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É Desporto

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25 de Julho, 2021

Race Imboden. Um esgrimista sem medo de ter voz

Rui Pedro Silva

Race Imboden

Peru, agosto de 2019 de um mundo sem pandemia. Os Jogos Olímpicos estão a menos de um ano de distância e os Estados Unidos são campeões de florete por equipas (esgrima) nos Jogos Pan-Americanos disputados em Lima.

O último ano do ciclo olímpico pré-Tóquio tinha acabado de começar e Race Imboden fazia parte de um lote de atletas que estava a piscar o olho ao Japão. Mas, antes de ser um atleta de alta competição, sentia-se norte-americano. Faltava também pouco mais de um ano para as eleições presidenciais e a instabilidade nos Estados Unidos parecia insustentável.

Foi nesta altura que Race Imboden decidiu agir e ajoelhar-se durante a cerimónia protocolar de atribuição das medalhas. Numa era em que a iniciativa era vista com maus olhos, sobretudo nos Estados Unidos – bastando ver o que aconteceu a Colin Kaepernick na NFL -, Race Imboden sentiu que havia coisas mais importantes.

«A razão para me ter ajoelhado durante uma competição internacional foi por sentir que o país que eu represento já não me reflete. Nem reflete as pessoas que lá vivem. Eu, como uma pessoa não pertencente a uma minoria racial, que não é afetada pela violência provocada pelas armas ou por questões relacionadas com a imigração, senti que era importante ter uma voz e mostrar apoio por essas pessoas», disse.

Num contexto que estava cada vez mais politizado, a ação de Race Imboden teve consequências e o Comité Olímpico dos Estados Unidos suspendeu-o por doze meses. No limite, a situação poderia tê-lo afastado de Tóquio-2020, mas o adiamento dos Jogos deu-lhe outra margem. Tanto que, precisamente um ano depois de se ter ajoelhado no Peru, voltou a fazer parte de uma manifestação que juntou 44 atletas norte-americanos que exigiam alterações à forma como protestos e manifestações eram encaradas nos Jogos Olímpicos.

A forte voz que Race Imboden decidiu ter acabou por não o impedir de estar em Tóquio, em julho de 2021. Agora, o atleta de 28 anos está preparado para participar na sua terceira edição de Jogos Olímpicos, competindo por equipas na prova de florete em esgrima. Em Londres-2012 foi nono na prova individual e quarto na por equipas e há cinco anos, no Rio de Janeiro, subiu ao pódio na prova coletiva para receber o bronze.

A medalha olímpica foi o culminar de uma aventura que começou quando brincava num parque em criança, armado em cavaleiro e com uma espada em punho. Em Atlanta, na Geórgia, um desconhecido viu a brincadeira e sugeriu aos pais que o levassem para a esgrima. Foi o início de uma história de amor que levou a… outra história de amor.

Foi precisamente no Rio de Janeiro, no ano da primeira e única medalha olímpica, que Race Imboden conheceu a sua namorada, a francesa, também ela esgrimista, Ysaora Thibus. A cumplicidade entre os dois foi praticamente automática e em 2017 começaram a viver juntos nos Estados Unidos.

Hoje, os Estados Unidos continuam longe de ser um país que deixou a tensão para trás mas Race sente que há um pouco mais de representação, mas nem por isso deixa de encarar o futuro com outros olhos. O objetivo para quando terminar a carreira é muito claro: trabalhar com crianças desfavorecidas que queiram entrar no mundo da esgrima. «Uma das grandes coisas que quero fazer é começar uma fundação para ajudar a crianças que vêm de um meio com menos fundos».

Race Imboden pode nunca ter sido campeão olímpico. Pode até voltar a falhar o pódio nos Jogos de Tóquio, mas às vezes ter a cabeça no sítio certo também vale uma medalha. E isso é ouro.

24 de Julho, 2021

Javad Foroughi. O enfermeiro com precisão de campeão

Rui Pedro Silva

Javad Foroughi

Os profissionais de saúde têm sido elogiados um pouco por todo o mundo. Há quem lhes bata palmas à janela, quem lhes angarie cama, comida e conforto, quem lhes arranje finais da Liga dos Campeões. A pandemia veio trazer ainda mais peso a uma profissão dura e os desafios aumentaram nos «quatro cantos do globo».

O Irão não é exceção neste reconhecimento e hoje foram muitas as palavras elogiosas direcionadas a Javad Foroughi. Mas, neste caso, não foi por estar a trabalhar no Hospital Baqiyatullat em Teerão para garantir os cuidados de saúde necessários aos infetados por Covid-19. Não foi por ser apenas mais um de milhares a fazer todos os possíveis para que a pandemia possa ser controlada. Foi por… estar nos Jogos Olímpicos e ganhar uma medalha de ouro.

Javad Foroughi não fez por menos e levou os conhecimentos que adquiriu num hospital para os campos de tiro dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Literalmente. Sim, porque Javad experimentou tiro pela primeira vez na cave de um hospital onde trabalhava. Até então, nunca tinha visto uma pistola na vida, mas o talento era inato e não demorou muito a manifestar-se.

A profissão não é necessariamente um obstáculo à sua atividade paralela. «Tenho turnos noturnos, estava habituado a eles há vários anos e até cheguei a ir trabalhar depois de algumas competições. A minha motivação é o meu grande impulso: adoro disparar. Trabalhar em turnos noturnos poderia reduzir a concentração e precisão, mas consigo lidar com isso», garantiu.

A julgar pelos resultados na prova de pistola a 10 metros, não há como negar. O atirador de 41 anos bateu o recorde olímpico e terminou a final com 244.8 pontos, à frente do sérvio Damir Mikec (237.9).

O Irão recebeu a notícia da medalha de ouro em euforia num período em que o desânimo se volta a instalar com o surgimento de uma quinta vaga da pandemia. Javad Foroughi está a ser visto como um herói nacional e um defensor da saúde e há quem diga que este triunfo foi um milagre que ajudou a afastar a poeira da tristeza da face das pessoas do Irão.

O país atingiu as 70 medalhas em Jogos Olímpicos, com 22 de ouro, 21 de prata e 27 de bronze, mas esta foi a primeira de sempre no tiro. O Irão tem também dois títulos no taekwondo, nove no halterofilismo e 10 na luta.

24 de Julho, 2021

Distria Krasniqi. O judo é mesmo a praia do Kosovo

Rui Pedro Silva

Distria Krasniqi

Catarina Costa fez Portugal acreditar numa medalha na categoria de -48 quilos do judo feminino mas não estava destinado. O mesmo não se pode dizer de Distria Krasniqi e do Kosovo. A atleta de 25 anos confirmou o estatuto e seguiu imparável até à medalha de ouro, escrevendo mais uma página dourada na curta história de um país que sofreu durante anos.

A história de Distria Krasniqi começa a escrever-se com uma das figuras que mais aprecia e que idolatra. Há cinco anos, Majlinda Kelmendi conseguiu o primeiro título olímpico na história do Kosovo e deixou uma mensagem que ecoou por todo o território: «Provei que podemos ser campeões olímpicos se quisermos, mesmo vindo de um país pequeno e pobre».

A edição do Rio de Janeiro marcou a estreia do Kosovo em Jogos Olímpicos. Teve oito atletas e saiu com a medalha de ouro de Kelmendi no judo. Dois anos depois, teve uma participação no esqui alpino nos Jogos Olímpicos de Inverno e agora, em Tóquio, surge com uma comitiva ainda maior – 11 participantes.

