A Malta deixou de aparecer
O Floriana foi a primeira equipa maltesa a cruzar-se no caminho de portugueses nas competições europeias, em 1970 contra o Sporting. Desde então, também houve duelos com Sliema Wanderers, Hibernians, Rabat Ajax, Hamrun Spartans e Valletta FC. O domínio lusitano foi sempre esmagador. A mudança de acessos na UEFA fez com que os clubes de Malta se perdessem pelas rondas de qualificação e deixassem de aparecer. Fomos ver um jogo do Floriana e tentar perceber um pouco melhor como é o campeonato na ilha do Mediterrâneo.
Dose dupla
*Reportagem publicada originalmente na edição 680 da revista Total do Maisfutebol
O primeiro escalão de Malta tem 12 equipas, logo cada jornada tem seis jogos. Numa ilha com apenas 316 quilómetros quadrados, as infraestruturas são limitadas e a organização do campeonato faz o possível para maximizar cada fim de semana desportivo.
É aqui que entra a dose dupla, especialmente no sábado. Tanto o estádio nacional, o Ta’Qali, como o Victor Tedesco Stadium têm encontros marcados para as 14h00 e para as 16h00, ou 16h15. À primeira vista, a separação faz-se pela importância dos jogos. O encontro entre o Sliema Wanderers e o Valletta FC, duas equipas com mais peso histórico, faz-se no Ta’Qali, minutos depois de terminar o St. Andrews-Birkirkara.
No dia seguinte, no entanto, apenas o estádio mais pequeno recebe jogos. O Pembroke-Floriana tem início marcado para as 14h00, enquanto o Hamrun Spartans-Hibernians começa às 16h15. À hora de almoço, as imediações do estádio, com lotação oficial de seis mil pessoas mas que, na verdade, não parece muito diferente de um qualquer recinto do terceiro escalão em Portugal, com apenas uma bancada pequena, estão quase desertas.
As portas ainda não abriram e a bilheteira tem um aviso para quem vai ao desconhecido. Quem é adepto do Floriana ou do Hamrun Spartans tem de comprar bilhete (sete euros para adultos, cinco para crianças) para a bancada A. A bancada C está reservada para os fãs do Pembroke e do Hibernians. Pelo meio, na B, a verdadeira bancada central, ficam os VIP e a imprensa.
Numa das esquinas do estádio, percebe-se que é dia de jogo, graças a um cartaz que indica que o preço de estacionamento num parque reservado custa um euro. Estamos num local em que a capital Valletta fica a uma distância inferior a dois quilómetros e a sede do Floriana está a pouco mais de um quilómetro.
Dinâmica de jogo
As portas do estádio abrem pouco depois das 13h00 e a dinâmica não é muito diferente de qualquer outro jogo. As equipas começam a entrar para aquecer e os adeptos mais fervorosos (podemos chamar-lhes assim?) do Floriana trazem os estandartes e as bandeiras para pendurar na parede do bar que fica localizado junto a um dos cantos.
Dois cartazes maiores têm a cara de um homem ainda jovem. “Grazie Gaucci”, pode ler-se. Quem é? É Riccardo Gaucci, proprietário do Floriana desde 2014, e que se notabilizou como jogador de futsal do Perugia, mas que também foi presidente do Catania.
No relvado sintético, o aquecimento ganha força e é impossível não tentar enquadrar a qualidade dos jogadores no contexto português. Em que nível estariam: conseguiriam não descer na I Liga? Na II Liga? Que tipo de campanha fariam no Campeonato de Portugal?
É difícil tirar conclusões. Aquele Floriana à frente dos nossos olhos é muito diferente do que defrontou o FC Porto na primeira ronda da Liga dos Campeões em 1993/1994. Na altura, Kostadinov e Semedo marcaram nas Antas na primeira mão, enquanto o segundo jogo não foi além do nulo, no Ta’Qali.
Os tempos mudaram. O Floriana pode ter sido o primeiro campeão de Malta em 1910 – como exalta o primeiro quadro com fotografias na sede do clube – e contar com um total de 25 títulos, mas já não vence desde 1993.
Do outro lado, o Pembroke tem um historial ainda mais pobre. Nunca foi campeão, nunca foi a uma competição europeia e, pior ainda, está no último lugar do campeonato.
Qualidade fraca
Não foi surpresa perceber que os primeiros minutos do encontro demonstraram que muito dificilmente uma daquelas equipas conseguiria sobreviver numa divisão profissional em Portugal. O passado de Malta nas competições europeias pode nunca ter sido promissor mas os sinais parecem cada vez piores.
