Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

É Desporto

É Desporto

28 de Julho, 2023

Portugal. Uma vitória épica em tempos de Barbie

Rui Pedro Silva

Portugal bateu o Vietname por 2-0

Portugal deu mais um passo de gigante na sua evolução da equipa feminina de futebol. A vitória na Nova Zelândia sobre o Vietname representou o primeiro triunfo na história dos Mundiais femininos e o feito, mais valorizado por uns do que por outros, teve o condão de abrir janelas temporais para o passado.

Estávamos em 1966, em plena ditadura, quando José Augusto vestiu o papel que viria a ser de Telma Encarnação e marcou o primeiro golo de Portugal no Mundial de Inglaterra. Foi em Manchester, em Old Trafford, a 13 de julho e foram precisos apenas dois minutos.

Esperava-se que o feito pudesse ser celebrado de forma transversal mas o Diário de Lisboa, por exemplo, tinha apenas uma breve referência ao triunfo na primeira página, apenas para utilizar a euforia como lançamento para o principal tema: o aumento dos funcionários públicos a partir de setembro. De resto, havia espaço para o ensino de enfermeiras, a vaga de calor em Nova Iorque, a taxa de desconto do banco de Inglaterra, a visita do primeiro-ministro britânico a Moscovo em plena guerra fria e… o terceiro casamento de Brigitte Bardot.

Não sei se terá sido falta de visão, se apenas consequência de não ser um jornal desportivo, mas o impacto daquela estreia continua a ter repercussões ainda hoje, mesmo que no corpo do jornal se leia que «o que interessa é ganhar mas nada de alimentar ilusões».

Foi precisamente a alimentar ilusões que chegámos aqui, mais de 57 anos depois. A ilusão alimentou as crianças, as raparigas, as mulheres e hoje, 28 de julho, estamos a viver a ressaca de um dia histórico. E hoje já não há desculpas: qualquer português e qualquer órgão de comunicação social sabe que esta vitória terá repercussões.

O papel da mulher no futebol está cada vez mais sólido e a aposta é maior não só a nível global mas também em Portugal. Seria preciso ser completamente desfasado da realidade para achar que o país não teria um potencial enorme naquele que é o desporto-rei assim que as oportunidades começassem a surgir.

A vitória com o Vietname é o maior sinal de desprendimento, independência e triunfo sobre o preconceito. E mesmo que haja quem ache ser mais importante dar destaque a capitães prontos para uma Supertaça ou a renovações contratuais, ninguém põe sequer em causa que este foi o maior e mais importante momento do dia desportivo.

Para as futuras gerações, poderemos dizer que surge num período de guerra na Ucrânia, de uma onda de calor preocupante, em vésperas das Jornadas Mundiais da Juventude e em tempos de extremos no cinema: Oppenheimer e Barbie.

Se o primeiro, mais violento e opulento, pode apontar para o futebol dos homens, também ele mais violento, explosivo e animal, o segundo aponta para o futebol das mulheres, mas não por ser uma boneca.

Vencer pela primeira vez num Mundial quando o filme Barbie está nos cinemas é a metáfora perfeita. Durante décadas, as raparigas foram encostadas a um canto para brincar com bonecas. As meninas vestiam de rosa, os meninos de azul-bebé. As meninas brincavam com Barbies, os meninos com bolas de futebol.

E ai de quem ousasse quebrar o estereótipo. Um menino que gostasse de brincar com bonecas era gozado pelos pares, uma menina que quisesse jogar futebol era uma maria-rapaz. Hoje, essas conceções ainda existem mas estão cada vez mais esbatidas.

Hoje, podemos ver com orgulho um grupo de 23 atletas festejar uma vitória épica horas antes de ver uma sala de cinema bem preenchida por homens. Por mais que haja quem queira resistir, a sociedade está a evoluir e não há volta a dar.

As amarras do passado cheiravam a mofo e foram enfraquecendo perante a força de quem se foi batendo pela liberdade de fazer o que quer. Porque é possível ir treinar a um clube ao final da tarde e brincar com uma Barbie à noite. É possível pintar as unhas antes e marcar um golo ao Vietname depois.

O lugar das mulheres é tanto na cozinha como o dos homens é no futebol. Não há lugares marcados. Quando alguém nasce, nasce para fazer o que lhe vier a apetecer sem estar condicionado pelo que quem estava antes decidiu ser aceitável.

