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É Desporto

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29 de Agosto, 2021

Parfait Hakizimana. Fugir para escapar ao destino trágico da mãe

Rui Pedro Silva

Parfait Hakizimana

Há nomes que podem ter boa intenção mas que não fazem sentido quase desde o momento zero da vida de alguém. Para a família Hakizimana, dar o nome Parfait ao filho pode ter sido repleto de boas intenções mas a vida real começou por ser um murro no estômago atrás de murro no estômago.

Parfait Hakizimana nasceu a 3 de julho de 1988 no Burundi, na África Central, praticamente enclausurado entre o Ruanda, a norte, a República Democrática do Congo, a oeste-sul, e a Tanzânia, a este-sul. Em 1996, com apenas oito anos, a vida começou a ser imperfeita.

A guerra civil do Burundi tinha deslocado a família para o campo de deslocados e foi precisamente aí que Parfait viu a mãe ser baleada e assassinada. Parfait estava suficientemente perto, foi atingido no braço esquerdo e passou dois anos a receber cuidados médicos de qualidade duvidosa.

«Em África, os cuidados médicos não são grande coisa. O meu braço estava seriamente ferido e demorou muito tempo a sarar», lamentou.

Parfait tinha uma escolha pela frente: lamentar-se ou continuar a viver da melhor forma que conseguiu encontrar. Escolheu a segunda: «Para superar as dores da minha infância e da minha vida em geral, concentrei-me na escola e no desporto. Preferia fazer desporto porque era uma rede de segurança para mim, era onde me sentia melhor, ajudou-me a sentir mais feliz, a ter alegria, a alegria que não fui capaz de ter durante a minha infância».

O desporto mudou-lhe a vida. Parfait começou a praticar taekwondo com 16 anos como parte do processo de reabilitação para a lesão no braço e, uma vez mais, reconhece a importância do de algo que o ensinou a respeitar os outros e também a sentir-se orgulhoso e a encontrar uma felicidade que nem sabia que existia.

O problema? O problema é que os fantasmas do passado nunca chegaram a desaparecer completamente e em 2015, com 27 anos, decidiu fugir do Burundi com medo que pudesse vir a ter o mesmo destino da mãe. O país estava cada vez mais violento e Parfait foi viver para o Campo de Refugiados de Mahama no Ruanda.

«Tinha muito medo de vir a ser assassinado como a minha mãe, foi por isso que decidi sair do país. Foi muito difícil. Tive de sair sem a minha família. Não tinha amigos no Ruanda, fui completamente sozinho. E quanto lá cheguei a vida era muito complicada porque vivíamos em tendas e não tínhamos nada para beber ou comer», recordou.

Uma vez mais, e como sempre, o desporto veio em sua salvação. Parfait decidiu criar um clube de taekwondo no centro de refugiados e o sucesso foi praticamente instantâneo, com mais de 1000 interessados. «Queria apenas poder ajudar os outros: crianças, adultos, mulheres, raparigas. Queria ajudar as pessoas como eu. Fiz isto para encorajar as pessoas a não perderem a esperança. Os refugiados podem não ter muito mas o desporto ajuda-os a esquecerem os seus problemas.»

Parfait vai competir na categoria de -61 quilos de K44 do taekwondo. Não estará sozinho. Haverá pelo menos mil refugiados a viverem cada golpe com ele.

29 de Agosto, 2021

Lisa Adams. A glória do peso corre-lhe no sangue

Rui Pedro Silva

Lisa Adams

A família Addams marcou gerações inteiras. Morticia, Gomez, Fester, Wednesday, Pugsley, Lurch ou simplesmente a Coisa (a pequena mão que se move de forma assustadoramente… coómica) fazem parte de um elenco que compõem a família Addams mais famosa do mundo, real ou ficcionado.

Mas também existe a família Adams. Tem menos um D. Não tem mãozinhas a palmilhar território, não é tão assustadora, vem da Nova Zelândia e prefere aterrorizar através do desporto do que da sua mansão sombria.

 Steven Adams, jogador da NBA, talvez seja o mais famoso, mas Valeria Adams é claramente a que tem melhor currículo. Ainda recentemente, nos Jogos Olímpicos, conseguiu a quarta medalha olímpica da sua carreira no lançamento do peso, para mal dos pecados da portuguesa Auriol Dongmo.

Depois de ter sido campeã olímpica em Pequim-2008 e Londres-2012 e prata no Rio de Janeiro-2016, foi bronze em Tóquio com cinco centímetros de vantagem sobre a lançadora portuguesa.

Mas o impacto da família Adams não fica por aqui. Não são todos filhos da mesma mãe, mas há quase vinte (18) distribuídos um pouco por todo o mundo, sobretudo na Nova Zelândia. Há outros jogadores profissionais de basquetebol e, a partir desta semana, uma campeã paralímpica, Lisa Adams, no atletismo. Querem tentar adivinhar a categoria? Isso mesmo, no lançamento do peso.

Lisa é praticamente a cara chapada da irmã de Valerie e partilha o talento. Tem 30 anos e uma carreira bastante mais curta. Campeã do mundo no Dubai em 2017 com 14,80 metros, conseguiu levar o estatuto, ultrapassou a marca dos 15 metros e sagrou-se campeã olímpica em Tóquio, na final da prova, com 15,21 metros (ainda assim a 29 centímetros do seu recorde do mundo).

A neozelandesa que também vai competir no lançamento do disco sagrou-se campeã na categoria de F37, destinada a atletas com paralisia cerebral. A treinadora é, como não poderia deixar de ser, a irmã Valerie.

«Quando estamos numa competição, ela é acima de tudo a minha treinadora. Somos muito boas a distinguir a relação profissional da familiar. No centro de treinos, no ginásio, na base dos lançamentos ela é apenas a minha treinadora. O truque é não pensar demasiado nas coisas», contou.

Lisa Adams confessa que a relação pode causar alguma confusão a quem vê de fora, até porque é alguém que tem uma carreira recheada de medalhas, pódios, títulos, e reitera que não é isso que faz dela alguém com mais ou menos hipóteses de chegar longe. «No final do dia, sou eu que tenho de dar tudo até à última gota de suor. Tenho de dar tudo no campo».

Dar tudo compensou. Lisa Adams pode dizer que foi campeã paralímpica no ano em que a irmã não foi além da terceira posição. Pequenas competições entre irmãos nunca fizeram mal a ninguém.

29 de Agosto, 2021

Salum Kashafali. Da guerra civil em África ao ouro pela Noruega

Rui Pedro Silva

Salum Kashafali

«Nem sei o que dizer. Vim do nada. Andava a pedir dinheiro na rua.» Salum Ageze Kashafali é o novo campeão paralímpico dos 100 metros em T12 (categoria destinada para atletas com deficiência visual) e não podia sentir mais o peso do caminho.

Não foi o ouro no final que o afetou, foi sentir a jornada chegar ao fim. «Mudei-me para a Noruega como um refugiado. Passei por tanta coisa, por balas e por fome. Tornar-me um dos melhores do mundo significa muito muito para mim. Vale a pena. Vale a pena vir do zero e alcançar alguma coisa. É a melhor forma de pôr as coisas: tudo é possível».

Salum Kashafali nasceu na República Democrática do Congo (ex-Zaire) a 25 de novembro de 1992. Com apenas 12 anos foi-lhe diagnosticada uma lesão que provocaria a perda da visão a curto prazo. Por esta altura, estava na Noruega há apenas um ano depois de escapar à guerra civil.

«Foi muito difícil a mudança para a Noruega porque só sabia falar francês e swahili. Foi muito difícil adaptar-me mas conseguiu safar-me e no final tive muitos amigos a ajudar-me. Ir para a Noruega salvou-me a vida», garantiu.

A vida na República Democrática do Congo era muito difícil daquela que acabou por encontrar em Bergen. «Não se tratava de correr ou de jogar futebol. As minhas prioridades eram encontrar comida e sobreviver, por isso chegar à Noruega foi como ganhar a lotaria e tornar-me bilionário. Nunca, nem nos meus sonhos mais impossíveis, consegui imaginar que teria um telhado por cima da cabeça e comida na mesa todos os dias», disse.

O desporto tornou-se uma parte comum da sua vida assim que chegou à Noruega. O futebol foi a primeira escolha mas com a perda gradual de visão concentrou-se no atletismo. «Cheguei a um ponto em que já não via nada, por isso tentei correr e… vencei a minha primeira corrida».

O resto é uma história de sucesso. Salum Ageze Kashafali começou a competir pela Noruega em 2019 e desde então já foi campeão do mundo, campeão da europa e campeão paralímpico com um novo recorde mundial: 10,43 segundos.

Nada mau para quem é agora professor de matemática em Bergen. Haverá alguém melhor para explicar que tudo é possível mesmo quando as probabilidades parecem estar todas contra?

28 de Agosto, 2021

Allysa Seely. O adiamento que lhe valeu um ouro paralímpico

Rui Pedro Silva

Allysa Seely

É norte-americana, nasceu em 1989 e parece estar destinada a ganhar. Há cinco anos no Rio de Janeiro, foi medalha de ouro no triatlo (PT2). Em Mundiais, soma títulos em 2015, 2016 e 2018, segundos lugares em 2017 e 2019 e um terceiro em 2012. Por isso, não seria de espantar que Seely fosse uma enorme favorita à vitória em Tóquio em 2020.