O primeiro dia não podia ter sido melhor. Distria Krasniqi dominou a categoria de -48 quilos e passou por adversárias do Brasil, Taiwan, Mongólia e Japão até garantir o lugar mais alto do pódio. O Kosovo pode não ser banhado pelo Adriático mas as kosovares parecem estar a fazer do judo a sua praia.

Krasniqi viajou para Tóquio com o estatuto de campeã europeia em Lisboa e com uma derrota no jogo de atribuição da medalha de bronze no Mundial de Budapeste e, perante o maior palco possível, não vacilou. No judo desde 2002, com sete anos, seguiu o conselho do irmão mais velho para praticar a modalidade e agora validou a profecia de Kelmendi.

A judoca kosovar queria vencer uma medalha em Tóquio e agora sai de lá com o mais alto dos reconhecimentos. As raízes deram origem a uma planta que está a dar cada vez mais frutos. E não devem ficar por aqui.

24 de Julho, 2021

Emily Seebohm. O lado B de uma atleta olímpica

Rui Pedro Silva

Emily Seebohm

Ser atleta de alta competição não é pera doce. Aliás, é preciso mesmo muita fruta para chegar ao topo de uma modalidade. Quem vê de fora, está habituado a perceber a glória do triunfo e a tristeza do fracasso, mas raramente está verdadeiramente dentro do sacrifício.

Para Emily Seebohm, nadadora australiana, o desporto de alta competição estava na sua vida ainda antes de saber realmente que era ter uma vida. O pai jogava aussie rules, a mãe praticava netball e também era treinadora de natação, por isso não espanta a atração que tenha sentido (ou para a qual tenha sido empurrada) pelo desporto.

Não é fácil, porque nunca é. Não há talento no mundo, sobretudo na natação, que consiga vingar perante a falta de sacrifício, de horas, dias, anos inteiros a trabalhar com um único objetivo em mente. E os de Emily nunca foram parcos. É até uma atleta com sucessos capazes de impressionar qualquer um, sobretudo para a dimensão de grandeza do desporto em Portugal.

Emily Seebohm tem cinco medalhas olímpicas. Foi prata nos 100 metros costas (uma das disciplinas em que vai participar em Tóquio) em Londres-2012, num ano em que também foi campeã olímpica na estafeta dos 4x100 metros livres e vice-campeã na estafeta dos 4x100 metros estilos. Nesta última categoria, também foi campeã em Pequim-2008 e prata no Rio de Janeiro-2016.

Durante o mesmo período, por exemplo, Portugal somou apenas quatro medalhas: um ouro, duas pratas e um bronze. A caminho dos 30 anos (nasceu em junho de 1992), Emily Seebohm passou por uma das fases mais complicadas da sua carreira.

A confissão é da própria, no final de 2020. «Há mais de dois anos que estou a sofrer de distúrbios alimentares. Tenho períodos em que como compulsivamente para depois vomitar e tomar laxantes. Contei calorias, saltei refeições e estava constantemente a pesar-me», começou por dizer.

A vida de Emily tornou-se insustentável. Tinha vergonha de aparecer de fato de banho e não gostava do que via ao espelho todos os dias de manhã. «Tinham-me dito que só conseguiria ser mais rápida na água se emagrecesse e acreditei», lamentou.

A confissão no final do ano não foi apenas o reconhecer de um problema, foi uma promessa de que 2021 seria um ano de mudança. «Decidi que vou ser mais corajosa para o meu bem. Vou dar ao meu corpo o amor que ele merece e, para começar, terei de ser honesta com toda a gente, incluindo comigo mesma», afirmou.

Agora, sete meses depois, Emily Seebohm está de regresso a uns Jogos Olímpicos. A pior fase parece estar ultrapassada, mas o caminho é sempre longo. Os sacrifícios passaram fatura mas percebeu a tempo que há alguns que não valem a pena. O lema de «ser o melhor que conseguires ser» não é afetado pelo amor próprio nem exige comportamentos que danifiquem a sua saúde.

Os Jogos Olímpicos vão servir como o cruzar de uma meta. O virar de mais uma página. Será também com mais uma medalha?

23 de Julho, 2021

Tomokazu Harimoto. Um cocktail genético no ténis de mesa

Rui Pedro Silva

Tomokazu Harimoto

Cem é um belo número. É redondo e normalmente está associado à perfeição. Nos Jogos Olímpicos já foram atribuídas 100 medalhas no ténis de mesa. A modalidade estreou-se em Seul-1988 e o medalheiro não dá margem para grandes dúvidas: a China é rainha e senhora.

Das 100 medalhas atribuídas, 32 foram de ouro. A Suécia tem uma, a Coreia do Sul tem três e a China… a China tem as outras todas (28). Mas a nossa figura deste texto não é chinesa, é japonesa. E o Japão… bom, o Japão tem 4% das medalhas totais – duas de prata e duas de bronze.

Pode parecer pouco mas apenas a China, a Coreia do Sul e a Alemanha têm mais. Nem mesma a Suécia, que conseguiu um título olímpico, conseguiu superar as três no total. Mesmo assim, poderão estar a insistir neste momento: o que tem de especial Tomokazu Harimoto? Os genes são um cocktail explosivo desportivo… com traços chineses, claro está.

Zhang Ling, a mãe, e o pai, Zhang Yu, são ambos chineses e, nos seus tempos áureos, tiveram o ténis de mesa como ocupação profissional. Se o pai sempre foi mais discreto, a mãe chegou mesmo a representar a China nos Mundiais de Ténis de Mesa de 1995. Ou seja, oito anos antes de Tomokazu nascer.

Não havia grande dúvida de que, quando nascesse, Tomokazu não teria grande alternativa. E foi com dois anos que começou a praticar a modalidade que o levou aos Jogos Olímpicos de Tóquio com apenas 18 anos.

Até 2014, quando tinha onze anos, Harimoto manteve a nacionalidade chinesa apesar de ter nascido em Sendai e passar praticamente toda a vida no Japão. Mas depois tudo mudou. Por esta altura, a sua vida já tinha sofrido um grande abalo.

A família de Harimoto foi drasticamente afetada pelo terramoto de Tohoku, a 11 de março de 2011. O terramoto mais tsunami que ficará para sempre associado ao acidente na central nuclear de Fukushima durou seis minutos, provocou a morte de quase vinte mil pessoas e… destruiu a casa da família.

Com a vida a desabar, Tomokazu seguiu com a família para a China, de regresso a Sichuan, mas esteve por lá apenas um ano até decidir regressar. Em 2012, Harimoto tinha nove anos. Com 11 mudou de nacionalidade e aos 13 fez história pelo Japão.

Tomokazu Harimoto estava prestes a fazer 14 anos e tornou-se o atleta japonês mais jovem de sempre a participar num Mundial de Ténis de Mesa. E a partir daí, nada mais foi o mesmo. Hoje, Harimoto talvez seja uma das melhores esperanças nipónicas de furar o bloqueio chinês ao nível dos ouros. Difícil, sim, mas ao menos faz sonhar.

Com 18 anos, Tomokazu tem somado resultados animadores mas ainda não conseguiu furar verdadeiramente a hegemonia chinesa. Tem um segundo lugar nos Jogos Olímpicos da Juventude em 2018, mas nunca foi além dos quartos-de-final em Mundiais. Na Taça do Mundo tem presenças no top-3, tal como nos Jogos Asiáticos. No meio de algumas vitórias, talvez nenhuma tenha sido mais preciosa do que a que alcançou num torneio em Doha, a 11 de março deste ano, precisamente no décimo aniversário do terramoto.