A vitória de Portugal com o Vietname é uma lição e deve ser transmitido com orgulho a quem vier a seguir. Os futuros avós, pais, tios, irmãos mais velhos deverão contar com orgulho que viram este momento histórico.

Chegar a um Mundial pela primeira vez, ganhar um jogo pela primeira vez, é apenas mais um sinal de que não há limites para o sonho. E este exemplo deve ser dado não apenas a meninas como a meninos. Os rapazes também devem saber, e deve-lhes ser ensinado desde cedo, a importância de acreditar e reivindicar algo.

Sim, as mulheres podem jogar futebol e ter sucesso nisso. Sim, qualquer pessoa, independentemente da origem, género ou aspeto, deve ter o direito a fazer o que sonha, o que sente que nasceu para fazer, o que gosta.

Talvez isto não seja o mais importante do que se passou ontem. Não sei o que será.

24 de Julho, 2023

Pogacar e a euforia do festejo

Rui Pedro Silva

Tadej Pogacar

Tadej Pogacar falhou a vitória no Tour pelo segundo ano consecutivo. Tadej Pogacar teve mais olhos do que barriga na planificação da temporada, quis ganhar tudo, mas chegou às montanhas de França e foi controlado por Jonas Vingegaard até cair com estrondo em dias consecutivos. Tadej Pogacar é um fracasso difícil de contornar. Tadej Pogacar é tudo e mais um par de botas.

É possível escrever todas as frases anteriores com um ar sério, sem nos rirmos, mas isso não quer dizer que façam sentido e que sejam, também elas, sérias. Na era do imediatismo, a memória do adepto está cada vez mais curta e sente-se uma tentação vertiginosa de rotular tudo nos extremos: um grande golo é vencedor do Prémio Puskas em janeiro, uma derrota inesperada é uma humilhação tremenda, uma vitória confortável é um arraso.

Não é só na política que os extremos estão a ganhar vida. Aliás, a política limitou-se a copiar as tendências do discurso que se têm vindo a sentir um pouco por todo o lado, com especial incidência no desporto, uma maravilha do nosso mundo que tem o condão de agradar a gregos e troianos, japoneses e coreanos, homens e mulheres, russos e ucranianos, crianças e veteranos.

Tadej Pogacar tem sido vítima desta necessidade de rotular tudo instantaneamente. Não há meio-termo, não há vitórias parciais, não há enormes exibições. Há apenas sucessos, gigantescos sucessos, e fracassos, enormes fracassos. Quando o esloveno vacilou perante Vingegaard há uma semana, o Tour mais equilibrado do século transformou-se rapidamente numa derrota pesada para Pogacar. De repente, aquele que continuava a ser, por larga vantagem, o segundo classificado da prova por etapas mais importante do mundo, atual vice-campeão e com dois títulos nas três edições anteriores, tornou-se um falhado.

Subitamente, os primeiros meses do ano desapareceram. O homem que venceu o Paris-Nice, à Volta à Andaluzia, que foi quarto na Milão-Sanremo e que venceu em pouco mais de duas semanas a Volta a Flandres, a Amstel Gold Race e a La Flèche Wallonne antes de desistir por queda na Liège-Bastogne-Liège e falhar a hipótese de aumentar ainda mais o caráter histórico da sua temporada, tornara-se banal. Dera-nos meses de emoções fantásticas, estupefactos com o que continuava a alcançar, mas no julgamento em França, os atenuantes eram inexistentes.

Tadej Pogacar podia ter falhado o Tour que a sua época já teria sido fantástica, longe do alcance dos comuns e dos invulgares mortais. Mas, como habituou o público a ser um extraterrestre, foi vítima do seu próprio sucesso. Sem ter feito nada de errado.

Que não haja dúvidas: ninguém se sentiu pior ou mais desiludido pelo tempo perdido no contrarrelógio ou na etapa de Courchevel do que o próprio Pogacar. Mas o esloveno acabou por ser o único a reagir com inteligência. As redes sociais agiram com um apetite voraz pelas afirmações contundentes e levaram Pogacar de arrasto.

O esloveno é profissional e até pode ser de outro planeta, mas não é de ferro. À frustração pessoal, juntou a que lhe foi imposta. Como se tivesse feito algo de errado. Por isso, quando cruzou a meta na chegada a Le Markstein, os festejos não foram exagerados. E muito menos foram motivo de um pedido de desculpa, ou um breve comentário, nas redes sociais por ter sido demasiado eufórico.

