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É Desporto

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12 de Novembro, 2018

A história sueca de sucesso do filho de refugiados

Rui Pedro Silva

Henek Goitom

«Ajudada pelos seus aliados soviéticos e cubanos, a Etiópia inverteu a maré na Eritreia, recuperando controlo efetivo sobre os rebeldes e sobre a província estratégica a norte. Na semana passada, 100 mil eritreus terão fugido para as montanhas depois de as forças etíopes terem recapturado Karen», escreveu o New York Times na sua edição de 17 de dezembro de 1978.

 

A década de 70 marcou um dos maiores fluxos migratórios de refugiados da Eritreia na sequência da guerra que lhes foi imposta pelo imperador da Etiópia, Haile Selassie, no início dos anos 60. Entre os refugiados estavam Goitom Habtemariam e Zaid Awalom. Depois de terem atravessado o deserto, conseguiram encontrar uma rota para a Europa e foram parar à Suécia, onde reconstruíram as suas vidas.

 

Seis anos depois, a 22 de setembro de 1984, em Solna, nos arredores de Estocolmo, nasceu Henok Goitom. Agora, em 2018, Henok foi o homem que ergueu o troféu do primeiro título de campeão do AIK Estocolmo desde 2009. Além de ser filho de refugiados, tornou-se também o primeiro atleta de origem africana a capitanear uma equipa campeã na Suécia.

 

Uma forma multidisciplinar de ver o desporto

 

O futebol entrou na vida de Henok Goitom quando este tinha apenas cinco anos. A viver num subúrbio a noroeste de Estocolmo chamado Tensta, marcado pela forte presença de habitação social, criou um grupo de amigos e jogava na rua. Não interessava se chovia, se havia campo, se eram apenas três. Desde cedo, para problemas, foi instruído a encontrar soluções e a descobrir uma forma de contornar obstáculos.

 

O pai, antigo internacional de basquetebol pela Eritreia, foi uma forte influência. Era ele o treinador da primeira equipa de futebol verdadeiramente organizada onde jogou, a partir dos nove anos. Quando mudou de casa, pouco depois de fazer dez anos, e foi viver para uma zona de um estrato social mais elevado e com mais alternativas, Henok começou a experimentar outras modalidades.

 

Todas as semanas fazia um desporto diferente na escola e aprendeu a retirar o melhor de cada um: «O basquetebol ajudou-me a ficar mais confiante com a posse de bola. Tive de começar a ser mais rápido a analisar a jogada. Se pestanejasse, ficava sem bola e o adversário marcava. O andebol ajudou-me a defender, e no hóquei tive de aprender a mudar de direção com movimentos explosivos. Mais uma vez, se não estivesse atento ao que me rodeava, perdia por completo o controlo da jogada».

 

Durante uma época, a equipa de futebol treinada pelo pai decidiu começar a participar em torneios de basquetebol. Goitom Habtemariam apregoava a necessidade de serem atletas completos e, no fundo, o mais importante era que se divertissem a jogar. O problema chegou num torneio quando a equipa chegou à final e teria de defrontar a equipa de basquetebol onde o próprio Henok também jogava.

 

«Estávamos apenas a divertirmo-nos. Ninguém pensou que íamos fazer batota até nos defrontarmos na final», confessou. A organização não gostou e decidiu cancelar o jogo. Para a equipa, foi indiferente: «Só lá estávamos para nos divertirmos. Era sempre a nossa maior prioridade».

 

Herança familiar na mentalidade desportiva

Goitom foi internacional pela Suécia nos escalões jovens

O desporto era um escape de diversão mas a vida da família não era um mar de rosas. Os sacrifícios eram uma constante e a força mental uma obrigação para fazer frente às dificuldades do quotidiano. «Do sítio de onde vinha, era preciso desenvolver força mental. Ninguém, tirando os meus amigos próximos e família, acreditava em mim. Por isso tinhas de ser tu a acreditar. Tínhamos regras simples. Ensinaram-me a ser humilde e a dar sempre algo de volta.»