A última vez que uma equipa de Malta esteve numa ronda que não fosse de qualificação? Em 2001, quando o Birkirkara eliminou o Lokomotivi Tbilisi da Geórgia para conseguir um lugar na primeira ronda da Taça UEFA.
De resto, num total de 167 eliminatórias, de qualificação ou não, os representantes de Malta só venceram 19. Contra que equipas? O Floriana contra o Ekranas, o Birkirkara contra Lokomotivi Tbilisi, Santa Coloma, Ulisses Yerevan, Siroki Brijeg e Hearts, o Hamrun Spartans contra o Ballymena United, o Hibernians contra o Fram e o Shelbourne, o Sliema Wanderers contra Rumelange, Akranes, Margveti Zestafoni e Skonto Riga e o Valletta FC contra Barry Town, Keflavik, Tre Fiori, Lusitanos, La Fiorita e B36.
Destas, apenas três não foram em pré-eliminatórias: o Sliema Wanderers contra Rumelange (1968) e Akranes (1971) e o Hamrun Spartans contra o Ballymena United (1984).
Inédita expulsão
O que faltou em qualidade no início do jogo sobrou em agressividade. Nos primeiros cinco minutos, houve dois momentos em que o encontro foi interrompido com jogadores no chão a queixarem-se de eventuais agressões. À terceira, o árbitro interveio e expulsou mesmo o ala do Floriana. Uma cotovelada, assinalou o árbitro assistente.
Na bancada C, os protestos não se fizeram esperar e houve um adepto que fez questão de se ouvir mais do que os outros, naquilo que parecia ser uma mistura de italiano com maltês, incompreensível aos nossos ouvidos.
Fosse o que fosse, foi mau. É a única justificação para um dos polícias presentes na bancada se ter dirigido ao adepto, a cerca de dez metros de nós, para o convidar a sair. Teria os seus 50 anos e não demonstrou qualquer resistência. Por momentos, duvidámos do que estaria de facto a acontecer. Será que ia ser apenas identificado? As dúvidas foram esclarecidas pouco depois quando o mesmo polícia voltou para recolher o casaco esquecido pelo adepto junto a dois colegas.
Quando o insólito parecia ter alcançado o topo, apareceu um novo patamar, com um dos amigos do adepto expulso a entrar numa acesa discussão com o polícia, que ficava com a cara cada vez mais vermelha da irritação.
Quatro linhas
Dentro de campo, o jogo acalmou. O Pembroke não parecia ser o lanterna-vermelha, mesmo descontando o facto de estar a jogar em superioridade numérica, e teve as melhores oportunidades da primeira parte. Na segunda, porém, a história foi outra.
A entrada do senegalês Amadou Samb para jogar nas costas do argentino Ignacio Varela ajudou a que o Floriana assumisse o encontro. Curiosamente, acabaram por ser os dois a marcar na vitória por 2-1 – o golo do Pembroke surgiu na derradeira jogada da partida.
Na última meia hora, a bancada foi ficando cada vez mais cheia. A claque do Hamrun Spartans (por claque, leia-se quatro ou cinco adeptos que chegaram com as suas próprias bandeiras e estandartes) foi sensivelmente para a mesma zona da claque do Floriana e começou a preparar-se para o seu jogo.
Só nessa altura os adeptos do Floriana se fizeram ouvir, num cântico que demorou pouco mais de um minuto. De resto, apenas um repetente tambor que ecoava pelo estádio a cada pancada com mais força.
Cedência de palco
Com o passar dos minutos na segunda parte, os jogadores do Hamrun Spartans e do Hibernians começaram a ocupar um pedaço de relva atrás da baliza do guarda-redes do Floriana. Iniciaram os alongamentos, fizeram os primeiros exercícios de membros superiores e inferiores e preparam-se para que nada faltasse no momento em que o árbitro apitasse para o final do jogo.
Assim que aconteceu, houve uma rápida cedência de palco. Ainda as três equipas do primeiro jogo não tinham abandonado o relvado e já as outras três o ocupavam para continuar o aquecimento. Afinal de contas, o tempo estava a correr e não havia margem para falhar: o pontapé de saída estava marcado para as 16h15.
Uma boa parte dos adeptos da bancada foi saindo, enquanto outros chegavam. É o ciclo da vida adaptado ao futebol maltês.
Um futebol que aparece cada vez menos na Europa.
RPS/SSM