Aquele momento, ao cruzar a meta no primeiro lugar, significou mais para Pogacar do que qualquer pessoa pode imaginar. A vitória foi um bolo com múltiplos ingredientes desde raiva, vitória moral, cansaço acumulado, stresse, alegria e sentimento de injustiça.

Por outras palavras, Tadej Pogacar festejou como sentiu que tinha de festejar. E deu asas ao que tinha lá dentro. Numa sociedade em que parecemos reprimir cada vez mais as emoções por culpa de uma brigada de conduta à espreita que assinala os patamares aceitáveis para cada fasquia, Pogacar quis ser diferente. E ainda bem. Não se sujeitou, nem pensou na polícia dos costumes ignorante que se incomoda com o que os outros sentem como se tivesse direito a julgar, a reprimir ou a condenar.

Aconteceu com Pogacar no Tour como acontece frequentemente com uma vitória no futebol ou com celebrações no desporto após golos, lançamentos, pontos, o que quer que seja. Cada um festeja como sente que deve festejar. Se é uma vitória sobre o rival, que seja. Se é uma vitória que vale a permanência três jornadas, que seja. Até pode ser um golo numa derrota que tenha um significado especial.

Porque a verdade é esta: por mais que nos habituemos a ver estas figuras na televisão, nos estádios, nos pavilhões, nas estradas ou nas ruas, nunca sabemos o que lhes vai na alma. Há quem até mereça festejar desta forma só por se conseguir levantar de manhã com energia para viver mais um dia. A vida é feita de pequenos momentos, pequenas vitórias, pequenos festejos e, por vezes, há uns que nos parecem maiores que a própria vida.

Tadej Pogacar festejou. Que o deixem festejar. Eu fiquei genuinamente feliz por ele. Ali, naquele cruzar de meta, vi soltar a frustração de uma semana em que foi criticado injustamente. Vi um homem, humano como eu, a reagir à desilusão. Vi alguém conquistar a empatia de tantos por ter reunido a energia para se levantar depois de cair.

Pode haver muita coisa errada, mas o festejo de Pogacar não será uma delas. Nem qualquer outro festejo. O mundo precisa de mais alegria.

20 de Julho, 2023

Ronaldo e a qualidade da Europa

Rui Pedro Silva

Cristiano Ronaldo

«Na minha maneira de ver o futebol, acho que a Europa perdeu muita qualidade». As declarações de Cristiano Ronaldo em Portugal, numa semana em que o Al Nassr sofreu nove golos de Celta e Benfica em 180 minutos, têm sido ridicularizadas.

A opinião está longe de ser inatacável embora haja nuances que pareçam comprovar o que diz. Desde que Ronaldo saiu para a Arábia Saudita tem havido, de facto, um êxodo relevante. Vejamos a tendência dos últimos vencedores da Bola de Ouro, um prémio que durante muito tempo só podia ser atribuído a jogadores a atuar na Europa.

Ronaldo e Benzema saíram para a Arábia Saudita, Messi para os Estados Unidos. A sangria de qualidade existe. Das últimas 14 edições, apenas uma foi ganha por um jogador que ainda está no futebol europeu (Luka Modric). Se quisermos ir mais longe, há apenas quatro jogadores no ativo com uma Bola de Ouro na carreira: um joga na Europa, outro na América e dois na Ásia.

A estatística é inatacável mas não foi isso que Ronaldo quis dizer. Longe disso. Ronaldo quis convencer-nos de que é um Fernão de Magalhães dos tempos modernos, um Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil como se a América do Sul estivesse a jogar às escondidas.

Ronaldo já não consegue – e talvez nunca tenha conseguido – ter o distanciamento necessário para conseguir analisar com critério as tendências do futebol. Ou, pior que isso, vive numa realidade paralela, alimentada por todos aqueles que nunca ousaram contrariar o seu ego e, como tal, nunca se tornaram incómodos.

O futebol europeu está destinado a ser o farol da modalidade. Talvez não para sempre, mas há tendências que demorarão muito a inverter: a tradição futebolística, a modalidade como desporto-rei, a rivalidade num continente em que as fronteiras estão cada vez mais esbatidas mas onde campeonatos como o inglês, o espanhol, o italiano e o alemão continuam a ser verdadeiras sanguessugas do talento mundial.

