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É Desporto

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29 de Agosto, 2023

Paulinho e a arte da sedução da baliza

Rui Pedro Silva

Paulinho

Não sou especialista em comédias românticas e os três anos que passei no ensino secundário não foram suficientes para fazer de mim um grande analista de emoções adolescentes, até porque naquelas idades estamos demasiado ocupados a tentar perceber-nos a nós próprios para conseguirmos trazer clareza ao ambiente que nos rodeia.

Confesso, contudo, que gosto do tipo de filme. Podem ser básicos mas trazem um ar descomplicado à rotina do dia-a-dia e chego a preferir rever um destes do que ver pela primeira vez uma película rotulada de grande sucesso pela generalidade dos órgãos de comunicação social e pela particularidade dos influencers hipsters. E, sim, passei três anos no ensino secundário, entre 2000 e 2003, numa altura em que as mensagens escritas eram um bem precioso, os e-mails começavam a aparecer e as redes sociais, como as conhecemos hoje, não eram mais do que uma nuvem num horizonte longínquo.

É esta experiência acumulada que me faz olhar para a nova vida de Paulinho no Sporting com especial atenção. Se há coisas que aprendemos rapidamente nos filmes e na vida é que as obsessões e os grandes interesses nem sempre são vistos da melhor forma, mesmo os mais saudáveis. Nas comédias românticas, como na adolescência, manifestar interesse torna-nos desinteressante ao mesmo nível que mostrar desinteresse aguça a curiosidade.

Quando Paulinho chegou ao Sporting, num capricho de Ruben Amorim que obrigou a um esforço muito relevante, o seu interesse de relação com as balizas era declarado. Paulinho vinha para marcar golos. Vinha para resolver. Era nele que os adeptos depositavam as esperanças de ganhar jogos e alcançar um título que, já nessa altura, se afigurava como provável. Paulinho vinha ser o nome e a figura que o treinador não via em Sporar e Tiago Tomás.

Talvez Paulinho não vivesse obcecado pelos golos, mas as defesas, os guarda-redes e as balizas sabiam dessa pressão. Sabiam desse rótulo. Sabiam da esperança redobrada dos adeptos que, progressivamente, começaram a ver em Paulinho mais um bode expiatório do que um amor para a vida.

O avançado pode até ter marcado o golo do título contra o Boavista, pode até ter-se tornado uma peça fundamental no modelo de Ruben Amorim e trabalhado sempre com afinco e sem birras, mas os golos, como eram esperados e talvez se exijam a avançados de um grande com um custo tão elevado, nunca foram muitos, sobretudo no campeonato.

Paulinho foi vendo Pedro Gonçalves, Sarabia, Trincão, Edwards e até Coates assumirem esse protagonismo enquanto o goleador de rótulo não era mais do que um corpo de marca branca no que dizia respeito às balizas.

A contratação de Gyökeres, o miúdo de intercâmbio que se torna popular instantaneamente, tirou os olhos de Paulinho. O português afastou-se das balizas, pisou outros terrenos, começou a olhar para outra relva e, subitamente, as balizas sofreram com esse aparente desinteresse. O peso estava agora nas prateleiras de um armário sueco demasiado robusto para ser do Ikea enquanto o corpo leve de Paulinho tornou-se subitamente irresistível.

Paulinho continuou a ser o mesmo mas, de algum modo, assumiu um desinteresse pelo golo, retirou pressão e… começou a mostrar os dentes. As balizas não caíram, derreteram-se com o sorriso que nunca tinham visto daquele ângulo.

O fenómeno Paulinho não é novo. É até uma espécie de decalque invertido do enredo da rapariga que é um rato de biblioteca numa noite e, no dia seguinte, se torna a aluna mais cobiçada do baile. Engalanar-se como avançado principal fez mal a Paulinho da mesma forma que afastar-se dos holofotes lhe dá agora outro brilho, mais especial, mais atraente.

Paulinho fingiu. Como um poeta. Virou as costas à dor apenas para regressar, por outros caminhos, de outros terrenos, mais forte e mais concretizador. Os versos que os adeptos lhe cantam deixaram de ser vistos por muitos, sobretudo adversários, de forma jocosa. Podem não cair mas começam a tremer.

Paulinho não é o primeiro a passar por esta evolução e a demonstrar que o contexto é quase tão importante como a qualidade do jogador. Um herói do passado, Acosta, chegou a meio de uma temporada e rapidamente foi apelidado de velho, barrete, ultrapassado e vítima da ciática. Entretanto, no verão, quando já ninguém dava nada por ele, mereceu a titularidade de Materazzi nos Açores e foi eleito o melhor jogador em campo do Sporting contra o Santa Clara.

Os comentadores viram aquela eleição como uma piada. Naturalmente, até. Mas os meses que se passaram mostraram um novo argentino. Às vezes pode ser pela adaptação. Outras pela pressão. Outras pelo modelo, ou dupla ou momento na vida. Como Paulinho e Acosta há muitos outros.

