A pior viagem da minha vida
Vou confessar-vos uma coisa. Sei que os azares existem mas ainda não houve uma viagem que tenha feito que me faça sentir que não voltasse a fazer. Nunca tive voos perdidos, nunca tive acidentes, nunca foi roubado e, apesar de já ter sido obrigado a ficar de fora de um voo de regresso, a compensação financeira… fez jus ao nome e ajudou a abrir espaço para outras viagens.
(Publicado originalmente em atlas de bolso)
Por tudo isto, não tenho sequer dúvida no momento de assinalar qual foi a pior viagem da minha vida. Foi em maio de 2014, em Madrid, para ir ver um jogo de futebol: o Atlético Madrid-Málaga. A equipa estava à beira de ser campeã e, como bom sócio (na altura ainda o era), decidi comprar dois bilhetes assim que venceram em Valência, duas semanas antes.
Se o Atlético cumprisse a sua parte, vencendo os próximos dois jogos – em Getafe e em casa com o Málaga -, seria campeão. Por isso, aquele jogo de 12 de maio era uma oportunidade única. Até porque qualquer outro desfecho atrasaria a decisão para a última jornada… no Camp Nou contra o Barcelona. Era pegar ou largar, parecia.
A estratégia estava delineada. Íamos de carro no sábado à hora de almoço, passávamos a noite num hotel – no dia em que a célebre Conchita Wurst venceu o Festival da Canção -, víamos o jogo e voltávamos à noite, pela madrugada dentro.
A viagem começou a correr mal antes mesmo de nos fazermos à estrada. O Atlético perdeu em Getafe e o plano tornou-se muito menos infalível. Real Madrid e Barcelona teriam uma palavra a dizer e as contas estavam muito mais complicadas. Ainda assim, naquele dia, tudo podia acontecer: “bastava” que o Atlético vencesse o Málaga e o Barcelona não ganhasse. Ou, num cenário ainda mais surreal, que o Atlético empatasse desde que Barcelona e Real Madrid perdessem.
A história parecia jogar contra o Atlético. Não era uma questão de karma, muito menos uma tendência para tudo correr mal quando parece estar ao alcance de um pequeno esforço. É acima de tudo uma grande ironia perceber onde está construído o Vicente Calderón.
A nascente, o Paseo de los Melancólicos, paredes-meias com as portas do estádio, batizado pelos moradores por ser um local triste e desolador, capaz de incitar à depressão – isto ainda antes de haver futebol. A poente, o cemitério de San Isidro, que apesar de estar do outro lado do rio é facilmente identificável das bancadas do estádio do Atlético Madrid.
O contexto aponta para tristeza e mortes, mas domingo era um dia que se queria de festejos. O Atlético estava a um pequeno passo de um título nacional que escapava desde 1996. O apito inicial estava marcado para as sete da tarde, mas às duas já ninguém conseguia escapar ao ambiente do jogo. O trânsito adensava-se e os lugares de estacionamento eram um bem precioso, o que nos obrigava a procurar a outra margem do rio. Não havia euforia. Não parecia um jogo do título. O estádio ia estar cheio e via-se muita gente com as camisolas do clube – muitas de Simeone e da época em que conquistaram o último título – mas não havia festejos.
Afinal de contas estávamos na tal estrada da melancolia, sentados na sombra da bancada. A contagem decrescente era teimosa, mas uma banda improvisada ajudou a passar o tempo. Os acordes remetiam para alguns dos cânticos mais entoados pelos adeptos e estes respondiam à altura. Quando surgiu o hino, mesmo que com umas notas ao lado, não houve quem ficasse calado. O ritmo puxa por todos e a preparação para o refrão, em crescendo e a puxar por tons heróicos, é a apresentação perfeita para se soltar um “Atleti! Atleti! Atlético de Madrid” mesmo ali a poucos metros de nós e com um eco que aumentava a cada nova voz que se juntava.
Parecia capaz de acordar mortos e satisfazer melancólicos. Não havia euforia. Mas havia confiança, havia vontade de fazer história. Já dentro do estádio, o speaker repetia as mesmas indicações de dez em dez minutos: havia bandeiras para agitar, um minuto de silêncio para recordar as vítimas de um acidente em Badajoz e o hino para cantar, mais uma vez, mas sem a habitual música a sair dos altifalantes. E acabava com um confiante “Vamos fazer desta tarde uma tarde memorável!”