«Não esqueci aquele 11 de março. Medo, surpresa, tristeza. As vidas que se perderam nunca mais serão recuperadas. O que posso fazer é continuar a jogar na plenitude da minha capacidade para dar esperança às pessoas de Tohoku e Miyagi. Queria muito ganhar esta prova para dedicar a vitória a toda essa gente. Espero que fiquem contentes», disse.

Tomokazu Harimoto podia ter apenas sete anos – estava a meses de fazer oito – mas percebeu não só a perda que tinha sido para a família e para a sua escola primária, como o rasto de destruição provocado pelo terramoto. A partir daí, sempre que entra em jogo, sabe que não está sozinho. Muito menos nuns Jogos Olímpicos disputados em casa. Será que fará a diferença?

23 de Julho, 2021

Saurabh Chaudhary. O pesadelo noturno dos vizinhos

Rui Pedro Silva

Saurabh Chaudhary

As histórias de persistência dos atletas olímpicos costumam evidenciar sintomas de resiliência, de rasgar o verbo desistir do dicionário, de estar disposto a tudo para perseguir um objetivo. Para o indiano Saurabh Chaudhary, a história começou da pior maneira para os vizinhos.

Os ingredientes não são muito diferentes dos dos grandes atletas de outras modalidades. Se as crianças futebolistas são peritas em partir vidros com remates ao ângulo, Saurabh acordava a vizinhança toda enquanto treinava à noite.

O jovem indiano fez da sua casa um campo de tiro. Depois de colocar um alvo no seu quarto, andava para trás os passos necessários e disparava… noite e dia. Para os vizinhos, foi como viver nos Estados Unidos. Havia tiroteios todos os dias. Mas toda a gente sabia que aqui não havia feridos. Era o pequeno Saurabh a caminho de fazer história pelo seu país. «Começaram por queixar-se todas as manhãs e perguntavam o que se andava a passar à noite mas depois habituaram-se».

Saurabh também se habituou… a ser bom. E a história começou a surgir no seu horizonte ainda durante a adolescência. Com 16 anos tornou-se o indiano mais jovem da história a vencer uma medalha de ouro nos Jogos Asiáticos. Foi em 2018, na Indonésia. Mas os grandes resultados não se ficaram por aqui.

O número dois do ranking mundial tem 19 anos e arrisca-se a ser o segundo atleta indiano na história a dar um título olímpico ao seu país. Apesar de ter já conquistado nove medalhas de ouro na sua história, apenas Abhinav Bindra – também ele um atirador – conseguiu subir ao lugar mais alto do pódio, nos Jogos de Pequim, em 2008, na prova de 10 metros com carabina de ar comprimido (Saurabh vai competir na de 10 metros com pistola de ar comprimido).

Nem mesmo PV Sindhu, a jogadora de badminton mais famosa da Índia e uma das melhores atletas na sua história, conseguiu chegar ao ouro. Tirando Bindra, as medalhas de ouro só chegaram através das equipas de hóquei em campo masculinas. E não foram poucas: Moscovo-1980, Tóquio-1964, Melbourne-1956, Helsínquia-1952, Londres-1948, Berlim-1936, Los Angeles-1932 e Amesterdão-1928.

Com Saurabh Chauhary, as expectativas nunca estiveram tão altas para o povo indiano. Afinal, estamos a falar de alguém que já conseguiu juntar os títulos no Mundial, Taça do Mundo, Jogos Olímpicos da juventude e Jogos Asiáticos. O favoritismo, tal como a pressão, vão estar todas do seu lado. Mas não deve ser problema para alguém habituado a brilhar com pistolas de ar comprimido. Até os vizinhos estarão a torcer por ele.

23 de Julho, 2021

Helen Glover. Um regresso patrocinado pela pandemia

Rui Pedro Silva

Helen Glover

Facto aleatório sobre Helen Glover? Além do pai, a britânica de 35 anos aponta o fundista Haile Gebreselassie como um dos seus heróis. Não há necessariamente uma explicação identificada no seu perfil no site dos Jogos Olímpicos, mas talvez possa estar relacionado com a forma como percebeu que a vida tem muito mais de maratona do que de sprint.

Helen Glover está longe de ser uma desconhecida no mundo do desporto, mesmo que o remo não seja, à primeira vista (e segunda, e terceira, e quarta, e por aí fora…), uma modalidade que mova multidões. As comparações com outros desportos são sempre complicadas mas uma análise rápida ao seu currículo não deixa margem para dúvidas.

Helen Glover foi vice-campeã mundial em duplas sem timoneiro em 2010 e 2011. E campeã em 2013, 2014 e 2015. Nos Jogos Olímpicos, subiu ao lugar mais alto do pódio em Londres-2012 e Rio de Janeiro-2016. E, já este ano, foi campeã europeia em Varese. Embora este último título tenha sido já d.M. Ou seja, depois da maternidade.

Após a conquista do bicampeonato olímpico em 2016, Helen Glover tinha 30 anos e sentiu que tinha alcançado a satisfação no mundo do desporto. Estava na altura de dar lugar à família. O remo ia passar para segundo plano.

Foi mãe pela primeira vez em 2018 e novamente em 2020, desta feita de gémeos. Era ano olímpico, ou pelo menos assim se pensava, mas Glover tinha a cabeça noutro lado. Hoje, um ano depois, é claro que Helen está no lado dos atletas que beneficiaram dos adiamentos provocados pela pandemia. Se os Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020 se tivessem disputado realmente em 2020, o regresso da remadora provavelmente nunca se teria verificado. Mas, um ano depois, lá está ela no Japão à procura de fazer história.

A decisão de regressar à modalidade deu-se em janeiro de 2021, quatro anos depois do adeus oficial, e as marcas da «ferrugem desportiva» estavam lá. Helen Glover estava mais velha, sem ritmo e com um corpo diferente. «Quando pensei pela primeira vez no regresso, achei que seria apenas um bom sonho para ter, não fazia ideia que ia mesmo acontecer», afirmou.

Mas o sonho concretizou-se, como acontece com praticamente todos os milhares de atletas olímpicas que estão em Tóquio atrás de um objetivo mais palpável. Helen Glover queixou-se da falta de sono, dos níveis de ferro no corpo, de ainda estar a amamentar os gémeos e da fatura que todos estes fatores tinham no seu corpo. «Quando era mais nova, talvez me conseguisse safar. Agora o mais pequeno pormenor faz a diferença», disse.

O maior pormenor neste regresso de Helen Glover foi a motivação. Inspirada pela filha Willow, nascida em 2020, ganhou coragem de dar tudo o que tem e um pouco do que não tem. «Quero mostrar à minha filha do que somos capazes de sermos o que quisermos. E isso deixa-me muito inspirada, provavelmente ainda mais do que estava em Londres e no Rio de Janeiro», garantiu. Não vai ser fácil voltar a conquistar uma medalha mas este regresso não foi pensado para fazer ao sprint, é uma maratona. Ao jeito do seu herói etíope.

23 de Julho, 2021

Dina Pouryounes. Das ruas dos Países Baixos ao ponto alto olímpico

Rui Pedro Silva

Dina Pouryounes

Nasceu a 1 de janeiro de 1992 no Irão mas o caminho para os Jogos Olímpicos de Tóquio só se começou a desenhar nos Países Baixos, depois de muito sofrimento, uma vida inteira deixada para trás, algumas noites ao frio e, sobretudo, uma segunda oportunidade encontrada no taekwondo. Esta é a história de Dina Pouryounes, da equipa olímpica de refugiados.

