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É Desporto

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21 de Julho, 2022

Caster Semenya e as vantagens competitivas

Rui Pedro Silva

Caster Semenya

Caster Semenya competiu nos Mundiais de Atletismo na última madrugada. A sul-africana correu os 5000 metros e terminou a praticamente um minuto da vencedora da sua série. Não só falhou o apuramento para a final da prova, como não foi além do 28.º tempo mais rápido em 37 participantes nas duas séries.

A Caster Semenya de 2022 está longe de ser a mesma de 2009. Na altura, com 18 anos, virou o mundo do atletismo de pernas para o ar com o título mundial dos 800 metros, proeza que viria a repetir em 2011 e em 2017. Nos Jogos Olímpicos, conseguiu a medalha de ouro na distância em Londres-2012 e no Rio de Janeiro-2016.

O currículo, invejável, de Caster Semenya esconde o maior motivo pelo qual todos nos lembramos da atleta sul-africana, hoje já com 31 anos. A atleta nunca conseguiu desfrutar dos seus títulos, da sua supremacia, do prazer de ser boa na sua maior paixão. Desde o início, foi arrastada para uma novela onde a testosterona, as hormonas, a masculinidade, o aspeto, as queixas e a inveja foram personagens principais.

A vida de Caster Semenya foi destruída pelas polémicas. A sua privacidade foi invadida a cada novo capítulo de um livro que devia envergonhar todos aqueles que contribuíram para a sua escrita. As adversárias, as federações nacionais, a IAAF e especialistas, reais e virtuais, não foram capazes de aceitar a participação de Caster Semenya como mulher.

Os testes sucederam-se. Os resultados eram divulgados em direto. Caster Semenya queria apenas correr. Primeiro quis-se saber se Caster era de facto uma mulher. Depois, quão mulher seria. Mais tarde, decidiu-se que teria de ser «menos homem» se quisesse continuar a competir. Ano após ano, a discussão adensava-se e contribuiu para que a atleta fosse forçada a fazer um tratamento hormonal para reduzir os valores de testosterona.

Foi a solução encontrada para atenuar uma «vantagem competitiva» que muitos consideravam ser ilegal. A hormona que nunca conseguiram reduzir a Caster Semenya foi a da resistência. A cada acusação, a cada nova regra, a cada golpe, a sul-africana deu a outra face e continuou a competir. Mesmo quando foi proibida de correr os 400, os 800 e os 1500 metros.

Com uma regra feita à medida, Caster Semenya foi afastada das suas provas de eleição. Não desistiu. Tentou chegar aos Jogos Olímpicos de Tóquio nos 200 metros e falhou. Chegou aos Mundiais do Oregon esta semana nos 5000 metros e… foi um fracasso. Mas um fracasso figurativo, porque nem todos seriam capazes de dar esta demonstração de força quando o mundo conspira em conjunto há mais de uma década.

Caster Semenya é vítima de uma sociedade com pouca capacidade de aceitar o cinzento. De uma estrutura com pouca margem de manobra para flexibilizar tabuleiros. De um ambiente em que as adversárias pressionam, respaldadas por entidades e associações presas ao passado.

Não que não devam existir regras, que a federação internacional de atletismo, e o desporto em geral, não deva fazer um trabalho de pesquisa e implementação de um regulamento que permita anular vantagens competitivas injustas. Mas o tema da vantagem competitiva é uma caixa de pandora que, uma vez aberta, pode ser impossível de fechar.

Nas últimas semanas foi dado eco a um estudo que, uma vez mais, revelava que crianças nascidas nos primeiros meses do ano têm muito mais probabilidade de terem sucesso no desporto. A diferença entre alguém nascido a 1 de janeiro e 31 de dezembro pode ser o único fator relevante para distinguir quem fica num plantel, quem é escolhido para uma bolsa, quem fica lançado numa autoestrada para o sucesso.

No limite, poderíamos dizer o mesmo para quem cresce com mais 20 centímetros, quem nasce em certas regiões do globo, quem nasce em famílias endinheiradas, quem tem menos propensão para engordar. Podemos ir ao limite do ridículo sob a sombra das vantagens competitivas.

A verdade desportiva e as vantagens competitivas, legais ou ilegais, nunca irão conseguir esconder a verdadeira conclusão dos últimos 13 anos: Caster Semenya é uma vítima e foi usada como exemplo por quem se limitou a ver números e não teve pudores em trazer para a rua o que tinha de ser cuidado e determinado dentro de portas.

Consigo compreender a sensação de injustiça de uma atleta que tenha tido de competir contra Caster Semenya no seu auge. Mas também eu me senti injustiçado quando tive de jogar contra alguém com o talento de Cristiano Ronaldo. Ou Michelle Brito terá sentido por saber que havia Serena Williams no circuito WTA. Ou qualquer ciclista sente perante a capacidade de resistência de Tadej Pogacar ou Jonas Vingegaard no Tour.

Caster Semenya tinha de facto uma vantagem competitiva. Mas era apenas uma. As rivais não tiveram pudores em juntar-se para acionar a vantagem das burocracias, dos tribunais, do preto e branco.