E acabou por ser, ganhando mais uma medalha de ouro, mas apenas porque uma série de fatores se conjugaram de forma (im)perfeita. Seely tem a perna esquerda amputada abaixo do joelho desde 2013 como resultado de uma malformação (Chiari II) com repercussões na espinhal medula. Os resultados do tratamento deterioram o estado do pé esquerdo e a amputação foi o resultado necessário.

Mas os problemas de Allysa Seely não terminam por aqui. A atleta que sofre de epilepsia por culpa do seu estado de saúde esteve muito perto de falhar os Jogos Paralímpicos de Tóquio, sobretudo se estes não tivessem sido adiados. Em janeiro de 2020, contraiu uma infeção na perna direita que obrigou a uma operação.

Depois de quatro semanas a andar de muletas, surgiu outra infeção que exigiu uma nova operação em março. Dia após dia, o tique-taque para Tóquio parecia cada vez mais sonoro. À segunda operação, Seely pediu ao médico para retirar os pontos mais cedo para permitir a participação nos eventos de qualificação para os Paralímpicos.

Seely ia correr um grande risco mas o evento foi cancelado na véspera. «Foi um grande momento, um momento aleluia. Voltei a treinar e em julho regressei à sala de urgências com uma infeção no sangue e com uma inflamação no coração, que só foi diagnosticada em outubro de 2020. Passei seis meses longe de casa, longe do treino, longe de me sentir eu mesma», queixou-se.

Allysa Seely voltou a treinar em fevereiro de 2021, mesmo com sintomas como febre, dores e alergias, mas nada a impediu de viajar até Tóquio e revalidar o título paralímpico. Estava escrito nas estrelas… só foi preciso sofrer um pouco. Sofrer muito, vá.

28 de Agosto, 2021

Abbas Karimi. Um afegão nos Jogos Paralímpicos

Rui Pedro Silva

Abbas Karimi

Zakia Khudadadi e Hossain Rasouli tinham viagem marcada de Kabul para Tóquio poucos dias depois da tomada da capital por parte dos talibãs. Sair do Afeganistão tornou-se uma missão impossível para a maioria e permitir que dois atletas paralímpicos pudessem cumprir o sonho de competir no Japão está longe das prioridades de todos, estejam de que lado estiverem.

Durante a cerimónia de abertura, de forma simbólica, houve até quem tenha transportado a bandeira afegã mas há, entre os milhares de atletas que estão a competir em Tóquio, um afegão. Vive nos Estados Unidos, compete pela equipa dos refugiados e tudo indica que será mesmo o único afegão nesta edição dos Jogos Paralimpicos. O seu nome é Abbas Karimi.

Tem 24 anos, vive na Florida e tem reserva em duas provas em Tóquio. Nos 50 metros mariposa em S5, conseguiu atingir a final e terminar na oitava posição. Na próxima segunda-feira, tentará fazer o mesmo nos 50 metros costas da mesma categoria.

Abbas Karimi nasceu sem os dois braços no primeiro dia de janeiro de 1997 e depois de ter tentado dar uns toques no kickboxing dedicou-se à natação com 14 anos. Tudo porque o irmão ajudou a construir uma piscina de 25 metros para a comunidade perto de Kabul.

«Tinha 13 anos quando saltei para a água pela primeira vez. Tinha muito medo mas foi dessa forma que comecei. Dia após dia, achei cada vez mais interessante e foi assim que aprendi a nadar. Adorava a água desde criança e às vezes eu e os meus amigos até nos baldávamos às aulas para irmos nadar para o rio. Saltávamos vestidos e ficávamos por la até o sol secar as nossas roupas», recorda com carinho.

«Foi por isso que me tornei um nadador, porque sempre tive tanto interesse na água», acrescentou.

O Afeganistão não gostou tanto dele como ele de água e com 16 anos decidiu fugir sem a família para escapar ao conflito e tentar ser atleta de alta competição. Estávamos em 2013. Abbas Karimi passou pelo Irão, pagou a contrabandistas para entrar na Turquia e por lá ficou quatro anos sem documentação até chegar um contacto salvador dos Estados Unidos.

«Estava na Turquia como refugiado, não tinha documentação, não tinha um passaporte válido. O Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas ajudou a explicar o meu caso e os Estados Unidos aceitaram-me. Quando finalmente cheguei, percebi que era uma nova oportunidade, a minha segunda vida», disse

Abbas Karimi está a estrear-se em Jogos Paralímpicos porque em 2016 ainda não havia equipa de refugiados. Mas em Mundiais de Natação Adaptada já conseguiu um vice-campeonato mundial nos 50 metros mariposa na Cidade do México. Pelo meio, só por uma vez regressou ao Afeganistão, em 2019, para o funeral do pai.

«Voltei durante 11 dias para estar com a minha mãe e chorei do início ao fim. Quis desistir de tudo. Tentar ser campeão paralímpico custou-me muita coisa. O meu pai, quando eu nasci, disse que sabia que eu iria conseguir alcançar algo especial. Disse também que de todos os filhos e filhas, eu era o único que iria pôr o seu nome no topo do mundo», recordou.

Karimi. Abbas Karimi. Atleta paralímpico. Refugiado. Único afegão em Tóquio-2020. Não é para todos, literalmente.

27 de Agosto, 2021

Ibrahim al Hussein. Perder a perna para salvar um amigo

Rui Pedro Silva

Ibrahim al Hussein

Síria, 2012. Um amigo de Ibrahim al Hussein está no meio da estrada a gritar por ajuda. Acabou de ser atingido e já vê a morte a chegar. Não se consegue mexer e precisa de alguém que o arraste dali para um lugar seguro.

Naquele momento, Ibrahim al Hussein, 24 anos, tem duas hipóteses: ajudar o amigo e pôr em risco a própria vida ou zelar pela sua segurança. A escolha, para ele, foi óbvia: «Decidi que tinha de ajudar porque nunca seria capaz de me perdoar o facto de o ver morrer no meio da estrada».

A decisão foi simples mas a consequência chegou mesmo, uns segundos depois. «Estávamos a andar perto de um cruzamento quando houve uma explosão mesmo à nossa frente. Todos perdemos alguma coisa. Eu fiquei sem a minha perna direita, tive de meter alguns parafusos na perna esquerda, feri o nariz e a órbita esquerda. Um dos meus amigos perdeu uma perna, outro a mão direita. Toda a gente ficou ferida naquele momento», recorda com tristeza.

«Depois do acidente houve uma fase em que fiquei muito triste mas depois apercebi-me de que não poderia continuar daquela forma. Disse-me que não poderia parar de fazer o que estava a fazer antes do acidente. Estava um pouco deprimido por perder a minha perna mas o meu amigo que sobreviveu agora tem três filhos. Ele está feliz e eu posso viver por causa disso», acrescentou.

Viver na Síria não deixou de ser um perigo para El Hussein e a decisão de abandonar o país onde vivia com 13 irmãos chegou apenas dois anos depois. Passou pela Turquia antes de receber asilo na Grécia. «No início foi difícil porque não falava a língua e não tinha ninguém, mas entretanto encontrei um médico que me ajudou. É como um irmão. A prótese da perna que normalmente custaria 12 mil euros… foi feita por ele. E ofereceu-me. Agora estou feliz na Grécia. Adoro o país e as suas pessoas».

O desporto corria nas veias de Ibrahim muito antes do acidente. O pai tinha sido treinador de judo e de natação e a estreia nas águas começou no rio Eufrates com apenas cinco anos. Mais a sério, e depois do acidente, foi apenas em 2016. «Via a natação como uma forma de sair da minha depressão. Quando estou a treinar, deixo de pensar que tenho uma deficiência e parece que está tudo igual ao que era antes».

«É difícil ir da natação para a natação adaptada mas aconteça o que acontecer na vida tens de continuar a fazer as coisas que te dão prazer», disse.

27 de Agosto, 2021

Ibrahim Hamadtou. Jogar ténis de mesa com a boca

Rui Pedro Silva

Ibrahim Hamadtou

Não foi a maior revelação desportiva dos Jogos Paralímpicos de Tóquio. Perdeu na estreia com o sul-coreano Hong-Kyu Park e, dois dias depois, com o chinês Chao Chen. O egípcio disse ciao com duas derrotas em dois jogos mas cativou muita gente. Sobretudo quem não o conhecia do Rio de Janeiro e quem nunca tinha visto a sua forma de jogar.

O ténis de mesa é um desporto rápido. Ágil. Às vezes até violento pela forma como a raquete embate na bola para provocar trajetórias ora supersónicas ora ziguezagueantes que deixem os adversários sem reação.

Pode ser praticado só com a mão dominante, embora a segunda ajude bastante, seja para antecipar o serviço ou para servir de equilíbrio. Para Ibrahim Hamadtou não há nem mão dominante nem mão de apoio.

Hamadtou perdeu os dois braços quando tinha dez anos, num acidente de comboio. A partir daí, era difícil encontrar um desporto que o acolhesse da mesma forma, sobretudo numa aldeia perdida no meio do Egito.