«Estou tão feliz por ir competir em Tóquio. Espero que toda a gente se mantenha feliz mas, para mim, a Covid-19 não é uma preocupação», disse Dina durante uma reportagem feita pela Al Jazeera.

A iraniana não estava necessariamente a desvalorizar a pandemia. Estava sobretudo a valorizar o seu esforço. O seu percurso. A sua história de vida. E como tudo isto será coroado mesmo sem uma medalha.

Com 29 anos e uma vida de desilusões para trás, Dina Pouryounes encontrou no taekwondo uma motivação contagiante. E é graças a essa paixão que estará a competir na categoria de -49 quilos. Dina tem um historial de participações nas principais competições mas nos Mundiais, por exemplo, não conseguiu passar da primeira ronda tanto em 2019 como em 2017.

A carreira de Dina não se faz de medalhas, nem de amores de água fresca. Faz-se de suor, esforço e um mote incansável de «treinar arduamente para conseguir aquilo que se merece». E não deixa de ser curioso que a iraniana dê tanto valor ao mérito quando, claramente, já teve de passar por várias coisas que ninguém merece.

A primeira foi uma fuga para a frente. Ou melhor, do Irão para os Países Baixos, em 2015. Deixou família e amigos para trás à procura de uma vida melhor. De segurança. De paz. Mas foi difícil encontrar tudo o que precisava no início. Não encontrou uma casa, foi sem-abrigo durante alguns tempos e tornou-se rapidamente numa refugiada a viver em refúgios temporários.

Dina estava frustrada. Tinha passado pela experiência mais traumática da sua vida e, como em tantas outras histórias, encontrou num desporto de contacto uma forma de canalizar a raiva, libertar as frustrações e de beneficiar com a adrenalina. Foi assim que o taekwondo passou de tubo de escape para motor de arranque para uma nova vida.

A sua história começou a mudar logo em 2015 quando ainda vivia num centro de asilo. Venceu o primeiro torneio internacional, na Polónia, e começou a assumir-se como uma figura de relevo. Não entre as melhores do mundo, mas boa o suficiente para ser encarada como uma atleta de respeito.

Dina competiu como refugiada nos Mundiais de 2017, a convite da federação internacional de taekwondo, e percebeu que era uma vida que poderia continuar. A estreia olímpica em Tóquio surgiu como mais um passo natural da carreira.

Em abril de 2020, numa altura em que os Jogos nesse ano eram já uma miragem, chegou a ocupar o terceiro lugar do ranking mundial na categoria de -49 quilos. Num ano muita coisa pode mudar – e mudou mesmo -, mas o sonho de Dina vai mesmo concretizar-se.

Não interessa o título, o pódio ou um diploma olímpico. para uma atleta refugiada. Interessa mostrar que as vidas podem ter uma segunda oportunidade, que vale a pena dar um passo atrás, por mais doloroso que seja, para que os restantes possam ser para a frente, sustentados, com cuidado.

Dina é iraniana de coração mas foi forçada a deixar o seu país para trás. Não será a única em Tóquio. Na própria delegação iraniana no Japão há quatro mulheres (duas no karaté, uma no badminton e outra no atletismo), mas provavelmente nenhuma terá sido forçada a batalhar tanto para chegar onde chegou. E não apenas no taekwondo.

23 de Julho, 2021

Hend Zaza. Uma vida em guerra salva pelo ténis de mesa

Rui Pedro Silva

Hend Zaza

A minha primeira memória olímpica, ainda que muito ténue, é de Barcelona-1992. Tinha sete anos. Passei por Atlanta, Sydney, Atlanta, Pequim, Londres e Rio de Janeiro. E agora, em pré-Tóquio, está na altura de falar sobre alguém que ainda nem sequer tinha nascido quando Nelson Évora conquistou a medalha de ouro em 2008.

Parece impossível? Pois parece, mas a idade passa por todos. Ainda assim, poucos não ficarão surpreendidos com a aparição de uma atleta nos Jogos Olímpicos nascida em… 2009. Isso mesmo, a mesa-tenista Hend Zaza nasceu a 1 de janeiro de 2009.

Será a atleta mais jovem em Tóquio. Será a mais nova de sempre do ténis de mesa. A mais nova em todas as modalidades desde 1968. E a quinta mais nova de toda a história olímpica. Impressionante? Sem dúvida.

Então e não há um limite mínimo de idade para competir nos Jogos Olímpicos? Sim. E não. Vamos recorrer ao regulamento olímpico para que não haja dúvidas. São poucas linhas e esclarecem tudo o que é preciso saber: «Não haverá qualquer limite de idade para atletas nos Jogos Olímpicos que não os aplicados nas regras de competição das federações internacionais aprovadas pelo Conselho Executivo do Comité Olímpico Internacional».

Está claro, então. Hend Zaza vai poder participar nos Jogos Olímpicos de Tóquio porque a federação internacional de ténis de mesa não tem um limite de idade que a impeça. Simples, sim. Histórico, também. Mas as estórias não se ficam por aqui.

Hend Zaza não se «limitou» apenas a nascer em 2009. Nasceu em 2009 na Síria, dois anos antes de estalar a guerra civil e tornar o país irreconhecível e inseguro até hoje. Hend Zaza não tem sequer memórias do que é viver em paz. Tem apenas as experiências que o irmão, os pais e a família lhe conta. De resto, só pode imaginar.

A biografia da atleta no site dos Jogos Olímpicos parece bastante comum. É apaixonada pelo desporto, gosta de jogar basquetebol, nadar, passar tempo com a família, ler, ver séries dramáticas na televisão. E é estudante. Portanto, até aqui, nada de espantar para uma jovem atleta nos Jogos Olímpicos.

Começou a jogar ténis de mesa com cinco anos porque viu o irmão a vencer um campeonato e decidiu que também queria entrar naquele mundo. E a qualificação para os Jogos Olímpicos também não parece, à primeira vista, ter muito de invulgar: conseguiu-a depois de derrotar uma libanesa chamada Mariana Sahakian na final do torneio olímpico de apuramento da Ásia Ocidental.

O que surpreende mais? Hend Zaza tinha onze anos acabados de fazer quando o conseguiu e derrotou uma adversária com 42 anos. Até uma criança mais nova do que Hend consegue fazer as contas: havia 31 anos de diferença naquela final.

«Foi a primeira vez que competi num palco tão importante. Venci o título, que foi mais do que podia desejar, além de qualquer expectativa, e fiquei tão feliz», afirmou.

E, nunca é demais reforçar, Hend Zaza foi fazendo tudo isto durante a guerra civil na Síria. Cresceu, aprendeu a ler, a fazer contas de matemática, a apaixonar-se pelo desporto e pelo ténis de mesa enquanto milhões fugiam do país e tornavam o território impróprio para grandes sonhos, muito menos olímpicos.

«Durante o conflito, tivemos muitas dificuldades e não treinávamos muito nem viajávamos entre cidades, por isso passei por muitos problemas. Até as raquetas e as bolas eram difíceis de arranjar», lamentou em entrevista ao site da federação internacional de ténis de mesa.