Por muito que Estados Unidos, China, Arábia Saudita, Qatar, Japão ou a própria Rússia (um fenómeno muito específico dentro do futebol europeu) tenham tido investidas ao longo das décadas para acumular talento e desenvolver o seu próprio futebol, apenas a Major League Soccer consegue ser vista como uma verdadeira ameaça. Os Estados Unidos são um país capaz de atrair por mais do que apenas pelo dinheiro, embora esse continue a ser o maior combustível.

A Europa não é apenas a Europa. É o continente do Real Madrid, do Barcelona, do Bayern Munique, do Manchester United, do Milan, do Inter, de um sem número de equipas históricas que continuaram a crescer com o desenvolvimento dos maiores talentos de cada um dos continentes. Só a América do Sul consegue aproximar-se desta dimensão mas, por circunstâncias económicas e sociais, nunca se conseguiu posicionar como verdadeira ameaça à hegemonia europeia.

Basta olhar para as estatísticas do Mundial disputado no Qatar. Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França eram os cinco campeonatos (escalão máximo e não só) mais representados e totalizavam praticamente 55% dos jogadores convocados. Ao juntar as restantes ligas nacionais do continente, a percentagem subia para 73,28. Por outras palavras, e aproximadamente, em cada quatro jogadores presentes no Mundial, apenas um não jogava na Europa.

Podia não ser mas, neste caso, quantidade equivale a qualidade. A Europa é capaz de reter os seus maiores talentos – apesar do êxodo recente – como nenhum outro continente. Os melhores jogadores da América do Sul têm o sonho de jogar na Europa. O mesmo se passa com os africanos. E com os asiáticos. E com o resto do mundo.

Ronaldo, Messi e Benzema abandonaram o futebol europeu mas têm 38, 36 e 35 anos. Têm todo o direito a escolher os passos da sua carreira sem serem criticados por isso. Mas não são pioneiros nem estão a desbravar florestas nunca antes pisadas, nem mares nunca antes navegados. Eusébio tinha 33 anos, Cruijff 32 e Beckenbauer 31 quando foram jogar para os Estados Unidos. Juntos, venceram seis Bolas de Ouro.

Os maiores talentos, os melhores talentos, os talentos mais jovens vão continuar a olhar para o futebol europeu como o sonho da carreira. Arábia Saudita, Qatar, Estados Unidos e epifenómenos semelhantes vão conseguir seduzir esporadicamente um ou outro jogador ainda na flor da idade, mas a esmagadora tendência não será essa.

O que Cristiano Ronaldo fez, isso sim, foi de alguma forma validar um campeonato. O português tem estado a funcionar como um ímane para outros talentos que, mais não sejam, são convidados a pensar “se Ronaldo foi para lá, por que não irei eu?”.

Mas não foi isto que Ronaldo disse. A oratória do melhor jogador português da história nunca foi a sua maior capacidade. Pelo contrário. A sua carreira é feita de monossílabos que fazem escola mas, para declarações mais sustentadas, talvez seja melhor, como ele próprio sugeriu, perguntar ao Carlos.

O futebol europeu vai sobreviver mesmo que não esteja bem nem se recomende. Há muita destruição a ser feita por dentro, dinheiro a entrar de maneira duvidosa, multimilionários a deixaram-se consumir por uma ganância crescente e sonhos para dinâmicas que matem de vez os pequenos e tornem o futebol europeu uma estrutura de meninos ricos que levavam a bola debaixo do braço para a escola e decidiam quem podia jogar. Já nessa altura, porém, talvez esse fosse o único talento que tinham

O futebol está a transformar-se à velocidade-luz mas não é porque Ronaldo foi para a Arábia Saudita. A ida para o Al Nassr a troco de muitos milhões é muito mais uma consequência do que uma causa desta transformação.

As carreiras de Eusébio, Beckenbauer, Cruijff e mesmo Zico, que se aventurou no futebol japonês, não ficaram manchadas por estas aventuras exóticas. A de Ronaldo poderá ficar. Porque insiste em ser quem não é. Porque mantém o desejo de alimentar bicefalias que marcaram a última década, porque continua sem aprender a gerir os silêncios e a comunicação.

Cristiano Ronaldo é o melhor jogador português da história. É um dos melhores de sempre do mundo. Mas corre o risco de sair por uma porta demasiado pequena para a dimensão do seu talento. Não tem arte nem engenho na comunicação e a sua melhor poesia é a mesma que Romário apregoava de Pelé.