«Na nossa aldeia, naquela altura, só dava para jogar futebol e ténis de mesa. Por isso é que eu jogava as duas. Era lógico que praticasse futebol mas fui para o ténis de mesa por causa de um desafio. Estava no clube a arbitrar um jogo entre dois amigos quando houve uma discórdia num dos pontos. Quando eu decidi a favor de um, o outro disse-me que eu não devia interferir porque nunca seria capaz de jogar. Foi isso que me fez ir para o ténis de mesa», garantiu.

Sem braços, Hamadtou joga ténis de mesa com a boca. Utiliza um dos pés para levantar a bola e preparar o serviço e faz tudo o resto com a raquete na boca. «Comecei por tentar usá-la presa na minha axila e também tentei outras coisas, mas não resultaram muito bem. Finalmente, tentei usar a minha boca. Levei quase um ano de prática até conseguir o efeito desejado. Com o treino e a regularidade dos jogos, comecei a melhorar», garantiu.

A melhoria de Hamadtou pode não ter sido suficiente para ultrapassar a fase de grupos em Tóquio mas talvez esteja apto para desafiar o seu ídolo: o português Cristiano Ronaldo. O agora jogador do Manchester United também tem um historial de não gostar de perder no ténis de mesa nem a feijões, por isso talvez fosse um jogo interessante.

26 de Agosto, 2021

Pin Xiu Yip. S(w)im, senhora deputada

Rui Pedro Silva

Pin Xiu Yip

Uma distrofia muscular diagonisticada à nascença fez com que a vida de Pin Xiu Yip nunca pudesse ser aquilo que os pais tinham sonhado para ela. Mas, às vezes, como diz o ditado, os caminhos guardados acabam por trazer surpresas e Yip é, hoje, uma das figuras mais conceituadas em Singapura.

Nascida em 1992, Yip começou a nadar com seis anos. «A capacidade que tenho para me mover livremente é a razão para adorar a natação». E adorar talvez seja um eufemismo. Yip chegou às provas de competição com 12 anos, em 2004, e apenas quatro anos depois, nos Jogos Paralímpicos de Pequim, tornou-se a primeira atleta de Singapura a vencer uma medalha de ouro no evento (50 metros S3).

Foi apenas o início de uma longa caminhada. Em Pequim venceu ainda uma medalha de prata, em Londres ficou duas vezes à porta do pódio com um quarto lugar e no Rio de Janeiro fez a dobradinha nos 50 e 100 metros costas em S2. É precisamente esse o objetivo que levou para Tóquio e, para já, metade está concluído com sucesso, graças ao primeiro lugar na prova de 100 metros.

Com quatro medalhas de ouro e uma de prata, Yip tem neste momento 50% dos sucessos do seu país em Jogos Paralímpicos. Sem ela, Singapura teria apenas uma medalha de bronze na natação, e uma de prata e três de bronze no equestre. Ou seja, Yip continua a ser a única campeã paralímpica formada pelo seu país. Outra curiosidade é que as dez medalhas se dividem por apenas três atletas: Yip tem cinco medalhas, Laurentia Tan conquistou as quatro da equitação entre Pequim e Londres e há cinco anos, no Rio de Janeiro, Theresa Goh Rui Si alcançou uma medalha de bronze na natação.

Uma parte indissociável da carreira de Pin Xiu Yip é o cargo que representou como deputada do parlamento de Singapura entre 2018 e 2020. «Nos anos em que nadei, há duas coisas que me deixaram feliz por fazer. Uma foi ganhar medalhas. A outra foi ajudar a tornar as pessoas mais conscientes para os desportos adaptados em Singapura», afirmou.

«As pessoas percebem um pouco melhor agora, sabem que existe e espero que possa continuar assim. Por isso quando me deram uma plataforma para fazer alguma coisa em relação a isso, aproveitei. Não me via como um modelo a seguir mas sentia a responsabilidade de retribuir para a sociedade e de continuar a defender o desporto adaptado a crescer», continuou.

Yip reforça que o desporto lhe deu muito na vida. «Não quero retribuir apenas para a comunidade do desporto adaptado. Espero mesmo ver uma Singapura onde toda a gente viva um estilo mais ativo e saudável».

26 de Agosto, 2021

Lakeisha Patterson. Combater bullying com gratidão

Rui Pedro Silva

Lakeisha Patterson

Nasceu a 5 de janeiro de 1999, é australiana e tem um cartão de visita paralímpico capaz de meter inveja a muita gente. No Rio de Janeiro em 2016, na sua estreia, saiu de lá com dois títulos olímpicos, três medalhas de prata e uma de bronze num total de oito provas disputadas.

O sucesso de Lakeisha foi meteórico e o primeiro dia de Tóquio-2020 parece ter demonstrado mais do mesmo com a medalha de ouro na final dos 400 metros livres na categoria de S9. Seria de esperar que tamanha propensão para o sucesso fizesse dela um modelo a seguir na Austrália. Infelizmente, nem toda a gente pensou assim.

A partir do momento em que se tornou uma paraatleta, começou a ser alvo de críticas na internet. «Acho que foi porque cheguei demasiado rápido a esta mundo, o que levou muita gente a questionar as minhas capacidades com base na inveja. Tive de fazer um esforço muito consciente para não entrar em conflito com o que me diziam», contou.

«Toda a gente me dizia para não ligar mas isso é muito difícil. É incrível como há gente que não se preocupa minimamente com o efeito emocional que pode provocar nos outros. Sabia que seria muito mais fácil desistir da natação, mas se o fizesse estaria a dar-lhes a vitória e desistir não faz parte do meu vocabulário. Quando as coisas ficam mais difíceis, gosto de recordar a razão para fazer o que faço: eu nado porque é saudável e porque adoro. Adoro as oportunidades que me dá e adoro como há sempre espaço para melhorar», acrescentou.

Lakeisha Patterson nasceu após um parto complicado, sofreu falta de oxigénio e teve de ser ressuscitada. O trauma provocou-lhe paralisia cerebral que afeta o movimento, a coordenação e o equilíbrio sobretudo do lado esquerdo. Tanto assim é que o seu estilo de braçada é muito peculiar: «Na água uso apenas o lado direito do meu corpo, o que pode ser um grande desafio para conseguir deslizar pela água tão rápido quanto possível».

O bullying de que foi alvo acabou por ser também combatido através da sua atividade profissional. Lakeisha Patterson trabalha para o Comité Paralímpico da Austrália, desempenhando uma tarefa que talvez se possa traduzir por agente de agradecimentos. «Neste papel sou responsável por entrar em contacto com todos aqueles que fazem donativos e simplesmente agradecer enquanto atleta».

Lakeisha Patterson é o caso típico de como se pode combater o mal com o bem. E com medalhas, muitas medalhas, independentemente do que possam dizer os outros.

24 de Agosto, 2021

Libby Kosmala. De não saber onde é o gatilho a disparar para a glória

Rui Pedro Silva

Libby Kosmala

Não há um tempo definido para entrar na história. Para Usain Bolt, 9,58 segundos foram mais do que suficientes para ainda hoje ser recordado não só como o homem mais rápido do mundo como alguém capaz de construir um dos feitos mais impressionantes e irrepetíveis de se presenciar.

Mas também existem os momentos tântricos. Aqueles que demoram a construir. Aqueles que isoladamente podem valer muito pouco mas que cumulativamente, e com o passar dos anos, se tornam absolutamente vitais para compreender a beleza do desporto

Se a primeira é a história de Usain Bolt, a segunda é a de Libby Kosmala. Falar de Libby Kosmala é falar de alguém que sempre soube controlar o melhor o tempo do que deixar que o tempo a controlasse a ela.

Libby Kosmala não se limitou a participar nuns Jogos Paralímpicos. Nem em dois, três quatro ou cinco. Foram doze. Começou em Heidelberg, onde Portugal se estreou com uma equipa de basquetebol de cadeira de rodas em 1972, e continuou até 2016.

As ameaças de retiradas foram muitos mas o adeus definitivo só chegou em agosto de 2020, quando os Paralímpicos de Tóquio já tinham sido adiados por um ano. «Despedi-me oficialmente. Já fui a Jogos suficientes, mais do que muita gente», disse a atleta na altura com… 78 anos. Libby também brincou: «Não sei como será a sensação de ver uns Paralímpicos pela televisão, não estou habituada a isso».

A atleta australiana tem um cartão de visita impressionante. Paraplégica depois de complicações no parto, arranjou uma forma de definir a sua vida e praticou um pouco de tudo. A ideia seria competir em Telavive-1968, mas um erro organizativo deixou-a apenas como assistente. Dois anos depois, nos Jogos da Commonwealth parece ter-se vingado e apareceu a competir no tiro com arco, na esgrima, no pentatlo, na natação e nas categorias de corrida de cadeiras de rodas. Difícil seria acreditar que não seria uma ameaça série para os Jogos de Heidelberg, em 1972.

A estreia ficou marcada com uma medalha de bronze na estafeta mista dos 3x50 metros mas não foi a natação que fez de Libby Kosmala. Foi o tiro: «Deram-me uma espingarda para as mãos, eu carreguei-a e disseram-me para acertar no ponto preto do alvo. Tive de perguntar onde era o gatilho, era a este nível o meu conhecimento sobre tiro».