A verdade é que Hend Zaza faz parte de uma geração feminina do ténis de mesa que insiste em brilhar apesar de todas as dificuldades. No Rio de Janeiro foi a vez de Heba Allejji. Na altura, com 19 anos, recebeu uma vaga do Comité Olímpico Internacional e tornou-se a primeira síria a competir na modalidade. O objetivo: «Mostrar que ainda somos capazes de jogar e treinar na Síria».

Nessa altura, Hend Zaza tinha sete anos e jogava há poucos anos. Mal sabia Allejji, e o próprio Comité Olímpico Internacional, que a profecia iria concretizar-se cinco anos depois. Hend Zaza não teve convite para estar nos Jogos Olímpicos, mas sim para viajar para a China em 2020 e treinar com a seleção nacional.

Não há limites para Zaza, mas Tóquio-2020, em 2021, será, sobretudo um processo de aprendizagem. Está fora do top-150 do ranking e passar uma ronda já será visto como uma grande surpresa. Não tão grande como toda a sua história de (curta) vida, ainda assim.

22 de Julho, 2021

Brady Ellison. O Cowboy do Arizona curado por energia positiva

Rui Pedro Silva

Brady Ellison

«Ninguém conseguia perceber o que estava errado. Cheguei a um ponto em que pensei que tinha de desistir. Não aguentava mais. Não valia a pena.» A carreira de Brady Ellison, o Cowboy do Arizona, esteve por um fio em 2018 mas, como em tantas vezes na sua vida, conseguiu descobrir um caminho para voltar à ribalta no tiro com arco.

O norte-americano de 32 anos não é um novato nestas andanças. Conquistou uma medalha de prata em Londres-2012 e saiu do Rio de Janeiro-2016 com o segundo lugar na prova coletiva e o bronze na competição individual. Para o atirador que tem lutado contra todas as probabilidades, subir finalmente ao lugar mais alto do pódio é o objetivo que resta.

A vida de Brady deu muitas voltas. Houve mesmo uma altura em que não conseguia sequer subir para cima... das próprias pernas. Quando era criança, com cinco anos, foi diagnosticado com a Doença de Perthes, e esteve mais de um ano com um auxílio para conseguir andar até que as ancas recuperassem.

Mais de vinte anos depois, as lesões voltaram a aparecer e estiveram perto de ditar o fim da carreira. Brady Ellison nunca foi completamente saudável mas o tiro com arco, uma modalidade que nasceu da vontade de acompanhar as aventuras do pai e do avô na caça, nunca lhe exigiu muito. E os resultados apareceram.

A sua carreira está longe de se resumir à experiência olímpica. Neste momento, o norte-americano é recordista do mundo. E venceu a medalha de ouro no último Mundial, disputado nos Países Baixos, em 2019. Foi a primeira vez, e única até agora, que conseguiu subir ao lugar mais alto do pódio numa prova individual.

E aconteceu já depois de uma dor insistente num dedo lhe ter indicado que o fim podia estar próximo. A solução estava na Eslovénia. Uma vez mais, diga-se, porque foi também no país de Luka Doncic e Tadej Pogacar que Brady Ellison encontrou o amor da sua vida, numa outra atleta do tiro com arco (Toja Cerne).

Mas falemos então dos seus problemas num dedo, que começaram em 2012. A dor, com origem num nervo, afetava o dedo médio da mão direita e impedia que pudesse competir a um nível elevado. Quando piorou, entre 2017 e 2018, competir transformou-se num calvário. E foi então que, numa medida de quase desespero, recorreu aos serviços de um… bioenergeticista.

E o que fez este especialista? Praticamente nada, ao que parece. «Não me deu medicação e mal me tocou. Acho que é uma daquelas pessoas que tem uma frequência muito elevada de energia no corpo. É um dom e consegue usá-lo para curar pessoas», contou Brady Ellison em 2019, ao mesmo tempo que garantia que nunca tinha atirado tantas flechas na carreira sem um único sinal de dor.

Resta saber se a energia descoberta na Eslovénia conseguirá ajudá-lo também a fazer a diferença em Tóquio, rumo à tão desejada medalha de ouro. Além da prova individual, fará também equipa com a prodígio adolescente Casey Kaufhold. «É bom para o desporto e para o futuro termos provas mistas. É interessante ver homens e mulheres juntos no tiro com arco. É uma excelente prova de que as mulheres também são muito boas, até porque muitas vezes conseguem alcançar melhores pontuações do que os homens», disse.

22 de Julho, 2021

Karma Karma. Quando um nome nunca vem só

Rui Pedro Silva

Karma Karma. Ou Karma só

O Butão está longe de ser uma potência olímpica. Falando apenas dos Jogos de Verão, estreou-se em 1984, com seis atletas, marca que não chegou a ser ultrapassada desde então. Hoje, 37 anos depois, a comitiva asiática vai apresentar-se em Tóquio com quatro atletas, o dobro do que registou entre Atlanta-1996 e Rio de Janeiro-2016 (dois atletas em cada uma dessas edições).

O Butão vai ter dois homens (Ngawang Namgyel no judo e Sangay Tenzin na natação) e duas mulheres (Lenchu Kunzang no tiro e Karma no tiro com arco), mas três das presenças foram conseguidas por convite ou quotas criadas para promover o desporto em todos os cantos do mundo. Só uma foi conseguida com qualificação: a de Karma. Ou, falando em olimpiquês, Karma Karma.

A duplicação do nome explica-se através de uma viagem ao passado, de cinco anos, até ao Rio de Janeiro. Na altura, a atleta surgiu nos Jogos Olímpicos com convite mas a inscrição foi um desafio. Mesmo que o lote para Tóquio não o pareça comprovar, existe uma tradição com alguma representatividade de butaneses terem apenas um nome.

Karma é mesmo só Karma. É como as Anas e as Marias de Portugal que passam vidas inteiras a dizer que se chamam Ana só ou Maria só porque toda a gente espera um segundo nome próprio. No caso de Karma, não é uma questão de nome próprio ou nomes de família. É mesmo só um: Karma. E os Jogos Olímpicos não estavam, nem estão, preparados para lidar com isso.

Como todos os atletas estão obrigados a registar pelo menos dois nomes na inscrição, foi necessário criar uma solução para Karma. No caso, foi a solução da multiplicação: Karma tornou-se Karma Karma.

A participação no Rio de Janeiro não foi brilhante e perdeu na primeira ronda mas parece ter angariado… karma suficiente para os anos seguintes. Três anos depois, em 2019, numa competição asiática, conseguiu garantir uma vaga pela qualificação normal para o Butão no tiro com arco. Mas teve de esperar até 2021 para conseguir efetivamente registar a pontuação mínima necessária, ultrapassando outra atiradora butanesa e garantindo uma nova presença com base num critério subjetivo mas compreensivo de antiguidade/pioneirismo.

O tiro com arco é uma das modalidades nacionais do Butão, embora não necessariamente com arco recurvo. Mas foi precisamente esse o caminho que encontrou para concretizar um sonho que nasceu quando andava na escola. «Lembro-me de aprender um pouco sobre os Jogos Olímpicos durante uma aula do secundário no este do Butão. Comecei a praticar tiro com arco em 2009 e desde então o meu sonho sempre foi chegar aos Jogos Olímpicos», contou.

Como não podia ter tudo, a entrada no mundo do desporto tirou-lhe o mundo da educação. «Na escola, não tinha conseguido uma bolsa para uma universidade mas a minha irmã contou-me que havia uma vaga no programa olímpico do tiro com arco, por isso fui a uma entrevista e fui selecionada», lembrou.

