A arbitragem é um ciclo vicioso
Há árbitros bons e há árbitros maus. E há aqueles que ainda não se percebeu bem no que é que vão dar. Só uma coisa é igual para todos: o clima de desconfiança e crítica que se gera após cada erro. Não há ninguém que possa ganhar com isso: é preciso uma reforma séria.
Um espanhol a falar inglês
Um árbitro antes de entrar em campo é um pouco como um espanhol que ainda não abriu a boca para falar inglês. Não disse nada, ninguém sabe o que está a pensar mas o lugar-comum parece indicar-nos que nada de bom pode vir de lá.
É um estereótipo difícil de escapar. E é um preconceito, também. Mas não há nada que alguém como, por exemplo Pau Gasol, possa fazer para lutar contra a ideia que já está montada e formatada na mente de cada um.
Há menos de dez anos, tinha uma tradição de filmar a reação de alguém sempre que lhe dizia o árbitro nomeado para o jogo da sua equipa. Na verdade, poderiam parecer inúmeros takes da mesma reação. Só mudava o nome do árbitro e a roupa de quem estava a falar. De resto, havia sempre crítica, casos antigos de memória e um pressentimento profundo de que ia voltar a dar asneira.
Os árbitros são vítimas. Não há dúvida disso. Mas também são culpados. São culpados por terem escolhido um meio pouco solidário e onde os antecessores não ajudaram muito a promover uma imagem limpa e saudável da profissão.
Os escândalos de corrupção e os casos em tribunal serviram apenas para alimentar um fogo de suspeição e crítica que ninguém sabe exatamente quando começou. No fundo, é um pouco como o ovo e a galinha, numa espiral interminável de episódios que se entrecruzam há várias décadas.
Razões de queixa
A arbitragem do Moreirense-FC Porto foi má. Não foi a primeira da época nem será a última. E os dragões têm toda a legitimidade para se sentirem prejudicados. O mesmo se pode dizer de Sporting e Benfica em alguma fase da época, da década ou história do futebol nacional.
O que não deve acontecer é a perpetuação de uma mentalidade que o FC Porto merece o que quer que seja só porque no passado esteve associado ao Apito Dourado e à penalização de seis pontos por corrupção tentada no Apito Final. E o mesmo se pode dizer para a “época dos penáltis” do Sporting ou os vouchers, colinhos ou Algarves do Benfica.
A cada jogo, os lances têm de ser decididos pelo que são. Não por quem os merece ou não se pode queixar porque no passado já foram beneficiados. Uma mão nunca lavará a outra porque enquanto isso acontecer haverá sempre uma suja. Tem de se caminhar para um cenário em que, mais tarde ou mais cedo, as duas consigam estar limpas em simultâneo.
Para isso acontecer, Benfica, Sporting e FC Porto têm de abraçar uma causa comum, de seriedade e transparência e sem hipocrisia. E aí, o passado é claro: não se pode hoje dizer que a arbitragem está a melhorar e amanhã começar a questionar os vícios do sistema; não se pode hoje dizer que só os burros falam de arbitragem e amanhã liderar o caminho das críticas; não se pode hoje ignorar o assunto arbitragem para aproveitar todo o mediatismo da imprensa quando a cebolada do refogado não estiver cortada a preceito.
Arbitragem não pode ser uma estratégia
Presidentes, dirigentes e treinadores têm de deixar de encarar a arbitragem como uma parte da estratégia do jogo. Não pode haver inclinação para o condicionamento seja de que forma for: dizendo bem, dizendo mal, pondo em causa ou elogiando.
A discussão sobre arbitragem, tão necessária em Portugal, não pode ser feita ao sabor dos ventos. Enquanto assim for, haverá sempre alguém com razões para estar calado. Porque quando um grande é prejudicado, dois podem esfregar as mãos numa rivalidade suja e pouco saudável.
Os outros merecem sempre, por esta ou por outra razão, mas quando nos calha a nós, torna-se insuportável. É preciso dizer basta, é preciso falar, é preciso garantir que a arbitragem melhora. Assiste-se uma “estrategização” da arbitragem que não faz mais do que perpetuar os próprios vícios que têm de ser erradicados.