A aprendizagem foi imediata e os anos seguintes foram marcados por medalhas. Em Toronto-1976 venceu a primeira de nove medalhas de ouro e em 1984 venceu o título em todas as quatro provas em que participou. Quatro depois, curiosamente, além de conquistar mais três medalhas de ouro e uma de prata, ainda viu o marido vencer o ouro em bowls.

Edição após edição, Kosmala continuou a competir mas os resultados fugiram ao desejado. As últimas medalhas foram mesmo conquistadas em 1988 e terminou com um pecúlio de, entre tiro e natação, nove medalhas de ouro, três de prata e uma de bronze. O treze foi, assim, um número do azar.

A carreira paralímpica continuou até ao Rio de Janeiro - altura em que se tornou a atleta mais velha de sempre em Paralímpicos (74 anos) e, pelo meio, teve oportunidade de competir diretamente contra o marido. Em Sydney-2000, a competir em casa, numa prova mista de tiro de carabina, o quadro ditou um duelo e uma vitória contra o homem com quem partilhava a vida. Ganhou, claro está. Porque Libby não sabia fazer outra coisa.

24 de Agosto, 2021

Trischa Zorn. A mulher que ganhou quase o dobro de Phelps

Rui Pedro Silva

Trischa Zorn

As figuras da natação parecem ter existido para não ficarem durante muito tempo com os recordes à sombra da bananeira. Do pai do surf, Duke Kahanamoku, ao Tarzan Johnny Weissmuller, passando por Mark Spitz e terminando com o incontornável Michael Phelps, a natação teve quase sempre heróis – masculinos, «claro está», que parecem fadados para acrescentar um ingrediente ao que já tinha sido feito e elevar a fasquia para o nível «agora sim, é impossível».

Ninguém esquece as madrugadas de Pequim a seguir Michael Phelps rumo às oito medalhas de ouro. Ou como atingiu as 28 medalhas no total no Rio de Janeiro, oito anos depois. Michael Phelps é um verdadeiro fenómeno que terminou a carreira olímpica 23 medalhas de outro, três de prata e duas de bronze. Por outras palavras, terminou sensivelmente com metade dos feitos de Trischa Zorn.

Nunca ouviram falar em Trischa Zorn? Não há mal algum nisso. Aliás, há sempre uma primeira vez para tudo. Esta mulher, cega desde a nascença na Califórnia em 1964, teve a estreia nos Jogos Paralímpicos nos Países Baixos, em Arnhem, em 1980. Balanço? Sete medalhas de ouro, cinco delas individuais. Não está mau, pois não? Fazer melhor poderia parecer difícil e quatro anos depois em Nova Iorque terminou com seis medalhas de ouro (cinco individuais) e uma de prata.

A diferença é que Trischa Zorn estava apenas no começo. Quando competiu nos Jogos Paralímpicos de Seul, em 1988, Zorn tinha 24 anos [Pausa para fazer contas e perceber que a estreia em Arnhem foi com 16] e parecia na plenitude das suas capacidades. Vamos testar o nosso fôlego e fazer a contabilidade às medalhas de ouro que Zorn venceu na Coreia do Sul?

Vamos a isso: 50 metros bruços, 50 metros livres, 100 metros costas, 100 metros bruços, 100 metros mariposa, 100 metros livres, 200 metros bruços, 200 metros estilos, 400 metros livres, 400 metros estilos, estafeta dos 4x100 metros livres e estafeta dos 4x100 metros estilos. Resumindo, foram dez medalhas de ouro individuais e duas coletivas. Foi doze vezes ao pódio e sempre, sempre, sempre ao lugar mais alto.

As edições seguintes não seriam muito diferentes. Em Barcelona venceu mais 12 medalhas (10 de ouro e duas de prata) e em Atlanta, com 32 anos, começou finalmente a ceder e venceu «apenas» duas medalhas de ouro, três de prata e três de bronze.

O aparecimento de Phelps como adolescente em Jogos Olímpicos, em Sydney, assinalou também o claro declínio de Trischa Zorn em Paralímpicos. Mesmo assim, ainda foi mais seis vezes medalhada: quatro de prata e uma de bronze na Austrália e uma de bronze em Atenas, em 2004.

Aconteceu nos 100 metros costas, a disciplina que lhe valeu um título paralímpico em 1980, 1984, 1988, 1992 e 1996 que lhe valeu também a última das 55 medalhas paralímpicas: 37 de ouro, 10 de prata e cinco de bronze. Se falarmos apenas de medalhas individuais, foram 30 de ouro, oito de prata e quatro de bronze.

O domínio de Trischa Zorn e o seu lugar na história é inquestionável. As suas 55 medalhas são tantas como as que a União Soviética venceu durante o seu período em Paralímpicos. E está à frente de países como a Jamaica, Marrocos, Turquia, Croácia, Sérvia, Bulgária e muitos, muitos, muitos outros. Se as contas forem olímpicas, o caso torna-se ainda mais impressionante.

Só 31 países conquistaram mais de 37 títulos olímpicos. O Brasil tem exatamente 37, enquanto Grécia, Quénia e Ucrânia, por exemplo, ainda estão a dois dessa marca. Pode haver muitas lendas, olímpicas e paralímpicas, mas não pode haver uma parede que não tenha espaço para Trischa Zorn.

23 de Agosto, 2021

Pál Szekeres. Da glória olímpica à paralímpica

Rui Pedro Silva

Pál Szekeres

É cada vez menos invulgar um atleta competir nos Jogos Paralímpicos depois de ter estado nos Olímpicos. Em 1984, em Los Angeles, houve até uma neozelandesa que fez o contrário. Depois de competir na edição paralímpica de Arnhem em 1980, Neroli Fairhall conseguiu o apuramento para Jogos Olímpicos e, em cima de uma cadeira de rodas, competiu no tiro com arco.

Uns anos depois, Pál Szekeres, da Hungria, elevou ainda mais o patamar histórico. Comecemos nos Jogos Paralímpicos de Seul, em 1988. Podia ter sido apenas mais uma edição como tantas outras: na prova por equipas de florete, a União Soviética venceu a medalha de ouro, a República Federal da Alemanha foi prata e Hungria ficou com o bronze. Ao pódio foram Zsolt Érsek, István Szelei, István Busa, Róbert Gátai e… Pál Szekeres.

Com 23 anos, à beira de cumprir os 24, Szekeres não seria a última bolacha do pacote desportivo húngaro mas estava longe de imaginar como seria o próximo ciclo olímpico. Em 1991, a apenas um ano de Barcelona, viu-se envolvido num acidente de autocarro que o atirou para uma cadeira de rodas.

O desporto nunca deixou de ser uma possibilidade e a passagem da esgrima para a esgrima em cadeira de rodas foi feita sem sobressaltos. Logo em Barcelona-1992 escreveu o primeiro capítulo de história e foi campeão paralímpico na prova individual de florete. Por esta altura, já era o primeiro – e único até agora – atleta a juntar uma medalha nos Jogos Olímpicos aos Paralímpicos.

Mas a glória estava longe de chegar ao fim. Ainda em Atlanta foi campeão individual de sabre e depois juntou medalhas de bronze nas três edições seguintes: florete individual em Sydney-2000, sabre individual em Atenas-2004 e florete individual em Pequim-2008.

O fim da carreira chegou com três títulos paralímpicos, três medalhas de bronze paralímpicas e um bronze olímpico num espaço de vinte anos. Pelo meio, foi acumulando posições de importância governamental na Hungria, como o de secretário de estado adjunto do Ministro das Crianças, Juventude e Desporto ou o de membro do Comité Presidencial da Federação Internacional de Esgrima em Cadeira de Rodas. Szekeres desenvolveu também um programa para garantir iguais oportunidades no desporto para pessoas com deficiências.

19 de Agosto, 2021

Carlos Lopes. O homónimo paralímpico que prolongou o sucesso

Rui Pedro Silva

Carlos Lopes

Carlos Lopes é o melhor atleta olímpico português da história. A afirmação pode merecer alguma discussão mas há factos que, se forem aceites como decisivos, não dão margem para discussão. Carlos Lopes não é apenas um de cinco campeões olímpicos, é o primeiro de todos. E Carlos Lopes não é apenas um de três campeões olímpicos que têm outra medalha no currículo, é o único que somou uma prata e não um bronze, como Rosa Mota e Fernanda Ribeiro.

Falar de Carlos Lopes será sempre falar de glória desportiva portuguesa. E isso tanto é verdade para o desporto olímpico para o paralímpico. Sim, no paralímpico esta superioridade não é tão perentória, mas os números deste outro Carlos Lopes, a figura deste texto, também não dão espaço para grandes dúvidas.

Na história dos Jogos Paralímpicos, Portugal está prestes a ultrapassar a marca dos 200 atletas – acontecerá em Tóquio-2020. Sabem quantos conseguiram quatro medalhas de ouro? Apenas dois: Paulo de Almeida Coelho e… Carlos Lopes. A diferença é que enquanto o primeiro o fez apenas em provas individuais, o segundo beneficiou de uma medalha em estafetas.

Entre 1992 e 2008, Carlos Lopes venceu medalhas nas primeiras três, mas ficou em branco em Atenas e Pequim. Até lá, pareceu praticamente insuperável. Em Barcelona-1992, na estreia, foi campeão paralímpico nas provas de 200 metros e 400 metros na categoria de B1 (a mais grave para atletas com deficiência visual). Quatro anos depois, em Atlanta, foi bronze na prova de T10 (numa altura em que já tinha havido uma recategorização) e em Sydney-2000 juntou a medalha de ouro na estafeta dos 4x100 metros de T13 à dos 400 metros em T11.