Hoje, com 31 anos, Karma é a butanesa do tiro com arco mais famosa do seu país. Em Tóquio sonha com a medalha de ouro mas nem todos os sonhos estão à mão de semear. Nem com o crédito de todas as boas ações acumuladas durante uma vida inteira.

22 de Julho, 2021

Casey Kaufhold. A menina-prodígio do tiro com arco

Rui Pedro Silva

Casey Kaufhold

Casey Kaufhold não vai ser a atleta mais jovem nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Longe disso. Com 17 anos feitos em março, a atleta norte-americana nem estará, provavelmente, no top-100 dos mais jovens em prova.

Mas a juventude de Casey não se pode resumir ao ano do bilhete de identidade. Se há matérias em que transpira experiência (já lá vamos), há outras em que parece um bebé acabado de nascer que nos faz sentir no ocaso da vida (que é como quem diz «velhos como uma carcaça com dois dias»).

Querem um exemplo? A NBC perguntou-lhe recentemente qual era a memória mais antiga que tinha dos Jogos Olímpicos. É certo que tem apenas 17 anos mas mesmo assim a resposta é muito surpreendente.

«Foi quando a Simone Biles foi para os seus primeiros Jogos em 2016. Nessa altura eu queria participar nos Olímpicos como ginasta. Tinha o objetivo de fazer algo que adorasse num palco grande como aquele», afirmou.

Sim, Casey Kaufhold é uma atleta do tiro com arco com alma de ginasta. Mas olhando para a sua vida é fácil de perceber a razão para não ter tido sequer hipótese para fugir ao tiro com arco. Os pais, Robert e Carole, são proprietários de uma fábrica de produtos da modalidade e Robert chegou mesmo a fazer parte da seleção norte-americana, em mais do que uma ocasião.

Se em 2016, com 12 anos, Casey olhava para Simone Biles e queria ser uma ginasta nos jogos Olímpicos, no ano seguinte começou a fazer história no tiro com arco. E de que maneira! No campeonato nacional indoor realizado em Lancaster, a sua terra-natal na Pensilvânia, bateu o recorde nacional cadete, júnior e sénior de uma vez. Tinha 13 anos e nunca uma mulher tinha feito melhor nos Estados Unidos.

A semente estava lançada e olhar para Tóquio começou a ser uma obrigação natural para quem começara a fazer história tão jovem, de tal forma que foi forçada a queimar etapas. «Vou começar a competir como sénior em breve. Tenho o objetivo de chegar ao Mundial este ano porque posso, potencialmente, integrar uma equipa com o Brady Ellison [a caminho da quarta edição em Tóquio] e com o Mackenzie Brown, o que seria uma experiência muito gira», disse na altura.

O tiro com arco não é a maior paixão de Casey Kaufhold, é apenas algo em que é mesmo muito boa. Sendo ou não uma candidata às medalhas, sobretudo na variante mista, Casey lamenta que a sua modalidade não possa ser um pouco mais como a ginástica artística.

«Gostava que pudesse provocar aquela adrenalina que existe na ginástica ou na patinagem artística. Sinto falta de atuar perante uma multidão ou de como me sentia ao movimentar ao som da música. Gostava que uma parte do tiro com arco me pudesse dar uma sensação semelhante», afirmou.

Talvez os desportos não pudessem ser mais diferentes. No Japão, Casey Kaufhold não terá adeptos (como nenhuma outra modalidade) e o silêncio será de ouro. Enquanto estiver a competir, terá tudo a passar-lhe pela mente. De como se inspirou em Simone Biles primeiro e Brady Ellison depois. De como queimou etapas durante a sua evolução no tiro com arco para chegar mais longe, mais rápido.

«Não cheguei a competir nos 50 ou nos 60 metros. Com 14 anos passei logo para os 70 para poder alcançar mais rapidamente os meus objetivos», garantiu. Casey é assim. Sabe o que quer e vai atrás disso, de arco e flecha nas mãos para fazer história por si, pelos seus pais e pelo seu país.

Não é à toa que «Don’t Stop Me Now» é a música que prefere ouvir antes de iniciar uma prova importante. Até agora não houve mesmo ninguém que a tivesse impedido de ir saltando etapas. Mas como será no maior palco de todos? Casey não está no top-50 do ranking mundial, mas a sua carreira tem sido uma série de surpresas.

21 de Julho, 2021

Taylor McQuillin. A visão está para além dos olhos

Rui Pedro Silva

Taylor McQuillin quando jogava no Arizona

O México foi uma das primeiras seleções a entrar em competição nos Jogos Olímpicos de Tóquio. No softball, contra o Canadá, a equipa mexicana não teve grande sorte e perdeu o jogo de estreia. Entre as atletas utilizadas, uma saltou à vista: a lançadora Taylor McQuillin. Não pelo nome pouco mexicano mas sim pela história de vida, por ser cega do olho esquerdo.

Nem sempre é simples lidar com as deficiências dos outros. É difícil fugir às comparações, ao raciocínio de como seria se fôssemos nós que não tivéssemos um braço, uma perna, que não conseguíssemos falar, ouvir ou ver. Mas Taylor McQuillin tem demonstrado desde sempre que essa é uma falsa questão.

A vida de Taylor McQuillin nunca foi diferente do que é agora. Para a atleta que nasceu em Long Beach, na Califórnia, nunca houve uma sensação de perda. Não sabe o que é ver com os dois olhos, não sabe o quão diferente poderia ser a sua vida se tivesse uma visão perfeita. Pode comparar, é claro, mas da mesma forma que é difícil colocarmo-nos no corpo dela, pode ser ainda mais difícil o contrário.

É como se agora, de repente, se descobrisse que há uma enorme percentagem da população que consegue ver através de paredes. Sim, há quem consiga ver melhor, ou ver diferente, mas será que nos sentiríamos assim tão limitados tendo em conta que nunca fomos capazes de ver através delas?

O exemplo pode ser forçado mas não foge muito à ideia apresentada por Taylor McQuillin. «Nunca tive uma visão a 100% com os dois olhos, por isso isto para mim é normal», garante.

O problema de Taylor McQuillin é uma consequência de uma doença chamada sínfrome de Duane. Além de ser legalmente cega do olho esquerdo, também tem a audição afetada no ouvido esquerdo. Durante os primeiros anos de vida foi submetida a várias operações mas a deficiência nunca foi corrigida.

Sem solução possível, os médicos sugeriram a aposta na adaptação. Aí, o desporto surgiu como fundamental para que Taylor conseguisse desenvolver uma melhor perceção de espaço, movimento e equilíbrio. Jogou futebol, nadou, fez ginástica e dançou, mas o amor à primeira vista, e que ainda dura, foi o softball.

Os pais, os treinadores e as colegas de equipa ao longo dos anos podem ter sentido alguma dificuldade de adaptação às ideias de Taylor McQuillin, sobretudo quando decidiu ser lançadora e estar no ponto de mira de bolas que podem ser devolvidas a alta velocidade, mas esse nunca foi um problema sério que tenha persistido.

As barreiras que poderiam existir foram derrubadas praticamente desde o primeiro momento e hoje Taylor McQuillin é parte integrante da seleção mexicana. Depois de ter jogado na Universidade do Arizona e de ser selecionada no draft pelas Cleveland Comets, surgiu a oportunidade de representar o México devido a heranças familiares.

«Sonho com os Jogos Olímpicos desde criança. O simples facto de poder ter uma oportunidade, mesmo que não seja pelos Estados Unidos, de representar o outro lado da minha família e de estar no palco olímpico é incrível para mim», disse em 2019.