 

Em casa, a família comia sempre reunida, «ninguém se atrevia a ver televisão». E se a conta do telefone chegasse com um valor mais alto do que o esperado, havia uma reunião. «Falávamos todos e decidíamos como poderíamos ajudar, fosse financeiramente ou simplesmente a passar a ser mais económico no uso do aparelho», contou.

 

A relação com o pai foi o pilar principal na sua evolução enquanto jogador. «Assegurou-se de que não precisaria de ir para os melhores clubes de Estocolmo para melhorar. O mais importante era jogar e desenvolver a minha qualidade. Não me preocupava em ganhar, apenas em jogar bom futebol», disse, acrescentando que a cultura familiar, com os princípios eritreus, era mais honesta na altura de criticar. «Na Suécia há muito a filosofia de relevar a importância da participação.»

 

A dedicação ao desporto era máxima. Nunca chegava atrasado, fosse a um treino ou a um jogo. O objetivo era divertir-se, mas fazia-o com disciplina… e prazer. «Na altura não tínhamos computadores nem telemóveis. Íamos para o rinque mais próximo e esperávamos que lá estivesse alguém pronto para jogar. Se estivesse ocupado, arranjávamos uma alternativa. Jogávamos em qualquer superfície, fosse alcatrão ou areia. O mais importante era jogar.»

 

Dar nas vistas e transformar-se na pérola da Udinese

Marcou ao Inter pela Udinese em sete minutos

A era de aliar vários desportos foi ultrapassada. Com 16 anos centrou-se exclusivamente no futebol e estreou-se no escalão sénior. Teve dificuldades mas não virou a cara à luta e começou a dar nas vistas.

 

O caminho de progressão foi sustentado e chegou às seleções jovens da Suécia. Um dia, em Portugal, durante um jogo de qualificação para o Europeu sub-19, deu nas vistas e foi recrutado para a Udinese de Spalletti, Di Natale e Iaquinta. Era um jovem, teve poucas oportunidades e a experiência foi dizimada por uma lesão mas, no único jogo que fez em duas temporadas, entrou aos 83 minutos para marcar o golo do empate contra o Inter.

 

Depois da Itália, a Espanha. Emprestado pela equipa italiana, mostrou os seus dotes goleadores no Ciudad Murcia e assinou em definitivo pelo Murcia em 2007. Mais uma vez, voltou a ter dificuldades para se impor. A cedência ao Valladolid foi benéfica, marcando dez golos em 29 jogos, e permitiu o salto para o Almería.

 

Por esta altura, e depois de gorado o sonho de chegar ao Mundial com a Suécia, começou a pensar em representar a seleção da Eritreia, em novembro de 2010. «O meu pai tem estado em contacto com o presidente. Já lá estive duas vezes e sei que o futebol não é a prioridade, porque as pessoas têm de trabalhar arduamente para terem um telhado e para poderem comer, coisas que vemos como garantidas na Europa.»

 

Regressar ao campeonato sueco para ser feliz

Fez história pelo AIK Estocolmo

A carreira de Goitom estagnou em Espanha mas a primeira experiência no AIK Estocolmo, entre 2009 e 2012, fixou as raízes daquilo que é hoje. Deu nas vistas, tornou-se uma figura do campeonato e nem a saída à procura de melhores contratos – Getafe e San Jose Earthquakes – impediu que fosse visto como um líder.

 

Em 2015, a estreia pela Eritreia chegou mesmo («os meus pais fizeram os possíveis para me ensinar a língua e quase tudo sobre a Eritreia e a sua cultura. Entendo muito bem quando falam comigo mas é mais difícil falar»), marcando um golo em dois jogos, mas o momento mais marcante só chegou agora, em 2018.

 

O AIK conquistou o primeiro título desde 2009 e o capitão da equipa é… Henok Goitom. Os tempos do futebol de pé descalço e obsessão pela diversão fazem parte do passado mas foi este “menino da terra”, nascido muito perto do estádio, que marcou o fim do jejum. O filho de refugiados eritreus entra para a história como o primeiro capitão de origem africana a erguer o troféu do campeonato sueco, culminando de forma perfeita uma história bonita de perseverança e dedicação.