Feitas as contas, foram quatro medalhas de ouro e uma de bronze num total de cinco medalhas. Mesmo apesar de falhar os pódios em 2004 e 2008, Carlos Lopes continua a ser um dos melhores atletas de sempre em medalhas acumuladas (esquecendo os ouros): só António Marques (8), Fernando Ferreira (8), Paulo de Almeida Coelho (7), Susana Barroso (6), António Carlos Martins (6), José Macedo (6) e Carlos Amaral Ferreira (6) têm mais. E Carlos Lopes é também um de nove atletas com medalhas em pelo menos três edições de Jogos Paralímpicos.

Carlos Lopes

A paixão pela corrida chegou muito antes do prazer pela competição. Carlos corria de e para a escola, tentava bater os seus próprios tempos e nem sabia que havia um mundo de oportunidades de desporto à sua espera. Carlos nasceu em Alverca com uma deficiência visual progressiva que se começou a manifestar a partir dos 13 anos e essa perda de sentido acabou por marcar a sua vida.

Na escola, nunca teve verdadeiro apoio e eram mais os professores que procuravam uma desculpa para não terem com o que se preocupar do que aqueles que exploravam a integração. Só com 20 anos, já depois de entrar na universidade, é que o desporto entrou de forma séria na sua vida e, com ele, a obsessão pela competição.

«Lembro-me de que no primeiro ou no segundo sábado em que fui treinar, quando os treinadores me começavam a falar em tempos e na possibilidade de ver quanto é que se faz aos 100 metros, aos 200, aos 400… eu ficava entusiasmadíssimo por poder bater aqueles recordes e por achar que aqueles tempos estavam perfeitamente ao meu alcance», contou na entrevista para a dissertação «A experiência vivida de atletas paralímpicos: narrativas do desporto paralímpico português», de Ana Isabel Castro Almeida e Sousa, de 2014.

A verdade é que os resultados, as medalhas e os recordes começaram mesmo a cair e Carlos Lopes tornou-se não só uma ameaça para quem vinha antes mas também para quem desempenhava o papel de ser seu guia. Esta foi, aliás, uma das maiores dificuldades ao longo da sua carreira. Carlos Lopes era demasiado rápido e encontrar um guia que o conseguisse acompanhar trazia problemas ao nível de calendarização. Não porque não pudesse haver quem desempenhasse essa tarefa mas sim porque quem tinha capacidade de ocupar esse cargo era também ele um atleta com as suas próprias competições.

O desporto de alta competição abriu também a porta para a aceitação do que era enquanto pessoa e atleta. «O desporto permitiu-me contactar com outras pessoas com deficiência visual e fez-me perceber que elas próprias aceitavam a sua deficiência e brincavam com ela. Há uma história que conto sempre sobre isto. Lembro-me quanto entrei no balneário, pela primeira vez, fui contra uma parede. E há uma das pessoas que estava no balneário que também era cega e comentou: ‘Eh pá, tu parece que és cego!’. Aquilo mexeu muito comigo, porque se me chamassem cego na escola isso era uma ofensa, era desagradável e ali eu tive de perceber que na realidade é isso que eu sou. Acho que esse foi um momento muito importante mesmo», recordou.

Carlos Lopes também não tem dúvidas sobre o impacto que os Jogos Paralímpicos têm num atleta, por mais medalhas que possam ser conquistadas em Europeus ou Mundiais. «Nos Jogos Paralímpicos entramos no estádio com 40 a 50 mil pessoas e às vezes mais. Toda a envolvência da aldeia paralímpica, a dimensão das coisas, o seu simbolismo é diferente e isso mexe com todos os atletas».

A própria perceção mediática tem evoluído bastante desde Barcelona. «Esses, por exemplo, quase não foram falados, os de Atlanta também não. Acho que em Sydney e Atenas se começou a falar um bocadinho mais e por aí fora. Acho que hoje as pessoas, embora não conheçam individualmente a maior parte dos atletas paralímpicos, pelo menos quando se fala deles já têm um reconhecimento e um carinho especial. Eu sinto isso quando falo com as pessoas na rua. Há muita gente que me conhece, que me vem cumprimentar. Noto que há um carinho muito grande pelos paralímpicos, pelo reconhecimento daquilo que fazemos e pelos resultados que os paralímpicos conseguem alcançar», afirmou.

18 de Agosto, 2021

Susana Barroso. Provavelmente, a melhor paralímpica portuguesa

Rui Pedro Silva

Susana Barroso

O desporto paralímpico não difere muito do olímpico em Portugal. Continua a haver uma predominância masculina em quantidade, embora o mesmo se possa dizer cada vez menos na qualidade.

Veja-se o cenário mais recente dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Sim, Patrícia Mamona foi a única mulher em quatro medalhados, mas depois ainda houve Auriol Dongmo com um quarto lugar e Catarina Costa, Liliana Cá e Yolanda Hopkins com quintos lugares. E a medalha de ouro de Pichardo inclinou o campo dos campeões olímpicos para o lado masculino com um tangencial 3-2 (Carlos Lopes, Nelson Évora e Pedro Pichardo de um lado, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro do outro).

Mas este não é um texto sobre a diferença de resultados entre homens e mulheres nos olímpicos. Nem nos paralímpicos. É sobre Susana Barroso, a nadadora que poderá ser, discutivelmente, a melhor paralímpica portuguesa de sempre.

Porquê o discutível? Vamos por partes. Portugal tem 25 medalhas de ouro em Jogos Paralímpicos. Houve provas coletivas que deram primeiros lugares e houve atletas que conseguiram mais do que uma. Nestas contas de somar e subtrair, chegamos à conclusão de que já houve 20 campeões paralímpicos portugueses.

Quantos são mulheres? Vamos às contas. Cristina Gonçalves, Maria Helena Martins, Maria Melo e Olga Pinto. E está feito. São só quatro. E só a última Olga Pinto tem mais do que um ouro. E é também a única a vencer títulos individuais, ambos em 1988, no atletismo (lançamento de distância e lançamento de precisão).

Cristina Gonçalves tem três medalhas (uma por cada posição) mas foram sempre em provas coletivas. Maria Helena Martins conseguiu um ouro no boccia e uma medalha no atletismo na mesma edição (1984) e Maria Melo chegou ao ouro numa prova por equipas no boccia.

Agora que está descrita a concorrência, que argumentos poderá haver para que Susana Barroso possa ser descrita como a melhor paralímpica portuguesa da história? Há dois critérios fundamentais: venceu seis medalhas – o dobro de qualquer outra portuguesa – e todas elas foram individuais.

 

Da natação ao boccia

A sua história também é complexa. Competiu na natação entre 1992 e 2004, período onde conquistou três medalhas de prata e três de medalhas de bronze, e depois ainda regressou para uns quintos Jogos Paralímpicos, em Londres, mas para competir no boccia. Curiosamente, essa despedida com delay foi precisamente a única edição em que não conseguiu atingir o pódio.

E quem é, afinal, Susana Barroso, a atleta que dá nome ao pavilhão municipal de Odivelas na Pontinha? Com uma doença neuromuscular de origem genética, hereditária e progressiva, começou a nadar com 10 anos e acabou por vir a dar cartas na categoria S3, destinada a atletas que preservam algumas funções de braços e mãos mas sem utilização do tronco e pernas.

O desporto paralímpico surgiu por acaso. Desafiada por um professor nas piscinas do Sporting para fazer uns tempos, percebeu que poderia competir entre as mulheres e nos Europeus de Natação em Barcelona, em 1991, o resultado não deixou dúvidas: «Fiquei com o terceiro melhor tempo do mundo, assim do nada, sem treino específico para a competição, sem nada».

«Na altura desconhecia o desporto paralímpico. Não fazia a mínima ideia de que existia desporto para pessoas com deficiência e foi esse meu treinador que me esteve a explicar a mim e aos meus pais», acrescentou, em declarações para a dissertação «A experiência vivida de atletas paralímpicos: narrativas do desporto paralímpico português», de Ana Isabel Castro Almeida e Sousa, de 2014.

A entrada em cena nos Paralímpicos, um ano depois, precisamente em Barcelona, ficou marcada pela noção de igualdade: «Não sabia muito bem o que é que ia fazer. Aquilo que pensei foi ‘Ok! Se esta gente também tem dificuldade como eu, então estamos mais ou menos em igualdade de circunstâncias e eu posso ser das melhores’». Resultado? Medalha de bronze nos 50 metros costas.

«Para mim foi dos melhores Jogos que tive, talvez por serem os primeiros também. A aldeia paralímpica era uma maravilha, era um sonho. Gostei imenso de lá ter estado. E aquilo motivou-me. Porque eu não sabia o que era, desconhecia praticamente. Via os Jogos Olímpicos, mas nunca imaginei poder estar ali, no mesmo local, de um momento para o outro. Lembro-me da música Amigos para Sempre, esse momento ficou sempre na minha recordação», afirmou.