Hoje, dois anos depois, Taylor McQuillin é uma mulher feliz. E demonstrou, uma vez mais, que a visão está muito para além do que nos mostram os olhos.

21 de Julho, 2021

Barbra Banda. Muito mais do que uma pugilista a fazer três golos

Rui Pedro Silva

Barbra Banda

A estreia de Barbra Banda nos Jogos Olímpicos foi um misto de sensações agridoces. A futebolista brilhou com três golos marcados aos Países Baixos mas a Zâmbia sofreu uma goleada pesada (10-3). Numa tarde em que a seleção africana foi ao tapete, praticamente derrotada por knockout, os únicos socos que as zambianas conseguiram desferir foram dados precisamente por uma antiga pugilista.

Barbra Banda não desistiu. Começou a dar nas vistas logo nos minutos iniciais, marcou o primeiro golo quando a Zâmbia já perdia por 3-0 e voltou a marcar – em duas ocasiões quase consecutivas – na reta final do encontro. Foi ela a dar cor a um jogo que de outra forma seria terrível e para esquecer. Foi ela que fez jus a toda a sua vida, à vida de uma atleta que se destaca entre as demais, dentro e fora do campo.

As origens desportivas são a primeira nota a destacar. Barbra Banda tem 21 anos, joga futebol, vive na China e está a competir em Tóquio. Mas há não muito tempo começou a sua carreira profissional como pugilista. E não era má. Aliás, era tão boa que até venceu os primeiros cinco combates da sua carreira.

A herança familiar foi decisiva para a desencaminhar. O pai foi jogador de futebol e inspirou-a desde jovem a seguir o mesmo caminho. O boxe foi um atalho desportivo mas o futuro, como se provou contra os Países Baixos, estava mesmo no futebol.

A história está a ser feita etapa atrás de etapa: a Zâmbia nunca tinha conseguido o apuramento olímpico para o torneio feminino mas fê-lo com Banda na equipa, com a braçadeira de capitã. Fê-lo com a sua jovem e talentosa futebolista a servir de exemplo num país em que o futebol é rei mas tem pouco de... rainha.

«Concentram-se mais no campeonato masculino. Só olham para nós quando conseguimos bons resultados. Não temos patrocinadores, por isso é muito difícil reunir condições para melhorarmos, mas estamos a progredir a pouco a pouco», afirmou.

Para Barbra Banda, a sua experiência, apesar dos 21 anos, tem sido decisiva. O boxe ajudou, é claro, sobretudo a aumentar a velocidade de raciocínio e a importância de equilibrar o ataque com a defesa, mas num país onde os apoios para o futebol praticado por mulheres são escassos, foi a saída para o estrangeiro que se revelou decisiva.

Aconteceu em 2018 e para o futebol espanhol. «Aprendei a entender o jogo. A forma como jogava na Zâmbia e na Europa era muito diferente. O futebol espanhol é mais desenvolvido e a liga é muito competitiva. Jogar lá ajudou-me a progredir em muitos domínios, aprendi muito, nomeadamente a nível tático, de estratégia e de estilos de jogo», disse.

De Espanha saiu para a China e em 2020 sagrou-se a melhor marcadora do campeonato, com 18 golos. Mas, tal como na derrota com os Países Baixos, às vezes não se trata apenas dos golos que marca mas sim do significado que está por trás daquilo que faz. E se Barbra Banda tem apenas 21 anos, é impossível fugir à ideia de que está a fazer mais pelo desporto e pela sociedade zambiana do que muita gente décadas mais velha.

A Fundação Barbra Banda, criada já este ano, é um instrumento fundamental para ajudar a apoiar e promover o desporto feminino na Zâmbia e, ao mesmo tempo, apelar à igualdade e ao combate à violência de género.

«Como tanta gente, não venho de um meio de abundância e, como tal, compreendo o que significa procurar ajuda e não encontrar ninguém disposto a apoiar. Também já sei quão mais fácil a vida se torna quando há gente a ajudar-te nos teus objetivos. A desigualdade económica, a violência de género, a falta de acesso a oportunidades, a gravidez adolescente e o casamento prematuro são alguns dos maiores problemas que as mulheres e as raparigas enfrentam atualmente e o nosso objetivo é ajudar a aliviá-los com o poder do desporto.»

Digam lá: acham mesmo que o mais importante de Barbra Banda foram os três golos que marcou aos Países Baixos?

21 de Julho, 2021

Yukiko Ueno. A primeira estrela de Tóquio-2020

Rui Pedro Silva

Yukiko Ueno

É difícil detetar o momento certo em que algo começa. Seja onde for. Nos Jogos Olímpicos, num evento em que há de facto uma cerimónia de abertura, raras são as vezes em que esse é o verdadeiro início. Basta ver o que acontece em Tóquio, em 2021, na edição de 2020.

A cerimónia de abertura está agendada para 23 de julho. Os calendários apontam todos para 24 de julho como o primeiro dia dos Jogos Olímpicos mas, na verdade, o arranque foi dado a 21, num jogo de softball entre o Japão e a Austrália.

E se o primeiro hino a soar no Japão foi o da Austrália, o verdadeiro primeiro momento de competição saiu das mãos de Yukiko Ueno. Foi ela a lançadora da equipa da casa na estreia e, como tal, pertenceu-lhe o primeiro lançamento da primeira metade do primeiro inning do encontro.

Com tantos primeiros, talvez seja de espantar que Yukiko Ueno esteja a dar as últimas. A lançadora tem 38 anos e é profissional desde 1999. Não foi o suficiente para estar nos Jogos Olímpicos na… Austrália, mas integrou a seleção nas edições de 2004, onde conquistou uma medalha de bronze, e de 2008, onde conseguiu o título olímpico em Pequim.

Treze anos depois, o softball regressou ao programa olímpico para a sua quinta edição. O título de 2008 foi o único não conquistado pelos Estados Unidos, enquanto o Japão tem um primeiro, um segundo e um terceiro lugares na prova.

Yukiko Ueno foi fundamental em duas dessas participações: em 2004 conseguiu um jogo de sete innings perfeito numa vitória sobre a China. O que quer isto dizer? Enquanto esteve em campo, as adversárias não conseguiram chegar uma única vez à primeira base. Perfeição, lá está. Algo que não aparece ao alcance de todos. Quatro anos depois, não conseguiu repetir a proeza (até porque o feito em 2004 foi inédito no softball olímpico) mas estava na sua melhor fase de sempre.

«Atingi o meu auge em 2008. Era uma jogadora completa. Agora estou a aproveitar o softball de uma maneira diferente. Ainda procuro bons resultados, mas já não tenho a mesma paixão de 2008. Contudo, não vou parar de jogar porque sinto que a equipa precisa de mim nos Jogos Olímpicos», afirmou.

E se a equipa precisa, Ueno corresponde em campo. Pelo menos assim foi na estreia. Na primeira prova destes Jogos Olímpicos, o Japão derrotou a Austrália por 8-1 e a veterana de 38 anos foi uma estrela incontornável. Num jogo com cinco innings, Ueno somou a vitória, eliminando 13 das 15 jogadoras necessárias. Sete foram eliminadas por strikes e permitiu apenas que quatro alcançassem as bases (duas através de hits e outras duas através de bolas).

Tem 38 anos? Sim. Mas Ueno continua a dar que falar e tornou-se mesmo a primeira estrela dos Jogos Olímpicos de Tóquio. No seu próprio país. É obra.