Árbitros têm de fazer parte do jogo
Não pode ser apenas uma coisa bonita de se dizer ou que seja utilizada apenas nos lugares-comuns de “as três equipas entram em campo” e derivados. A equipa de arbitragem, com um árbitro, dois assistentes e um quarto elemento tem de estar enquadrada e ter os mesmos direitos e deveres dos outros.
Não pode ser protegida, não pode ser um tabu, não pode ser um elemento estranho. Não devem ser submetidos a entrevistas rápidas como os treinadores e os jogadores, claro está, mas deve haver um espaço para que possam ter a palavra.
Não uma entrevista no jornal da noite como aconteceu com Lucílio Baptista mas uma oportunidade para explicar decisões, para fazerem um balanço próprio do que aconteceu, de como viveram o jogo e do que viram durante os 90 minutos.
Os árbitros têm de ser humanizados de forma decente e responsável. Não podem ser diabolizados pelos clubes nem santificados e colocados numa redoma de vidro por parte da Comissão de Arbitragem.
Luís Godinho deve ter a oportunidade de explicar por que expulsou Danilo Pereira. Tudo aponta para que tenha sido uma decisão errada e difícil de compreender mas não podemos partir do princípio de que o árbitro é maluco ou de que estava condicionado por que motivo seja.
Pode ter pensado que o médio do FC Porto fez de propósito. Pode não se ter apercebido que já ali estava há muito e que a colisão não foi provocada pelo campeão europeu. Seja como for, Luís Godinho deve ter a oportunidade de explicar a decisão, mais não seja para admitir que tomou uma decisão precipitada que, muito possivelmente, podia ter sido esclarecida se falasse com algum dos restantes elementos da equipa de arbitragem.
Acompanhamento psicológico
Mais do que a profissionalização da arbitragem, o acompanhamento psicológico deve ser um fator essencial para um árbitro. Semana após semana, no jogo, na antecâmara e no rescaldo, os árbitros são vítimas de bullying.
São alvo de queixas e insinuações e veem as suas competências em causa por decisões que até podem ter sido corretas – pelo menos aceitáveis – mas que não corresponderam aos interesses do treinador, jogador ou dirigente que critica. É impossível agradar a gregos e troianos e esta nuvem de stress e suspeição não abranda nunca.
Não deve ser fácil. Não pode ser fácil. E, inevitavelmente, os mecanismos de proteção entram em ação e tendem a propiciar a perceção de situações normais como se de ataques pessoais se tratassem.
Não pode haver outra forma para justificar a tendência que tantos árbitros – não só no futebol mas também na NBA, por exemplo – têm para admoestar jogadores ou treinadores por se estarem a rir. O riso, ou o sorriso, começa a ficar associado ao gozo ao árbitro e, frequentemente, estes têm dificuldades em lidar com isso.
Será possível que Luís Godinho se tenha sentido gozado por Danilo Pereira em Moreira de Cónegos e, por isso, tenha agido daquela forma?
Árbitros precisam de voz
Não é uma ideia repetida. A voz não serve apenas para comentar e esclarecer o que se passou no jogo. Os árbitros fazem parte do futebol e devem ter uma voz mais ativa nas alterações que estão a ser pensadas e noutras que podem vir a fazer parte no horizonte.
Por mais que Bruno de Carvalho e o Sporting apostem na modernização do futebol, por muito que se queira incluir o vídeo-árbitro, ninguém mais do que o próprio árbitro deverá querer garantir que tem à sua disposição todas as ferramentas necessárias para decidir bem cada momento do jogo.
É a sua carreira que está em jogo. É bom ser profissional para ter tempo para se preparar física e mentalmente para as exigências de um encontro durante 90 minutos, mas no fundo o mais importante continua a ser decidir bem.
Nunca se vê um treinador a criticar um árbitro com excesso de peso que não conseguiu acompanhar as jogadas. No final, tudo o que interessa é decidir se um lance é ou não penálti, se a bola entrou, se o jogador estava em posição irregular ou se merecia de facto ser expulso por acumulação de amarelos.
RPS