Susana Barroso

A participação em Jogos Paralímpicos começou a ser a ambição mais forte. Podia bater recordes do mundo e vencer medalhas de ouro, como aconteceu nos Mundiais de 1994, mas eram os Jogos que a faziam mover. Em Atlanta somou um bronze nos 100 metros livres e pratas nos 50 metros costas e nos 50 metros livres. Quatro anos depois, em Sydney, somou mais uma prata nos 50 metros costas.

Por esta altura, a pressão também começou a aumentar, algo que parece comum a todos os grandes portugueses paralímpicos que marcaram a primeira era das participações portuguesas. «A determinada altura da minha carreira já sentia um peso muito grande em cima de mim antes da competição, porque sabia que sempre fui uma atleta medalhada. Toda a gente vai estar de olhos em ti, toda a gente vai estar à espera da tua medalha… era o que pensava. E eu não queria, de maneira alguma, deixar ficar mal as pessoas», disse.

O adeus à natação nos Jogos Paralímpicos deu-se em Atenas, novamente com uma medalha de bronze nos 50 metros costas. «Ainda lá podia andar mas já sabia que a nível de medalhas ia ser quase impossível. E acho, sinceramente, que vim embora na altura certa». E fê-lo com pompa e circunstância: foi porta-estandarte e na altura só Paulo de Almeida Coelho tinha mais medalhas paralímpicas em Portugal (7).

O adeus ao desporto de competição deixou um vazio grande e em 2007 decidiu dedicar-se ao boccia. «A nível nacional até comecei a ficar bem classificada. Como sou mulher e há a quota feminina para os Jogos, começaram logo a chamar-me para a seleção», contou, acrescentando que as portas se abriram muito rápido porque as pessoas já a conheciam como «atleta excecional na natação».

Por outro lado, a modalidade trouxe desafios acrescidos: «Senti muita dificuldade na integração. Acho que nunca me senti realmente bem lá. E no boccia são muitos jogos seguidos e eu quebro». Também por isso, quando conseguiu o apuramento para Londres-2012, tinha as expetativas muito em baixo: «Sabia que ia ser quase impossível ganhar o que quer que fosse. Sabia que uma medalha ou um bom lugar ia ser muito difícil».

«Custou-me muito ter ido a uma grande competição e não ter trazido medalha pela primeira vez». Uma frase que não está ao alcance de todos, só dos grandes nomes do paralimpismo português. Homens ou mulheres.

18 de Agosto, 2021

António Marques. A importância de nunca desistir

Rui Pedro Silva

António Marques

«A minha ambição vai até onde a saúde me permitir. Apenas posso prometer trabalho. A época tem corrido bem, mas vamos ver. Até à última bola é jogo.» Esta declaração de António Marques, uma das lendas paralímpicas portuguesas, foi publicada na quarta edição da revista Paralímpicas, referente ao trimestre entre setembro a novembro de 2019.

De lá para cá, muita coisa mudou e António Marques não conseguiu ter uma última bola que lhe garantisse a presença nos Jogos Paralímpicos de Tóquio, à beira dos 58 anos. Não que a idade seja um problema – afinal Portugal vai ter um estreante no boccia, Manuel Cruz, dois meses mais velho do que António Marques.

Não calhou. Numa carreira marcada tantas vezes pelo sucesso da última bola, pela importância de nunca desistir, António Marques não conseguiu a presença que o ia deixar entre os melhores de sempre. E é tão difícil escolher por onde começar que vamos guardar um parágrafo específico para cada um dos feitos paralímpicos na carreira do experiente jogador de boccia… e não só.

António Marques é um dos 20 campeões paralímpicos por Portugal e um entre nove que o conseguiram ser mais do que uma vez.

António Marques é um de nove portugueses que conseguiram medalhas paralímpicas em mais do que uma modalidade e um de seis que o alcançaram na mesma edição (Seul-1988).

António Marques conquistou medalhas paralímpicas em seis edições diferentes (1988, 1996, 2000, 2004, 2008 e 2016 – falhou 1992 em competição e não esteve em Londres). Só Fernando Ferreira, também do boccia, conseguiu ser medalhado em mais edições – sete.

António Marques é, discutivelmente, o melhor atleta paralímpico português da história. Tem tantas medalhas como Fernando Ferreira (oito) e ninguém tem mais. Alcançou duas medalhas de ouro, três de prata e três de bronze, embora apenas duas tenham sido individuais, bronze no atletismo no lançamento de precisão em 1988 e prata no boccia em BC1.

E o que é a categoria BC1? Está destinada a «atletas com limitações severas ao nível dos braços, pernas e tronco, capazes de lançar a bola de forma autónoma mas limitada». «Podem competir com o auxílio de assistentes, que apenas podem ajustar a cadeira de rodas do jogador e entregar as bolas ao atleta se necessário», sendo também permitido o lançamento da bola com o pé.

A existência de um assistente dá azo a uma das histórias mais curiosas contadas por António Marques para a dissertação «A experiência vivida de atletas paralímpicos: narrativas do desporto paralímpico português», de Ana Isabel Castro Almeida e Sousa, de 2014.

«Recordo-me que o auxiliar que me foi acompanhar estava encostado a uma parede na prova e o boccia é um jogo tão parado que ele adormeceu. Quando me viraram a raquete para eu jogar, não sabia o que fazer. Na altura não percebia assim muito das regras, então nem sabia o que dizer. Só depois é que percebi que era para eu jogar e o meu auxiliar estava a dormir, por isso ainda tive de estar a chamar por ele», contou.

António Marques refere-se a um Mundial que decorreu na Bélgica, em 1986, na sua estreia internacional. Durante o torneio derrotou um adversário que ficou seu amigo para a vida. «Acho que a primeira vitória internacional foi com um dinamarquês. Hoje é meu amigo. Aliás, a primeira volta que eu dei numa cadeira de rodas elétrica foi na dele. Quando eu fui para a Bélgica, ainda andava numa cadeira de rodas Manuel. Falei com ele e ele lá me deixou experimentar a sensação. Foi uma maravilha mesmo!»

17 de Agosto, 2021

António Vilarinho. Da bala na Guiné à bola em Heidelberg

Rui Pedro Silva

António Vilarinho

Não é preciso ser um Sherlock Holmes para descobrir que a campanha paralímpica portuguesa começou em 1972, em Heidelberg. Os Jogos Olímpicos foram disputados em Munique mas a cidade não estava adaptada para atletas em cadeira de rodas e os alemães decidiram fazer um desvio.

Também não é complicado perceber que a estreia foi feita na modalidade de basquetebol de cadeira de rodas. Até os resultados podem parecer simples de encontrar: uma derrota pesada com a Bélgica (18-71), outra com a Espanha (28-58), uma com o Canadá (26-56) e, para terminar, um triunfo sobre a Suíça por 27-25.

A partir daqui, tudo se complica. Quem são os 11 jogadores que representaram Portugal em Heidelberg? O Comité Paralímpico Português não tem os dados, o Comité Olímpico Internacional muito menos. Podia parecer uma tarefa interessante de cumprir e não desiludiu. Aliás, foi uma tarefa super interessante. Literalmente.

Foi preciso recorrer a uma reportagem da revista Super Interessante de 1 de setembro de 2016 para saber algo sobre mais sobre duas das suas figuras: António Vilarinho e António Botelho. Os dois recordam-se de mais sete nomes (Fragata, Morais, Zé Luís, Hilário, Ramiro, Borges e Neves) mas nem assim são suficientes para chegar à lista final de onze.

Centremo-nos então num destes representantes: António Vilarinho. O atleta foi um dos 11 selecionados entre o Centro de Reabilitação de Alcoitão, no Estoril, e do Hospital de Sant’Ana, na Parede, com janelas para a estrada marginal e vista para o mar. Foram estas duas instituições que promoveram a estreia de Portugal, na quarta edição dos Jogos Paralímpicos, e Vilarinho estava lá, a fazer história.

O passado de António Vilarinho não era muito diferente do de outos atletas, vítimas da guerra colonial. O então atleta chegou a Alcoitão depois de ter levado um tiro na coluna na Guiné e ter sido transferido de urgência para Portugal, já paralisado nos membros inferiores.

O desporto foi uma saída natural para o início da reabilitação e, graças à iniciativa de um fisioterapeuta chamado Ângelo Lucas, «que nada percebia de basquetebol», criou-se uma equipa para competir em Heidelberg. Na então República Federal da Alemanha, os atletas portugueses encontraram um ambiente radicalmente diferente do de Portugal da ditadura, como explicou António Vilarinho à Super Interessante: «Aquilo era um mundo de deficientes. Foi uma grande experiência para todos nós. Cá era outra mentalidade. Ainda me lembro de quando vinha a casa e as pessoas iam ter comigo e só diziam coitadinho, coitadinho».

O pós-Heidelberg assinalou o início de uma longa carreira de António Vilarinho no basquetebol de cadeira de rodas, como explicou à Federação Portuguesa de Basquetebol: «Fui para a Venda Nova tirar o curso de formação de Desenhador Civil e lá consegui formar uma equipa». Depois, acabou por fazer o mesmo na Associação das Forças Armadas e na Associação Portuguesa de Deficientes de Lisboa.

