos jeito para isso e que podiam ser até cerca de 300 adeptos do Oriental), faziam a festa.
Uma festa tão habitual no mundo do futebol e que nos faz pensar que só mesmo o desporto pode fazer adultos gritar com orgulho que são proprietários de matéria fecal. «E esta merda é toda nossa, ô… ô-ô-ô!», repetiam, em tom de provocação para a bancada do Atlético.
O Atlético não conseguia desatar a defesa do Oriental e o clube do leste lisboeta parecia estar a caminho da liderança isolada do campeonato. Mas nos descontos, já depois de terem sido dados oito minutos, uma jogada com perigo pela direita deu oportunidade para Ivo Palma, dentro da área, rematar com raiva para um empate que foi acompanhado de uma breve trégua na chuva. Mas poucos segundos depois, tudo na mesma.
Tudo na mesma, literalmente. O jogo voltava a estar igualado. Atlético e Oriental iam manter-se ambos na liderança no campeonato. Atlético e Oriental iam voltar a empatar a um golo, tal como no primeiro duelo no Campeonato de Lisboa, em 1946.
O dérbi pode ter rejuvenescido, os protagonistas podem ser diferentes, mas há coisas que nunca mudam. Um Atlético-Oriental será sempre especial. A história será sempre importante. E nunca voltarei a conseguir ver um jogo do Atlético sem ter o meu pai na cabeça.