18 de Julho, 2022

O Europeu feminino e a representatividade

Rui Pedro Silva

Portugal participou na fase final pela segunda vez

Não jogo futebol há tanto tempo que preciso de pensar um pouco para me lembrar de quando foi a última vez. Por mais que pense, nem sequer consigo ter a certeza, mas acho que consigo dizer com bastante segurança que foi há mais de quatro anos.

Quando me perguntam sobre isto, ficam ainda mais chocados quando lhes respondo que nem sequer tenho tido vontade de jogar, que não tenho sentido falta. No fundo, tenho medo. Se até depois de corridas tranquilas ou caminhadas mais longas, fico com os tendões de Aquiles inflamados que me fazem temer o momento de colocar o pé no chão pela primeira vez de manhã, o que não poderia acontecer com sprints intervalados com mudanças de direção, toques na bola e tanto mais?

Ontem foi a última vez que respondi com «não sinto a falta» quando me perguntaram sobre isso. Ao final do dia já tinha mudado de opinião. Na verdade, quero jogar. Quero tentar. Mesmo que tenha de me controlar ainda mais do que nos últimos anos, sinto que vai compensar mesmo que depois passe três, cinco, sete dias a esperar que a inflamação reduza.

O que provocou esta mudança? Foi por ter visto amigos, com quem me cruzei durante toda a adolescência, com quem e contra os quais joguei durante anos, com disputas no onze titular pelo meio, a jogar. Ali, naquele momento, quis voltar atrás, regressar àquele mundo de quatro treinos por semana mais um jogo ao sábado ou ao domingo. As mazelas estão presentes em todos: há quem se queixe das costas, quem tenha de sair por causa dos joelhos, quem nem tente fazer um sprint com medo da consequência. Mas resistem.

De certa maneira, vi-me representado. E aquilo que sentimos quando vemos um jogo continua a ser o mais importante. Não há nada mais mágico do que os olhos de uma criança quando começa a ver futebol. O cérebro é invadido de desejos: cada gesto técnico, cada execução é absorvida e, se for preciso, passa horas a tentar imitar no quintal, na rua, no recreio. O passe, o remate, a trivela, o cabeceamento, a receção, a desmarcação, tudo conta.

Com o passar dos anos, o inalcançável muda de dimensão. A criança dá lugar ao adolescente, o adolescente é superado pelo adulto e, rapidamente, o «um dia serei capaz de fazer isto» é substituído por um «agora já nem isto consigo fazer».

Ver gente da minha idade, com quem cresci, com quem joguei, com quem tenho lidado anualmente, a jogar, fez-me pensar que não há razão para deixar de ter sido possível. Ver que é possível é completamente diferente de nos dizerem que é possível. Acontece em todo o lado.

Com raparigas, a história sempre foi diferente. Eram crianças como nós, mas a mentalidade era outra. Não só não conseguiam ver que era possível (tirando o Mundial-1999 nos Estados Unidos, nunca houve grande espaço para o futebol feminino na televisão), como ainda lhes diziam que não era.

Os últimos anos, com o aparecimento do Sporting e do Sp. Braga primeiro e do Benfica depois, ajudaram a catapultar o movimento feminino no futebol de um modo que não parece ter volta a dar. As grandes provas internacionais começaram a ter transmissão televisiva e a presença de Portugal, ainda mais este ano do que em 2017, dá o mediatismo necessário para chegar às jogadoras do amanhã espalhadas pelos cantos mais remotos do país.

Um empate e duas derrotas não chegam para camuflar a maior importância desta fase final. O raciocínio é o mesmo: tivemos crianças a absorver cada passe, cada remate, cada trivela, cada cabeceamento, cada receção, cada desmarcação. E se é verdade que jogadores como Messi, Ronaldo ou Mbappé podem servir de inspiração, não há nada como ver mulheres, portuguesas, muitas delas bastante jovens, que passaram pelas mesmas dificuldades e que agora estão a viver um sonho que parecia inalcançável há tão pouco tempo.

A ideia-base aplica-se a cada canto da sociedade: a representatividade é fundamental. Sem ela, a evolução fica muito mais difícil. Esta geração pode não ser verdadeiramente pioneira no futebol em Portugal mas está a construir um legado impossível de apagar. Lemas de grandes marcas como «Impossible is Nothing» and «Just do It» deixaram de ser apenas «31 de boca». Continua a ser difícil mas tornou-se possível, tornou-se real. O futuro será brilhante.

15 de Julho, 2022

Está quase na altura de mudar de página

Rui Pedro Silva

Tiger Woods

Os livros não são todos iguais. Agarram-nos de maneira diferente e se uns persistem para sempre nas nossas vidas, há outros que não nos conseguem fazer sequer ultrapassar os primeiros capítulos. Os Maias, de Eça de Queiroz, é um bom exemplo disso. Ainda ontem, num daqueles grupos de amigos nas redes sociais para comentar desporto, apareceu uma referência a esta obra de leitura obrigatória (para alguns) durante o ensino secundário. «Só li o resumo. Nunca passei da descrição da casa, que eram os primeiros 73 capítulos.»