Em 2017, com 70 anos e 45 anos após a estreia em Heidelberg, António Vilarinho ainda jogava basquetebol de cadeira de rodas: «Isto já é um bichinho que se entranhou em mim. Enquanto tivermos uma pestana a mexer, vamos andando». O bicho do desporto nunca foi expulso. Em 2016/17 estreou-se no andebol de cadeira de rodas e até campeonatos nacionais de ténis de mesa em cadeira de rodas e no de matraquilhos de cadeira de rodas já competiu.

Sim, uma bala na Guiné pode ter-lhe mudado a vida para sempre, mas o desporto tornou-se a sua verdadeira vida. António Vilarinho não é apenas um dos 11 pioneiros paralímpicos portugueses, é uma lenda do desporto adaptado em Portugal.

17 de Agosto, 2021

Fernando Ferreira. O fim de um mito paralímpico

Rui Pedro Silva

Fernando Ferreira

O impacto de Fernando Ferreira na história paralímpica portuguesa é de cortar a respiração. São demasiadas marcas, demasiados recordes, demasiados pontos positivos para destacar sem recurso a pelo menos um ponto final que nos dê espaço para respirar, recentrar ideias e reconfigurar o contexto perfeito para aquilo que Fernando Ferreira representa não só para o boccia mas também para o paralimpismo português.

Vamos por partes? Portugal vai ter em Tóquio a sua 11.ª participação em edições de Jogos Olímpicos. Fernando Ferreira esteve em oito. Nascido a 20 de maio de 1973, estreou-se em Seul-1988 com apenas 15 anos e tomou-lhe o gosto. Voltou a estar em Barcelona, em Atlanta, em Sydney, em Atenas, em Pequim, em Londres e no Rio de Janeiro, na altura já com 43 anos.

Fernando Ferreira é recordista. Numa história em que há dez atletas portugueses como pelo menos cinco participações paralímpicas, Fernando Ferreira é o único que atinge as oito. Há cinco anos, no Rio de Janeiro, quando chegou a essa marca, tinha pelo menos duas de vantagem sobre os mais diretos perseguidores: Armando Costa, também do boccia, António Marques, que teve uma primeira passagem pelo atletismo em 1988 mas que fez do boccia a sua verdadeira casa, e Maria Odete Fiúza, que é a única desta lista que vai estar em Tóquio e somar a sétima participação consecutiva.

Mas os recordes não se limitam à longevidade. Fernando Ferreira tem uma média de uma medalha por cada participação paralímpica. Pode ter apenas uma medalha de ouro, longe das quatro de Paulo de Almeida Coelho do atletismo, por exemplo, mas somou uma medalha de ouro, três de prata e quatro de bronze na modalidade. Só António Marques tem tantas medalha paralímpicas como ele.

As oito medalhas têm duas curiosidades interessantes: das oito edições em que participou, só por uma vez não conseguiu subir ao pódio (Londres-2012) – o que é mais um recorde: é o único atleta português a conquistar pelo menos uma medalha em sete edições distintas. De resto, começou com duas medalhas individuais, uma em Seul (bronze) e outra em Barcelona (prata) e a partir daí foram sempre coletivas com exceção para o bronze de Atenas na categoria de BC2, onde sempre competiu individualmente.

E quem compete nesta categoria? Uma das edições da revista Paralímpicos refere que se destina a «jogadores com maior controlo no tronco e braços que os das classes BC1 e BC3» e acrescenta que «o superior controlo dos braços permite aos atletas atirar a bola de formas distintas».

 

«No início achei que era muito fácil mesmo»

O atleta que nasceu com paralisia cerebral e que é natural de Ferreira de Aves, no concelho de Viseu, é, com rigor, uma das maiores glórias paralímpicas portuguesas. Depois de descobrir o boccia durante sessões de fisioterapia na Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral de Viseu, nada mais voltou a ser o mesmo. «Fui lá jogar e gostei. No início achei que era muito fácil mesmo. Depois começou a ser mais difícil. Quando percebi melhor o jogo é que percebi que não era assim tão simples como pensava», afirmou em declarações para a dissertação «A experiência vivida de atletas paralímpicos: narrativas do desporto paralímpico português», de Ana Isabel Castro Almeida e Sousa, de 2014.

Se atirar a bola se estava a tornar demasiado simples, largar a mãe foi complicado. «Quando comecei a sair e a ir para os campeonatos, mesmo para fora e para o estrangeiro, aí a minha mãe não ia e comecei a habituar-me. Nos Jogos de Seul foi a primeira vez que fui sem a minha mãe. Sem telemóveis, sem nada. Foi muito difícil essa saída… mas hoje não tenho problemas nenhuns», garantiu.

A presença paralímpica tornou-se algo muito habitual na vida de Fernando Ferreira mas nenhuma foi tão marcante como a primeira. Talvez a que me lembro melhor seja mesmo a de Seul. Fiquei tão emocionado que comecei a chorar quando começo a tocar o hino de Portugal», recordou.

A evolução da própria estrutura paralímpica também deixou marca. «Em Seul era o mais novo e nessa altura ainda não havia dinheiro. Antes não pagavam para jogar. Depois quando comecei a ganhar mais medalhas começaram a pagar-me pelas medalhas e tive direito às bolsas paralímpicas. A partir daí é que acho que comecei a sentir que era mais a sério. Comecei a sentir mais a pressão e a ficar cada vez mais nervoso. O que é certo é que desde aí os meus resultados começaram a piorar, tenho muitos nervos nas competições e tenho muita dificuldade em controlá-los».

 

Da primeira cadeira de rodas elétrica à... namorada

O boccia tornou-se muito mais do que apenas uma forma de passar o tempo, um complemento à fisioterapia: «Mudou tudo! O boccia foi o meu futuro. No fundo é a minha vida. Se não fosse o boccia, o que é que eu fazia? Quando comecei a ganhar algum dinheiro com isso também foi bom porque ajudei aqui em casa. No fundo, o boccia também me deu alguma autonomia. Foi com o dinheiro do boccia que comprei a minha cadeira de rodas elétrica, as minhas coisas, a minha aparelhagem, os meu cds. Se não fosse o boccia nunca teria tido nada disso».

E mudou ainda mais, não apenas no mundo desportivo ou financeiro: «Arranjei uma namorada também. Mas foi ela que me procurou, por eu ser campeão. Acho que se não fosse o boccia se calhar ela nunca tinha olhado para mim».

A entrevista com Fernando Ferreira para a dissertação foi feita após os Jogos de 2012, os únicos sem medalha alcançada. Numa modalidade que já deu 26 pódios a Portugal, as duas últimas edições nunca deram mais do que dois e o Rio de Janeiro foi a primeira vez sem presença nos dois primeiros lugares do pódio.

A justificação para Fernando Ferreira é simples: «Agora está mais difícil, agora os outros países estão mais fortes. Eles treinam muito mais do que nós e têm muito mais apoios. Os adversários estão cada vez mais fortes. Treinam muito, têm bons equipamentos, têm bons técnicos, uma equipa de apoio, e nós não. Acho que isso também acontece porque estamos a ficar velhos. Os atletas portugueses estão a ficar velhos e não aparecem atletas novos. Quem é que vai continuar o nosso trabalho quando nós deixarmos de jogar?», interrogou-se.

A resposta para Tóquio está dada mas é complexa. Dos dez representantes que Portugal terá no boccia, cinco são estreantes. André Ramos é o mais novo com 25 anos, Ana Sofia Costa é poucos meses mais velha mas, por outro lado, Manuel Cruz vai estrear-se com 60 anos e será o elemento mais velho de uma comitiva portuguesa que ainda tem dois pesos pesados: José Macedo (48 anos, seis medalhas olímpicas) e Cristina Gonçalves (43 anos, três medalhas olímpicas). Como será sem Fernando Ferreira?

16 de Agosto, 2021

Zakia Khudadadi. História paralímpica apagada pelos talibãs

Rui Pedro Silva

Zakia Khudadadi

Ser mulher no Afeganistão não é fácil, nunca foi. Ser mulher e com uma deficiência no Afeganistão torna-se ainda mais complicado. Mas Zakia Khudadadi estava preparada para dar um pontapé no estereótipo e fazer história nos Jogos Paralímpicos de Tóquio: ia tornar-se a primeira mulher afegã a participar no taekwondo e apenas a segunda na história em todas as modalidades.

Ia. Já não vai. Os talibãs tomaram o controlo do país, a capital Cabul caiu num espaço de horas e os voos comerciais desapareceram. Khudadadi e Hossain Rasouli, homem do atletismo, tinham viagem marcada para Tóquio mas agora já não serve de nada.

Há menos de uma semana, tudo era diferente. Havia esperança. «Quero estar no meio de atletas de todo o mundo e dar o meu melhor», dizia Zakia em declarações ao Comité Paralímpico Internacional.

«Fiquei em êxtase quando soube que tinha recebido um wild card para competir nos Jogos. Esta é a primeira vez que uma mulher vai representar o Afeganistão no taekwondo nos Paralímpicos e estou muito feliz», disse a atleta de 23 anos.

O convite surgiu praticamente em cima da hora e o tempo de preparação foi escasso. Depois de se dedicar à modalidade com Rohullah Nipkai (bronze olímpico em Pequim e Londres) como inspiração, a atleta que nasceu com uma deficiência tinha presença garantida na classe K44 (inclui atletas com amputações de um braço, ou perda de função equivalente, ou ainda a perda dedos dos pés com impacto na habilidade de levantar o calcanhar adequadamente).