“Juega cada partido como si fuera el último”, lia-se nas bandeiras brancas e vermelhas que, quando agitadas pelas quatro bancadas do Vicente Calderón, transmitiam uma sensação de não haver uma única alma por ali que não tivesse o mesmo objetivo. Ali, naquele momento, o futebol era a duas cores: vermelho e branco. Na fila da frente, um casal de brasileiros, mais interessados em sentir os lábios um do outro do que em ver o jogo, não eram exceção, mesmo que as camisolas tivessem sido acabadas de comprar numa banca de produtos não oficiais e o patrocínio “Azerbaijan Land of Fire” se tivesse transformado em “Azerbayan Land Off Fire”.
Parecíamos estar numa página de um livro de “Onde está o Wally?”. Sim, toda a gente estava de vermelho e branco, vestida da mesma forma, mas quem é que era preciso encontrar? Quem era o Wally? Quem era o herói da vitória e do título? David Villa não foi. Mas poderia ter sido. Deu início a um festival de oportunidades falhadas – acertou na trave; mais tarde foi Willy Caballero, guarda-redes do Málaga, a negar o golo com grandes defesas para canto. Por todo o estádio havia profetas, não da desgraça, mas da euforia.
Eram os que tinham os ouvidos tapados por auscultadores que traziam as últimas novidades do Celta-Real Madrid e Elche-Barcelona. “1-0, golo do Celta”, ouviu-se, dando origem a alguns festejos contidos. Dois minutos depois, o estádio entra em erupção pela primeira vez. Num efeito visual a fazer lembrar a “hola mexicana” festeja-se como se o Elche tivesse acabado de marcar. Afinal, aquele momento provocado pela claque não era mais do que uma reação com atraso ao golo de Vigo.
O intervalo chegou com tudo a zeros: em Madrid, com domínio e melhores oportunidades, e no jogo do Barça. “Estão a dominar. O Elche está encostado lá atrás. Acho que não vão aguentar”, diz um homem idoso capaz de pensar que aquela poderia ser a última oportunidade para ver o Atlético campeão. O problema é que mesmo que o Elche aguente, é preciso marcar ali. Não está a ser fácil.
A segunda parte é imprópria para cardíacos. A expressão é muitas vezes usada com exagero mas naquele momento é isso mesmo. Os nervos aumentam – dentro e fora de campo – e as oportunidades falhadas levam ao desespero. O Elche até faz a parte dele mas quando o Málaga marca num contra-ataque o estádio cai num abismo. Por alguns segundos, não se ouve um sussurro (tirando um desabafo asneirento bem português que deixa dezenas de espanhóis a olhar para mim) até que, tímida e espontaneamente, voltam os gritos pela equipa.
O golo do empate chega apenas oito minutos depois e deixa o Vicente Calderón em estado de empolgamento máximo. Pelo meio, recordam o passado de glória e gritam por Luis Aragonés (três vezes campeão como jogador e uma como treinador), que morreu três meses antes. Logo a seguir, há novo “golo” do Elche festejado.
Por muito que se queira festejar, é impossível não procurar os tais profetas para confirmar. «Foi golo do Elche? Foi golo do Elche? Não? Não? Não!» Ainda assim, nada está perdido: “Vamos Atlético. Dez minutos e um golo para sermos campeões!” ouve-se mesmo atrás de nós.
Quando o Elche-Barcelona termina, faltam ainda dois minutos dos cinco de descontos em Madrid e está por acontecer o momento que por muito tempo continuará marcado na memória dos adeptos – Adrián recebe na esquerda, flete para o meio, procura o ângulo e... Caballero voa para mais uma defesa fantástica.
O fim do jogo é um balde de água fria depressivo. As bancadas despem-se e o Paseo de los Melancólicos enche-se de adeptos. Mas não há festa, não há troca de ideias, não há nada. Quando atravessamos a ponte, um casal mais velho assiste com pena à romaria depressiva. «É incrível. Não se ouve uma palavra. Tanta tristeza», desabafa a mulher. É o silêncio ensurdecedor de uma desilusão.
Fim da história? Antes fosse. A caminho do carro, parámos num multibanco para levantar dinheiro e… a máquina engoliu o cartão. Perdemos mais de meia hora a contactar o banco – sem grande sucesso – e o regresso a Lisboa foi sendo cada vez mais adiado. Depois, já no meio do trânsito, completamente parado, um homem num carro em sentido contrário dirige-se a nós num tom aparentemente gozão.
“Isto não fica por aqui”, diz-me, uma semana antes do tal Barcelona-Atlético e a duas semanas da final da Liga dos Campeões em Lisboa com o Real. “Não fica não, que hoje só páro em Lisboa”, digo-lhe, perspetivando os mais de 600 quilómetros de viagem com o maior melão que o desporto já me proporcionou.
Foi a pior viagem, disso não há dúvida. A única atenuante foi mesmo o Atlético ter conseguido conquistar o título em Barcelona. Ainda assim, nunca me vou esquecer daquela madrugada de introspeção.