António Vilarinho. Da bala na Guiné à bola em Heidelberg
Não é preciso ser um Sherlock Holmes para descobrir que a campanha paralímpica portuguesa começou em 1972, em Heidelberg. Os Jogos Olímpicos foram disputados em Munique mas a cidade não estava adaptada para atletas em cadeira de rodas e os alemães decidiram fazer um desvio.
Também não é complicado perceber que a estreia foi feita na modalidade de basquetebol de cadeira de rodas. Até os resultados podem parecer simples de encontrar: uma derrota pesada com a Bélgica (18-71), outra com a Espanha (28-58), uma com o Canadá (26-56) e, para terminar, um triunfo sobre a Suíça por 27-25.
A partir daqui, tudo se complica. Quem são os 11 jogadores que representaram Portugal em Heidelberg? O Comité Paralímpico Português não tem os dados, o Comité Olímpico Internacional muito menos. Podia parecer uma tarefa interessante de cumprir e não desiludiu. Aliás, foi uma tarefa super interessante. Literalmente.
Foi preciso recorrer a uma reportagem da revista Super Interessante de 1 de setembro de 2016 para saber algo sobre mais sobre duas das suas figuras: António Vilarinho e António Botelho. Os dois recordam-se de mais sete nomes (Fragata, Morais, Zé Luís, Hilário, Ramiro, Borges e Neves) mas nem assim são suficientes para chegar à lista final de onze.
Centremo-nos então num destes representantes: António Vilarinho. O atleta foi um dos 11 selecionados entre o Centro de Reabilitação de Alcoitão, no Estoril, e do Hospital de Sant’Ana, na Parede, com janelas para a estrada marginal e vista para o mar. Foram estas duas instituições que promoveram a estreia de Portugal, na quarta edição dos Jogos Paralímpicos, e Vilarinho estava lá, a fazer história.
O passado de António Vilarinho não era muito diferente do de outos atletas, vítimas da guerra colonial. O então atleta chegou a Alcoitão depois de ter levado um tiro na coluna na Guiné e ter sido transferido de urgência para Portugal, já paralisado nos membros inferiores.
O desporto foi uma saída natural para o início da reabilitação e, graças à iniciativa de um fisioterapeuta chamado Ângelo Lucas, «que nada percebia de basquetebol», criou-se uma equipa para competir em Heidelberg. Na então República Federal da Alemanha, os atletas portugueses encontraram um ambiente radicalmente diferente do de Portugal da ditadura, como explicou António Vilarinho à Super Interessante: «Aquilo era um mundo de deficientes. Foi uma grande experiência para todos nós. Cá era outra mentalidade. Ainda me lembro de quando vinha a casa e as pessoas iam ter comigo e só diziam coitadinho, coitadinho».
O pós-Heidelberg assinalou o início de uma longa carreira de António Vilarinho no basquetebol de cadeira de rodas, como explicou à Federação Portuguesa de Basquetebol: «Fui para a Venda Nova tirar o curso de formação de Desenhador Civil e lá consegui formar uma equipa». Depois, acabou por fazer o mesmo na Associação das Forças Armadas e na Associação Portuguesa de Deficientes de Lisboa.
Em 2017, com 70 anos e 45 anos após a estreia em Heidelberg, António Vilarinho ainda jogava basquetebol de cadeira de rodas: «Isto já é um bichinho que se entranhou em mim. Enquanto tivermos uma pestana a mexer, vamos andando». O bicho do desporto nunca foi expulso. Em 2016/17 estreou-se no andebol de cadeira de rodas e até campeonatos nacionais de ténis de mesa em cadeira de rodas e no de matraquilhos de cadeira de rodas já competiu.
Sim, uma bala na Guiné pode ter-lhe mudado a vida para sempre, mas o desporto tornou-se a sua verdadeira vida. António Vilarinho não é apenas um dos 11 pioneiros paralímpicos portugueses, é uma lenda do desporto adaptado em Portugal.