«Lembro-me de ver o Nipkai e de ter ficado inspirada. Decidi começar a praticar o mesmo desporto e, felizmente, a minha família também me apoiou. Quero poder estar entre as melhores atletas do mundo a dar o meu melhor. É uma oportunidade para mostrar a minha capacidade e ficarei muito orgulhosa por estar ali», disse.

Agora, tudo mudou. Não vai haver Afeganistão nos Paralímpicos. E pode até deixar de haver Afeganistão para Khudadadi, pelo menos o Afeganistão que permitia que praticasse taekwondo e sonhasse em competir nos Jogos.

O chefe da missão afegã, Arian Sadiqi, reconhece o desgosto que é a ausência confirmada da comitiva. «Durante a era dos talibãs, não se podia competir, especialmente as mulheres. Para mim, é de quebrar o coração. Ela seria a primeira mulher afegã a competir. Ia fazer-se história no taekwondo. A Zakia seria uma excelente modelo para o resto das mulheres do país».

A primeira mulher afegã de sempre nos Paralímpicos foi Mareena Karim. Em 2004, em Atenas, competiu nos 100 metros do atletismo. Já na altura, a sua vida tinha sido marcada pelos talibãs. Mareena vivia com os 18 irmãos em Cabul depois de ter fugido de uma região ocupada.

16 de Agosto, 2021

Laurel Hubbard. A mulher trans que não foi a Tóquio para mudar o mundo

Rui Pedro Silva

Laurel Hubbard

«Sou o que sou. Não estou aqui para mudar o mundo. Quero apenas ser eu própria e fazer o que gosto de fazer.» Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, não é nada a grandes declarações mas esta, de 2017, depois de ganhar duas medalhas de prata no Mundial, não deixou pano para mangas.

Laurel Hubbard não estava preocupada em ser pioneira. Não queria ser vista como um exemplo. Não queria esmurrar a porta e deixá-la aberta para que mais se pudessem seguir. Mas o mediatismo pré-Tóquio trocou-lhe as voltas. Para muitos, não haverá dúvida de que Laurel Hubbard foi a primeira mulher transgénero a competir em Jogos Olímpicos. Pelo menos é a sensação com que todos ficámos depois dos meses que antecederam Tóquio-2020.

Não é bem assim. Os atletas transgéneros têm possibilidade de competir nos Jogos Olímpicos desde 2004 e, de facto, só em Tóquio é que houve lugar à estreia… de atletas abertamente transgéneros. Mas não foi apenas Laurel Hubbard. O mesmo aconteceu com Alana Smith no skateboard («Não quero ser conhecida como uma boa mulher skateboarder mas apenas como uma boa skateboarder, alguém que fez a diferença. O género não devia importar»), Chelsea Wolfe do BMX (era suplente e não chegou a competir) e com Quinn, da seleção canadiana de futebol que venceu a medalha de ouro na prova feminina.

Ao contrário de Laurel Hubbard, Quinn quer marcar um impacto na comunidade LGBTQ. «Se o conseguir fazer, então estou a alcançar algo no meu tempo no desporto. Acho que é algo que me dá valor além da minha experiência atlética com o futebol», disse.

Quinn falou abertamente do seu caso pela primeira vez em setembro de 2020: «Queria ter autenticidade em todas os momentos da minha vida. E uma delas era na esfera pública. Havia um cansaço de se manter sempre a confusão sobre quem era verdadeiramente, o meu género. Quando estava a descobrir quem era, era assustador e não percebia se tenha futuro no futebol ou um futuro na vida. Acho que tornar-me visível é muito importante e ajudou-me a descobrir a minha identidade. Espero ajudar outros a sentirem-se seguros a optar pelo mesmo caminho e criar um espaço. Tenho muito orgulho pelo que fiz e sei que os Jogos Olímpicos de 2020 serão uma enorme plataforma para ter esta visibilidade».

Se havia quem desejasse essa plataforma, Laurel Hubbard estava do lado oposto, até porque tem sido alvo de críticas de quem insiste que não devia poder competir em provas femininas de halterofilismo, sobretudo por já ter feito o mesmo no passado quando era homem. É que, ao contrário de Quinn e de Alana Smith, Laurel já foi homem. Chelsea Wolfe também mas não chegou a competir.

Vamos por partes: Laurel Hubbard tem 43 anos. Começou a praticar halterofilismo na adolescência mas desistiu com 23 anos. Fez a transição para mulher e voltou a competir internacionalmente em 2017, em cima dos 40 anos.

«Uma das muitas confusões sobre o meu passado é de quem acha que treinei para isto a vida inteira e a transição foi já numa fase tardia da vida. O que não percebem é que parei em 2001, com 23 anos, porque tudo era demasiado. Fiz a transição já nos 30 anos e só depois voltei a competir. O mundo mudou e agora sinto-me numa fase em que consigo lidar com isto», disse em 2017.

O mediatismo perseguiu-a quando voltou a competir internacionalmente, até porque foi alvo das críticas das adversárias, mas Laurel foi capaz de seguir em frente. «Não vou dizer que não foi difícil. É preciso ser um robô para não me sentir afetada pelo que as pessoas dizem. Não posso controlar o que as pessoas pensam, o que sentem, o que acreditam, nem vou tentar. Esse não é o meu trabalho. Tudo o que posso fazer é tentar levantar peso no meu limite e o que tiver de acontecer, acontecerá».

Em Tóquio… não aconteceu grande coisa. Logo no arranque (gesto em que o peso é levantado num único movimento), Laurel Hubbard tentou começar com 120 quilos, o que lhe daria o segundo lugar, e falhou. Subiu para os 125 quilos nas duas restantes tentativas e falhou novamente, tornando-se a única atleta entre as 14 participantes a não registar qualquer peso.

16 de Agosto, 2021

Jessica Springsteen. Filha do Boss foi empregada de prata

Rui Pedro Silva

Jessica Springsteen

É difícil crescer com um rótulo. Ser filho ou filha de alguém famoso é meio caminho andado para andar uma vida inteira a reboque nos cabeçalhos e notícias de todo o tipo de órgãos de comunicação social. Por isso não foi de espantar que, umas semanas antes do arranque dos Jogos Olímpicos de Tóquio, tenhamos ficado todos a saber que «a filha de Bruce Springsteen» ia competir no Japão.

O que poderia não ter passado de uma nota de rodapé tornou-se um dos dados mais curiosos, com resultados práticos, dos Jogos Olímpicos. Na prova de saltos de obstáculos por equipas, Jennifer Springsteen juntou-se a Laura Kraut e McLain Ward e contribuiu para a medalha de prata, numa final onde o ouro esteve mesmo, mesmo, mesmo, mesmo muito próximo. Se na prova individual, Jessica falhou na qualificação com o seu Don Juan Van de Donkhoeve, o mesmo não se pode dizer de quando se tratava de lutar apenas pelas cores dos EUA. Não fosse ela... born in the USA.

Nascida a 30 de dezembro de 1991, em Los Angeles, Jessica Springsteen descobriu cedo a paixão por equídeos e começou a andar de pónei com quatro anos. Em 1998, realizando o sonho de milhões de crianças um pouco por todo o mundo, teve o seu primeiro pequeno pónei e a partir daí nada mais foi o mesmo.

«A minha mãe sempre gostou de cavalos. Quando nos mudámos para Nova Jérsia e comprámos uma quinta lá, ela começou a ter aulas e eu quis imitá-la e fazer o mesmo». E pronto, estavam lançadas as sementes para o que viria a acontecer em Tóquio, 23 anos depois.

Estar perto de cavalos também foi uma forma de terapia, sobretudo quando ser filha de Bruce Springsteen pode ser um obstáculo. «Com a minha família sempre fui muito extrovertida e barulhenta, mas tudo mudava quando havia mais gente. Tive algumas amigas que me ajudaram mas montar a cavalo ajudou-me a ganhar confiança, porque sentes-te bem quando percebes que o que fazes está a dar resultado. E ter de tratar de um animal tão cedo dá-te uma grande responsabilidade. Ensina-te a ter paciência e compreensão», disse.

A relação com os cavalos não se esgota nas competições, sobretudo agora depois do caso Annika Schleu do pentatlo moderno, que levou inúmeras organizações de proteção dos animais a exigir medidas e a pedir o desaparecimento de todas as modalidades com animais do programa olímpico. Jessica Springsteen está longe desse espetro, até porque colabora com a Sociedade Norte-Americana para a Prevenção da Crueldade com Animais. «O mais importante é tornar as pessoas conscientes. Muitos não sabem verdadeiramente a crueldade que existe, sobretudo com cavalos. É triste», lamentou.

A relação com o pai é outro tema que é incontornável na história de Jessica. «Tivemos uma educação muito consciente e foi bom poder montar a cavalo com o foco de ter algo apenas para mim. Acho que me ajudou a crescer e a tornar-me no que sou. Ensinou-me a trabalhar arduamente e a dedicar-me a algo», afirmou.

E o que acha o The Boss disto tudo? «Sente-se relaxado quando me vê a montar. Acho que não fica tão nervoso como a minha mãe, mas sei que os adoram quando estão nas minhas competições. É bom que gostem tanto disto quanto eu».

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