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É Desporto

É Desporto

15 de Maio, 2018

A impunidade dos adeptos (e a razão de sermos todos responsáveis)

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O desporto em Portugal bateu no fundo. Não foi hoje, não foi ontem, não foi ao longo do último ano. Temos estado a encaminhar-nos para uma espiral infernal sem nos apercebermos, e com a responsabilidade de todos. Sim, de todos. Dificilmente poderá haver alguém que, no alto da sua moralidade, possa dizer que não contribuiu para o ambiente que se vive. 

 

É certo que haverá responsabilidades muito maiores do que outras mas não há inocentes nesta história. Seja de forma ativa ou passiva, não há quem possa dizer que não contribuiu para esta escalada de palavras, atitudes e estupidificação do desporto.

 

E agora todos querem sair impunes. Não podem. A culpa está no adepto que está no poder. A culpa está no adepto que legitima quem está no poder. A culpa está no adepto que perpetua o clima negativo que se vive no desporto português. A culpa está nos adeptos, sim. Porque adeptos somos todos nós.

 

Uma das raízes do problema está em quem decide. Na impunidade dos conselhos de administração dos canais televisivos que viram nos espaços de pseudo-debate futebolístico um filão rentável para promover esta estupidificação. Na impunidade dos jornalistas em cargos de chefia que, derrotados na luta pelo bom trabalho, cedem cada vez mais ao sensacionalismo e à tendência de promover o trabalho através da polémica, muitas vezes com ligações diretas aos programas de debate ou a assessores de comunicação que não escondem estratégias.

 

E de quem lhes mostra que essa foi uma boa ideia. Eu, tu, o vizinho do lado, o colega de rede social. Quem acha divertido ter monstros alimentados pelos clubes a discutirem parvoíces. E quem parece viver neste momento única e exclusivamente para desmascarar qualquer afirmação estapafúrdia de quem brinca com o desporto para tirar proveito próprio como se fosse um farol moral, ignorando que não está a fazer mais do que alimentar um monstro que neste momento já só se mata com atitudes radicais.

 

As impunidades não ficam por aqui. A culpa também é do adepto que dirige a entidade desportiva. Que se deixa levar pelo ego, pela obsessão pelo triunfo ou pelo enriquecimento, pela batalha por um prémio em que a rivalidade deixou de ser vista como saudável e foi substituída de forma progressiva, e irreversível, por um discurso de trincheiras.

 

“Os benfiquistas” isto, “os sportinguistas” aquilo, “os portistas” aqueloutro. Obviamente que nunca são tratados por estes nomes, mas cresce este espírito fundamentalista. Como se fosse natural passar um evento desportivo, ou mesmo uma discussão “entre pares”, a insultar violentamente quem está do outro lado quando todos dependemos, enquanto famílias e sociedade, desses mesmos adeptos. Mesmo que não tenhamos uma mãe, um avô, um primo ou uma mulher de outro clube, dificilmente não terá havido um professor, um médico ou um simples condutor de autocarros.

 

Deixamo-nos levar pela ideia de que isto é mesmo uma guerra. Ficámos tão estúpidos que já nem sequer nos agrada se outra pessoa for do mesmo clube. Tem de ser do mesmo clube e pensar da mesma forma. A propagação do pensamento único foi o derradeiro passo dado pelos clubes para controlar e tomar os seus adeptos por parvos, que por sua vez acham que os outros adeptos é que são estúpidos e conseguem viver dentro de uma bolha moral que não é mais do que uma ilusão.

 

Os grupos de vândalos, legalizados ou não, são utilizados como braço-armado ou desculpabilizados do que fazem porque nunca se sabe bem quando podem ou não vir a ser precisos, mesmo que contribuam para homicídios, ajustes de contas ou episódios que mancham toda a história de clubes centenários.

 

Começámos a pagar a gente para se fazer de sonsa e tornar a defesa do clube no ataque aos rivais. Temos antigos jornalistas que conspurcam a profissão ao sentir que, por já não exercerem, já não têm de adotar uma postura responsável no tratamento dos temas e no pensamento. E fazem gala disso num discurso infantil ao estilo de «agora já posso, já nada me impede».

 

Temos parolos e bimbos espalhados por departamentos de comunicação, departamentos de crise, agências de comunicação, contas nas redes sociais, páginas na internet, por todo o lado que, pagos ou não, desempenham um papel que não mais faz do que aumentar o clima de crispação. E todos dão palmadinhas nas costas uns dos outros enquanto esboçam novas estratégias.

 

Julgamo-nos todos inocentes mas contribuímos, passo a passo, gota a gota, uns mais do que outros, para um ambiente irrespirável que indigna os princípios básicos do desporto e, muito possivelmente, aqueles que nos ensinaram a amar o desporto. E, passivamente, caminhamos para o abismo a apontar para as falhas dos outros, ignorando que os passos dados são os mesmos.

 

Não é de hoje nem de ontem. Muito menos do último ano. Só piorou. De tudo o que se tem falado, há apenas uma certeza: o desporto português vive no lodo. Quer seja porque todas as acusações são verdadeiras e tudo o que isso implica, ou porque as acusações são falsas e provam que houve quem tenha descido ao mais baixo nível do pântano para construir uma vantagem.

 

Depois, claro, todos se sentem impunes e capazes de elevar a fasquia da moralidade, como se o vizinho é que estivesse mal. «Faz parte, agora é assim. Faz parte das estratégias de comunicação».

 

Não vamos ser capazes de inverter este ciclo. Porque temos dirigentes que propagam ódio, diretamente ou através de bastidores, porque temos fantoches que propagam o que lhes é pedido (e alguns nem precisam de ser pagos porque o fazem por «amor e defesa ao clube») e porque temos os curiosos que não conseguem passar um dia sem dar destaque, com maior ou menor importância, a toda a porcaria que se vai dizendo e mostrando nos jornais e nas televisões.

 

A solução não está à vista. Somos um país demasiado pequeno para aparecer uma entidade independente com coragem para pôr ordem no caos, até porque, na atual escala dos problemas, qualquer decisão vai ser confundida com clubismo. Estamos a caminhar para um momento em que apenas uma decisão radical poderá salvar o desporto português numa fase em que, de uma forma ou de outra, mais ou menos acentuada, as três entidades com mais responsabilidade, se comportam como crianças egoístas e arrogantes.

 

Lá no fundo, devia envergonhar-nos a todos – aos que verdadeiramente querem uma mudança – a contribuição que demos para chegarmos ao estado a que estamos. Mais do que parecer, é preciso ser. E passar uma mensagem forte e clara de que somos contra o que se está a passar é mais difícil do que parece.

 

É preciso separar o trigo do joio. Ser inteligente. Ignorar o que deve ser ignorado, por muito popularucho e fácil de bater que seja, e valorizar o que há a valorizar. Talvez seja pouco mas é preciso começar por algum lado.

 

Porque isto não está a ser desporto e só o que é desporto devia interessar.

(Nota: post publicado às 22h08 mas agendado com 11h55 por ser um tema que não merece encabeçar uma página)