Sim, o livro tem um início demasiado mastigado mas o que me ficou na memória foi a parte do passeio final já, como o nome indica, no final do livro. A vida não é muito diferente. Somos arrastados para os mesmos momentos e saímos de lá com experiências e recordações diferentes. No mundo do desporto, estamos à beira de terminar um dos capítulos mais relevantes na história. Está quase na altura de mudar de página e, ao contrário da descrição da casa, este parece estar a provocar mais emoções ao nível do passeio final. Porque, na verdade, estamos a assistir a demasiados passeios finais nas várias modalidades.

Tiger Woods saiu em lágrimas do British Open, antevendo a eliminação no cut num dos quatro majors da temporada. Tiger tem 46 anos, venceu o seu primeiro grande torneio em 1997 e tornou-se uma figura indissociável do golfe. Há muito que se sente que o auge já passou, mas tem resistido a ventos, marés e tempestades (ou polémicas e lesões, se preferirem), para se evitar o naufrágio. Quando ganhou o Masters em 2019, abrilhantou esta página.

Mas Tiger Woods não é o único. Roger Federer mantém-se na sombra mas a final perdida em Wimbledon em 2019 pareceu ser o último grande cartucho da sua carreira. Rafael Nadal e Novak Djokovic continuam a ganhar grand slams mas já têm 36 e 35 anos. E Serena Williams tem 40. E Cristiano Ronaldo e LeBron James têm 37. E Messi tem 35. E Lewis Hamilton 37.

Talvez esta não seja a melhor era na história do desporto mundial. Talvez Hamilton não seja o melhor piloto na história, talvez LeBron James não esteja sequer no top-3, talvez a rivalidade Borg-McEnroe seja melhor que este monstro de três cabeças do ténis mundial. Talvez Tiger Woods não tenha sido assim tão importante, Serena Williams não tenha passado de um eucalipto no ténis feminino e Messi e Ronaldo uma imitação fraca da rivalidade em diferido entre Pelé e Maradona.

Talvez alguém consiga acreditar em cada uma destas coisas e em todas elas juntas. Difícil é desvalorizar a importância desta era e aceitar que, de facto, está prestes a acabar. Estou certo de que há grandes nomes a aparecer, que Tadej Pogacar é um fenómeno no ciclismo, que Max Verstappen e Charles Leclerc se sentem prontos para assegurar a passagem de testemunho, que Carlos Alcaraz e companhia querem disputar a hegemonia da próxima década, mas o que estamos a acabar de ler nesta página não se constrói num piscar de olhos.

Messi e Ronaldo são os jogadores com mais Bolas de Ouro. Entre eles têm doze distinções e ainda nove edições da Liga dos Campeões, para além de mais de 1500 golos. A nova geração até pode chegar a esse ponto, mas teremos de esperar pelo menos uma década até atingirem algo próximo, se é que alguma vez voltará a acontecer. E o mesmo se pode dizer sobre o ténis, a Fórmula 1 e o golfe.

Os recordes foram feitos para serem batidos mas não têm de surgir imediatamente uns a seguir aos outros. Será possível imaginar haver novamente três tenistas contemporâneos capazes de atingir os 20 grand slams na carreira? Uma rivalidade como a de Ronaldo e Messi? Uma atleta como Serena Williams? Uma figura pioneira e hegemónica como Tiger Woods? Um basquetebolista com a longevidade e capacidade de fazer a diferença não só na dinâmica dentro de campo mas também fora dele como LeBron James? Um piloto com os resultados de Lewis Hamilton?

É ingénuo pensar que todos estes feitos vão permanecer intocáveis. Vai acabar por acontecer. É o que a história nos demonstra. Mas nunca até o início do século XXI e provavelmente *nunca* a partir daqui teremos tantos desportos com períodos de reinado intocável com «os melhores de sempre» como agora.

O problema – o nosso, não o deles – é que este agora é cada vez menos um hoje e cada vez mais um amanhã. Está a chegar a hora de mudar a página. E o capítulo está a chegar ao fim. Como em tantos livros que vamos lendo durante a vida, sentimos a tentação de parar o tempo, de ler mais devagar, de parar a leitura. Para assistir a cada momento, para absorver cada palavra com o sentimento com que foi escrito. Dá vontade de não mudar de página, de imaginar o que poderia ter sido se o mundo parasse de girar e estes atletas durassem para sempre.

Não é isso que vai acontecer. A página muda-se sozinha e não há nada que possamos fazer a não ser aproveitarmos cada instante. E ansiar pelo incerto, pelos diamantes que estão prestes a brotar no desporto mundial e que um dia darão entrevistas como superestrelas a dizer que foram influenciados por este livro, por este capítulo, por estas palavras, por estas figuras que poderão terminar a carreira mas serão recordados para sempre como os melhores.

A descrição da casa já lá vai. Agora todos merecem ter um passeio final que lhes faça jus.