20 de Julho, 2021

Formiga. A mulher que faz jus à alcunha

Rui Pedro Silva

Formiga vezes sete

Chama-se Miraildes Maciel Mota e trata os Jogos Olímpicos por tu. Ou por você, como os brasileiros usam no seu modo mais informal. A mulher que nasceu em março de 1978 apaixonou-se pelo futebol e cresceu num meio que viu brilhar Romário, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Kaká e tantos outros. E se ela não conseguiu ser campeã do mundo, há algo que os seus compatriotas nunca vão conseguir alcançar: a longevidade.

Miraildes pode tratar os Jogos Olímpicos, ou os Mundiais de futebol, por tu, mas a ela toda a gente trata por Formiga. É a alcunha perfeita para uma futebolista que não se importa de fazer o trabalho sujo, de suar em campo, de carregar o piano, a bateria, o violoncelo e a orquestra toda para que uma maestrina possa brilhar.

Formiga nunca se destacou necessariamente pelo que fez num lance, num jogo ou num campeonato. Destacou-se porque toda a gente se habituou a ver Formiga. Em todo o lado. A toda a hora. Quando se estreou no Mundial em 1995, o segundo oficial na história da FIFA, tinha apenas 17 anos e três meses. E desde aí nunca mais desapareceu.

Esteve em todos os Mundiais a partir de então e em todos os Jogos Olímpicos desde 1996, em Atlanta. Quando o Brasil defrontar a China esta quarta-feira, a partir das 09h00 (hora de Portugal continental), Formiga estará a participar pela sétima vez consecutiva nuns Jogos.

O ditado – e talvez a ciência, mesmo – diz que uma formiga consegue carregar até 100 vezes o seu peso; esta Formiga consegue carregar o peso todo da história sem se queixar. Nunca foi campeã do mundo, só tem um segundo e um terceiro lugares. Nunca foi campeã olímpica, só tem duas medalhas de prata. Mas tem algo que não está ao alcance de mais ninguém: um lugar na história.

Formiga tem o pleno de participações nos Jogos Olímpicos. O torneio feminino só foi introduzido em 1996 e Formiga lá estava, ainda adolescente, a dizer presente. Só falhou um Mundial organizado pela FIFA, o primeiro, em 1991, na China. De resto, esteve sempre lá.

De Atlanta-1996 a Tóquio são sete edições consecutivas. Estreou-se com 18 anos e nem o adiamento de um ano de 2020 para 2021 impediu que voltasse a dizer presente, agora já com 43 anos. O tempo passa por ela, como passa por todas as outras. Já não tem a mesma vivacidade de outrora, a mesma resistência, o mesmo pulmão. Mas continua a ser uma verdadeira formiga. A trabalhar, incansável, em busca da glória.

01 de Julho, 2021

Precisamos de mais heróis com pés de barro

Rui Pedro Silva

Andy Murray teve um dia para lembrar em Wimbledon

Esta era para ser uma história de futebol mas rapidamente se pode tornar sobre ténis. Era para ser uma história sobre Inglaterra mas foi sequestrada por Andy Murray, o escocês que durante anos só foi sendo britânico por conveniência.

A exibição de Murray em Wimbledon contra o alemão Oscar Otte, numa maratona de segunda ronda decidida no quinto set, conquistou qualquer coração que não se defina por insensível. Não é tanto uma história de redenção, como tantas outras no passado, mas sim de paixão. De vencer a dor, a mágoa, a desilusão, o próprio tempo para prolongar o prazer de se fazer algo mesmo quando se percebe que vencer – vencer mesmo – já não está ao alcance.

Quando Andy Murray venceu ontem, a humanidade sorriu. Tal como na véspera tinha sorrido quando os ingleses venceram a Alemanha em Wembley. Não por ser a Inglaterra. Não por ser a Alemanha. Mas pelo abstrato de ser uma história de libertação de um trauma. De dar uma lição valiosa de que é possível, mesmo quando todos dizem o oposto e os sinais de um passado próximo – e até um pouco mais distante – apontam para o contrário.

A Inglaterra, uma seleção de falhas, conseguiu vencer a Alemanha, a seleção que tem fama – e cada vez menos proveito – de infalível. Andy Murray, o tenista com um corpo esmagado pelo esforço, conseguiu voltar ao palco mais alto do ténis britânico e dar pelo menos mais uma tarde/noite inesquecível a todos os fãs.

O impacto do desporto é este. A proximidade, os pontos de contacto, que o adepto comum, o ser humano com pouco de extraordinário, consegue estabelecer com um atleta de elite. E se figuras como Michael Jordan, Messi e tantas outras podem parecer inspiradoras para exigir nunca menos do que a perfeição, é na imperfeição que surgem as boas histórias.

Os heróis com pés de barro humanizam o desporto. Fazem-nos sentir iguais às figuras que vemos na televisão. Não precisamos de autómatos, de homens e mulheres disfarçados de máquinas perfeitas que nos levam para uma sobrenaturalidade ou algo de outro planeta. Existem, claro, e deixam marca, mas é dos outros que precisamos.

O desporto é feito de empatia. Faz-nos apaixonar por um clube, torcer pelas vitórias de uma figura, sofrer com as derrotas e chorar com as desilusões. É uma metáfora da vida, uma extensão para o quotidiano onde os dias não são, nem podem ser, todos perfeitos.

Roger Federer pareceu um autómato até janeiro de 2009. Depois chorou ao perder com Nadal na final do Open da Austrália. Ali, naquele momento, tocou milhões de adeptos que até então poderiam não gostar dele. Humanizou-se e, com isso, chegou a mais gente.

Roger Federer perdeu Open da Austrália em 2009 para Nadal

Não queremos heróis com falhas criminosas. Não queremos grandes talentos, autênticas estrelas que atropelem gente na rua, violem ou agridam mulheres, se dopem ou sejam agressivos com adeptos. Não é desse material que este barro se faz. É do material da falibilidade.

Precisamos de heróis que não sejam super-heróis. Precisamos de estrelas que se apaguem, de figuras que podem falhar nos grandes momentos para, juntamente com eles, descermos ao inferno e acompanharmos a jornada de regresso ao topo. Precisamos de sentir que aquele herói é como nós. Precisamos de saber que a angústia é partilhada, que nem todos os dias podem ser bons, que a infalibilidade é um desejo, talvez até uma obsessão, mas será para sempre utópica.

No fundo, precisamos de proximidade. Por muito tentador que seja poder idolatrar alguém que ganhe sempre, que tenha tudo na vida, que seja impoluto e irradie felicidade, é irrealista achar que de facto há gente assim.

As pessoas não são assim. Os atletas, com maior ou menor sucesso, também não o são. E é por isso que cada vez mais temos figuras como André Gomes e Kevin Love a abrir o livro sobre depressões. É por isso que temos Naomi Osaka, uma das maiores figuras do ténis feminino atual, a humanizar-se e a alertar para a necessidade de proteger a sua saúde mental.

É ótimo ver Naomi Osaka a jogar dentro de campo mas foi a sua confissão de não estar num momento bom que terá tocado mais gente por todo o mundo por estabelecer um denominador comum. Não precisamos de atletas sem-vergonha a dizer ao mundo que merecem ser donos disto tudo, precisamos de atletas sem vergonha de dizer ao mundo que têm falhas. Que são pessoas. Que precisam de ajuda.

Precisamos de mais heróis com pés de barro. Porque a perfeição até no cinema aborrece.

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