O fenómeno expansionista do treinador português
Não tenho filhos. Não tenho irmãos mais novos. Não tenho primos mais novos. E os filhos dos meus primos não são chegados o suficiente a ponto de acompanhar o que estudam, e como estudam, na escola. Por isso, só sinto que posso falar com propriedade de como era a educação sobretudo na década de 90, quando estava lá, por dentro.
É algo de que me recordo várias vezes por ano. De cada vez que existe a discussão sobre o binómio Descobrimentos vs. Expansão na agenda mediática, lembro-me de como os manuais escolares, a aprendizagem e até a forma como a absorvíamos potenciava o orgulho dos feitos de Portugal. O triângulo comercial com África e as Américas era visto como um golpe de génio: sair da Europa de mãos a abanar, encher embarcações com escravos de um lado do Atlântico e trocá-los por ouro e prata do outro lado do oceano. Assim, simples, como se ser um gestor de topo fosse apenas pôr números no excel para no final o resultado ser aquele que se deseja.
Ao longo das últimas décadas tenho recordado a minha ingenuidade perante este cenário mas nunca como até há um mês senti tanta vergonha. Aconteceu durante uma viagem a Washington, no Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana.
O museu faz o enquadramento perfeito e o tráfico de escravos assume papel fundamental. Aí, logo no primeiro terço, é impossível não tropeçarmos no nome de Portugal, do Infante D. Henrique, de algumas das embarcações que se especializavam no tráfico humano. A vergonha surge em crescendo e explode quando surgem as estatísticas: num determinado período, Portugal foi responsável pelo tráfico de mais de cinco milhões de pessoas; mais do que todos os países europeus que surgiam com dados… juntos.
Hoje, Portugal vive novamente um período de expansão que tem pouco de descobrimentos. Gostava de dizer que me enche de orgulho mas tenho algum receio de olhar para esta tendência de outra forma daqui a uns 25, 30 anos. Por isso, vou ser comedido nas palavras.
Falo do Brasileirão. Paulo Sousa já saiu do Flamengo mas atualmente Portugal tem treinadores no Palmeiras, Corinthians, Botafogo e Cuiabá. Abel Ferreira tem estado a fazer história já depois de Jorge Jesus ter aberto a cancela. Vítor Pereira promete lutar pelo título, Luís Castro tem um longo caminho pela frente e António Oliveira deve lutar pela permanência até ao fim.
Estamos em 2022. Há 30 anos, o futebol português era radicalmente diferente. A Geração de Ouro estava a dar os primeiros passos e havia dois grandes embaixadores: Rui Barros e Paulo Futre. Não eram os únicos no estrangeiro – a Real Sociedad tinha a dupla Carlos Xavier e Oceano, por exemplo – mas eram os principais destaques. A ponta de uma lança ainda muito pequena, numa altura em que as fronteiras do futebol eram mais fechadas e havia menos oportunidades, numa altura em que as secções de Internacional dos jornais desportivos podiam dar-se ao luxo de destacar tudo o que todos os futebolistas portugueses no estrangeiro tinham feito.
Tudo foi mudando pouco a pouco. Portugal deixou de ser um país sobretudo importador para se tornar exportador. Onde antes tínhamos treinadores húngaros, britânicos, romenos e, claro está, brasileiros, destacavam-se agora os portugueses. O jogador português também ganhou relevância e, falando do Brasil, houve espaço para, pelo menos, Paulo Madeira no Fluminense e José Domínguez no Vasco da Gama. Foram experiências insólitas, invulgares, mas que ajudaram a confirmar a tendência: podia haver um português em cada canto do mundo. E os jornais deixaram de ter espaço para falar de todos os emigrantes.
Se Juventus, Atlético Madrid, Manchester United, Parma, Barcelona e muitos outros beneficiaram entre o público português da sua representatividade lusa na década de 90 e início do século XXI, hoje o interesse no Brasileirão parece crescer. Há jogos praticamente todas as noites e mesmo que os intérpretes falem sobretudo português cantado existe um interesse diferente nos clubes orientados por portugueses.
Hoje, em 2022, temos mais treinadores em clubes de relevo no estrangeiro do que havia futebolistas nacionais além-fronteiras em 1992. Não deixa de ser uma moda. Artur Jorge foi dos pioneiros, José Mourinho lançou uma tendência irreversível e, claro, a existência de um empresário chamado Jorge Mendes não prejudicou em nada esta circulação (mesmo não sendo responsável único).
Portugal deixou de exportar escravos. Portugal deixou de ser o ponta de lança da violação de direitos humanos, mesmo numa altura em que a Convenção de Genebra não passava de um cenário distante, e surge agora na vanguarda da exportação de conhecimento. O futebol é, à sua maneira, uma ciência. E os cientistas na língua de Camões estão na moda.
É provável – e mesmo inevitável – que a moda passe e que esta invasão nos clubes brasileiros se torne mais comedida. Mas a moda existe por uma razão. Mourinho, Jesus e Abel, cada um à sua maneira, foram capazes de criar uma ilusão sustentada em resultados. Da mesma forma que na década de 90 se achava que cada búlgaro, romeno ou argentino ia ser um astro da bola, também agora se olha para o treinador português como alguém competente capaz de garantir resultados. Enquanto assim for, a tendência tem tudo para se consolidar.
Até lá, um Cuiabá-Fortaleza continuará a despertar mais interesse no adepto português do que em qualquer momento na história. Falando por mim, vi mais jogos do Brasileirão no último mês do que nos dez anos anteriores. Resta saber o que dirão os manuais sobre isto.