As balizas não se deixam enganar por qualquer um. Há predestinados que só precisam de um sorriso e de um piscar de olho para fazerem as redes corar e balançar com mais um golo. Com outros fazem-se de difíceis e não estão dispostas a qualquer manha. Com Paulinho, porém, parecem ter caído na manha mais antiga da sedução. Já não gosto de ti. Já não quero saber de ti. Sou o dono do meu destino. E, num instante, tudo muda.

05 de Agosto, 2023

O elevador social e o futebol

Rui Pedro Silva

Futebol para todos

Não há nada como um Mundial para nos fazer pensar no futebol como um todo. Podemos estar cada vez mais homogéneos nos estilos e mentalidades, mas continua a ser impossível decalcar o estilo latino no asiático e o africano no escandinavo. Diferentes povos, diferentes nações, têm diferentes estilos porque acabam por ser também um reflexo das sociedades em que os jogadores estão integrados.

O futebol cresceu em diferentes partes do mundo alicerçado por bases muito distintas. Não é por acaso que os maiores talentos vêm sobretudo de países mais pobres, com maiores dificuldades, enquanto as equipas mais consistentes surgem de nações com mais condições e com infraestruturas diferentes.

Não deixa de ser um estereótipo mas até os estereótipos existem por um motivo. Nem precisamos de ir tão longe e podemos olhar para a formação do Sporting. Será por acaso que Paulo Futre, Luís Figo, Ricardo Quaresma e Cristiano Ronaldo sejam todos frutos da formação pré-academia?

Quando o clube leonino melhorou as condições e garantiu infraestruturas para moldar melhor os talentos do futuro, os mustangs como Nani começaram escassear e surgiram cada vez mais moldes como João Moutinho, Miguel Veloso, João Mário, William Carvalho, Adrien Silva e tantos outros. Foram desaparecendo os extremos das fintas, apareceram os médios da consistência.

O futebol permite que haja espaço para todos. E antes dos dez anos não há limite para a ambição. Um filho de uma família da classe alta tem tanta capacidade para singrar no futebol como um pé descalço que pede dinheiro nos semáforos para ajudar em casa. 

O racismo perde força, o dinheiro é arrasado no mercado cambial do talento e das perspetivas futuras e, no fundo, a igualdade ganha protagonismo. Até o tempo em que os jogadores mais baixos eram preteridos parece ser figura do passado. Agora, não há limites para o sonho.

Continua a ser mais provável um brasileiro dar em jogador do que um chinês, mas a plataforma de lançamento é igual para todos. Mesmo em Portugal, talvez seja mais complicado uma criança de Portalegre ou de Bragança conseguir praticar a modalidade em condições do que uma das áreas metropolitanas, mas o talento consegue sempre descobrir uma forma.

O futebol é o grande cabo de alimentação do sonho, do elevador social. Pobre ou rico, não importa. Quando o Mundial passa na televisão, quando Roberto Baggio falha um penálti, quando Ronaldo baila sobre uma armada que poderia ter defendido William Wallace, quando Maradona é um exército de um homem só, qualquer criança tem o direito a sonhar «um dia vou ser eu».

E todas sonham. «Um dia vou ser eu, um dia vou estar ali». É neste processo que começa depois o período da grande filtragem. É preciso ser o melhor da rua para depois ser o melhor da escola para depois ser o melhor do clube para, finalmente, ser o melhor da região. Os passos vão-se dando e as cunhas, o dinheiro ou o passado importa pouco. No final, não há treinador nem dirigente que não dê primazia ao talento.

O futebol surge como um elevador social a roçar a perfeição, por muito que possam persistir algumas dificuldades. E agora, nas últimas semanas, com o Mundial feminino a ganhar protagonismo, sobretudo em Portugal mas também um pouco por todo o mundo, a igualdade entra em força nesta dinâmica.

Hoje é indiferente. Hoje, uns gémeos Miguel e Maria podem sonhar exatamente da mesma forma. Podem ver na televisão alguém como eles e sonhar em estar ali um dia. Hoje, a Maria, sendo ou não influenciada por um Messi, Ronaldo ou Mbappé, sabe perfeitamente que pode vir a ser a próxima Marta, Rapinoe, Hegerberg ou Alexia. E o próprio Miguel pode ficar rendido a uma Telma Encarnação ou a uma Linda Caicedo.

Os obstáculos são cada vez menores, os limites já não existem. É possível sonhar. É recomendado sonhar. Todos nós sonhámos um dia em estar num estádio a marcar um golo pela nossa equipa e a estatística não mente: falhámos. A grande maioria falhou esmagadoramente e só consegue entrar no estádio se pagar para o fazer. Mas isso não apoquenta nem um pouco a paixão que sentimos pelo futebol, o amor que partilhamos com milhões de pessoas por todo o mundo que sentiram exatamente o mesmo.

Que se permitiram acreditar que um dia podiam ser elas. Que ainda hoje têm uma reação química inexplicável ao ouvir o nome de Ronaldo fenómeno e a relembrar alguns dos lances que o imortalizaram. O futebol tem muitos defeitos, talvez cada vez mais, mas são as suas virtudes que continuam a fazer deste desporto algo muito especial e um exemplo para tantas outras áreas.