A magia da Fórmula 1 em 999 corridas
O Grande Prémio do Bahrain ainda está fresco na memória de todos (não na minha, que este texto foi escrito há vários dias) mas já ninguém consegue ignorar que estamos cada vez mais próximos de um feito especial na história da Fórmula 1: a milésima corrida desde que há Mundial de Pilotos.
Eu, fã intermitente de Fórmula 1, me confesso. A última metade da carreira de Ayrton Senna marcou a minha infância. E não apenas a minha. Na escola, primeiro na pré-primária, depois na primária, éramos todos fãs do brasileiro do carro vermelho e branco com um capacete amarelo. Lembro-me de haver festas de aniversário em que ficávamos especados em frente ao televisor a ver as acrobacias e qualidades do brasileiro enquanto voava por circuitos apertados como o de Monte Carlo.
A Fórmula 1 era uma tradição secular de domingo. Todos os passos eram aguardados com enorme expectativa e um brilho nos olhos. Não me canso de dizer isto – e percebo que estou a ficar velho – mas vivia-se uma era em que as experiências eram verdadeiramente partilhadas. Naquela altura específica ainda mais. Não havia SIC. Não havia TVI. E ter a televisão ligada àquela hora, como provavelmente estaria em todas as casas, era sinónimo de ver o Grande Prémio. Servia para mim, para o meu pai, para a minha mãe, para a minha irmã. E para milhares de famílias.
Foi um hábito que ganhei muito novo, ainda antes de Ayrton Senna ter confirmado o título mundial em 1991. Mas esse dia, no Japão, marcou a minha primeira memória mais forte da Fórmula 1. A prova era transmitida em diferido, devido ao fuso horário, mas isso não importava: não tínhamos forma de saber o resultado. E quando Ayrton Senna acelerou para o título na última volta mas, mesmo assim, esperou que o colega da McLaren-Honda, Gerhard Berger, se aproximasse, o ultrapassasse e vencesse pela primeira vez na época, guardei um dos exemplos mais fortes de fair-play e companheirismo.
Sabia pouco sobre o passado. A Fórmula 1 antes dos anos 90 era pouco mais do que umas ideias sobre o que tinha acontecido a Niki Lauda – já na altura aparecia muito durante a transmissão –, sobre os cinco títulos de um argentino de nome esquisito (Fangio) ou sobre os apelidos curiosos de outros brasileiros, como Piquet e Fittipaldi.
A morte de Ayrton Senna foi um golpe duro. Por muito que se goste de uma modalidade por si só, há sempre um interesse especial quando se vibra verdadeiramente por uma equipa ou um atleta. Agora, sem Senna – especialmente pela forma como foi – tudo seria diferente.
Hoje, praticamente 25 anos depois, é difícil encontrar quem seja capaz de conquistar da mesma forma. As corridas parecem menos intensas, com menos ultrapassagens, com menos gente na luta. É mais seguro – valha-nos isso.
O acesso que temos à informação hoje permite-nos saber praticamente tudo o que há para saber. Os grandes campeões do passado, os trágicos acidentes, as enormes rivalidades, as estatísticas. Está tudo à distância de um clique, ou de uma subscrição.
Quando o Grande Prémio da China começar daqui a onze dias, haverá muito mais do que o presente em jogo. O passado vai lá estar. De Farina a Hamilton, de Prost a Leclerc, de Fangio a Pérez, de Senna a Räikkönen, de Schumacher a Vettel. Os carros podem ter mudado radicalmente de década para década mas o frio na barriga quando as luzes se apagam continuará a ser o mesmo. A incerteza da primeira curva, o aperfeiçoamento do arranque e da trajetória escolhida sobrevivem.
Foi a pensar nisto que preparámos um especial para os próximos dias, de antecipação ao milésimo Grande Prémio, com histórias diárias sobre as corridas redondas. Começamos em 1950, com a primeira, e a partir daí será sempre a acelerar até à 100, passando depois de centena em centena.
Poderão pensar que foi tudo uma enorme coincidência mas a verdade é que a Fórmula 1 tem sempre grandes histórias para contar, sobretudo quando as vemos com um distanciamento próprio. É a magia do desporto. E é a magia da Fórmula 1, em 999 corridas.