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É Desporto

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05 de Agosto, 2023

O elevador social e o futebol

Rui Pedro Silva

Futebol para todos

Não há nada como um Mundial para nos fazer pensar no futebol como um todo. Podemos estar cada vez mais homogéneos nos estilos e mentalidades, mas continua a ser impossível decalcar o estilo latino no asiático e o africano no escandinavo. Diferentes povos, diferentes nações, têm diferentes estilos porque acabam por ser também um reflexo das sociedades em que os jogadores estão integrados.

O futebol cresceu em diferentes partes do mundo alicerçado por bases muito distintas. Não é por acaso que os maiores talentos vêm sobretudo de países mais pobres, com maiores dificuldades, enquanto as equipas mais consistentes surgem de nações com mais condições e com infraestruturas diferentes.

Não deixa de ser um estereótipo mas até os estereótipos existem por um motivo. Nem precisamos de ir tão longe e podemos olhar para a formação do Sporting. Será por acaso que Paulo Futre, Luís Figo, Ricardo Quaresma e Cristiano Ronaldo sejam todos frutos da formação pré-academia?

Quando o clube leonino melhorou as condições e garantiu infraestruturas para moldar melhor os talentos do futuro, os mustangs como Nani começaram escassear e surgiram cada vez mais moldes como João Moutinho, Miguel Veloso, João Mário, William Carvalho, Adrien Silva e tantos outros. Foram desaparecendo os extremos das fintas, apareceram os médios da consistência.

O futebol permite que haja espaço para todos. E antes dos dez anos não há limite para a ambição. Um filho de uma família da classe alta tem tanta capacidade para singrar no futebol como um pé descalço que pede dinheiro nos semáforos para ajudar em casa. 

O racismo perde força, o dinheiro é arrasado no mercado cambial do talento e das perspetivas futuras e, no fundo, a igualdade ganha protagonismo. Até o tempo em que os jogadores mais baixos eram preteridos parece ser figura do passado. Agora, não há limites para o sonho.

Continua a ser mais provável um brasileiro dar em jogador do que um chinês, mas a plataforma de lançamento é igual para todos. Mesmo em Portugal, talvez seja mais complicado uma criança de Portalegre ou de Bragança conseguir praticar a modalidade em condições do que uma das áreas metropolitanas, mas o talento consegue sempre descobrir uma forma.

O futebol é o grande cabo de alimentação do sonho, do elevador social. Pobre ou rico, não importa. Quando o Mundial passa na televisão, quando Roberto Baggio falha um penálti, quando Ronaldo baila sobre uma armada que poderia ter defendido William Wallace, quando Maradona é um exército de um homem só, qualquer criança tem o direito a sonhar «um dia vou ser eu».

E todas sonham. «Um dia vou ser eu, um dia vou estar ali». É neste processo que começa depois o período da grande filtragem. É preciso ser o melhor da rua para depois ser o melhor da escola para depois ser o melhor do clube para, finalmente, ser o melhor da região. Os passos vão-se dando e as cunhas, o dinheiro ou o passado importa pouco. No final, não há treinador nem dirigente que não dê primazia ao talento.

O futebol surge como um elevador social a roçar a perfeição, por muito que possam persistir algumas dificuldades. E agora, nas últimas semanas, com o Mundial feminino a ganhar protagonismo, sobretudo em Portugal mas também um pouco por todo o mundo, a igualdade entra em força nesta dinâmica.

Hoje é indiferente. Hoje, uns gémeos Miguel e Maria podem sonhar exatamente da mesma forma. Podem ver na televisão alguém como eles e sonhar em estar ali um dia. Hoje, a Maria, sendo ou não influenciada por um Messi, Ronaldo ou Mbappé, sabe perfeitamente que pode vir a ser a próxima Marta, Rapinoe, Hegerberg ou Alexia. E o próprio Miguel pode ficar rendido a uma Telma Encarnação ou a uma Linda Caicedo.

Os obstáculos são cada vez menores, os limites já não existem. É possível sonhar. É recomendado sonhar. Todos nós sonhámos um dia em estar num estádio a marcar um golo pela nossa equipa e a estatística não mente: falhámos. A grande maioria falhou esmagadoramente e só consegue entrar no estádio se pagar para o fazer. Mas isso não apoquenta nem um pouco a paixão que sentimos pelo futebol, o amor que partilhamos com milhões de pessoas por todo o mundo que sentiram exatamente o mesmo.

Que se permitiram acreditar que um dia podiam ser elas. Que ainda hoje têm uma reação química inexplicável ao ouvir o nome de Ronaldo fenómeno e a relembrar alguns dos lances que o imortalizaram. O futebol tem muitos defeitos, talvez cada vez mais, mas são as suas virtudes que continuam a fazer deste desporto algo muito especial e um exemplo para tantas outras áreas.