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É Desporto

É Desporto

31 de Julho, 2021

Gwen Berry. Quando lançar o martelo é uma pedrada no charco

Rui Pedro Silva

Gwen Berry

«Alguém tem de se levantar e fazer frente às injustiças que estão a acontecer nos Estados Unidos. Fiz o que fiz como uma declaração de interesses não só por mim mas também por todas as pessoas que estão a sofrer. É um exagero o sofrimento pelo qual algumas têm de passar.»

Gwen Berry é norte-americana, tem 32 anos, e está nos Jogos Olímpicos de Tóquio para competir no lançamento do martelo. Há dois anos, nos Jogos Pan-Americanos em Lima, no Peru, decidiu replicar um dos gestos mais famosos em pódios olímpicos, erguendo o punho como Tommie Smith e John Carlos fizeram na Cidade do México em 1968 e, mais tarde, noutra prova, virado as costas às bandeiras durante o hino.

A consequência foi exatamente a mesma de Race Imboden, esgrimista que se ajoelhou na mesma competição: uma suspensão de doze meses imposta pelo Comité Olímpico dos Estados Unidos. Um ano depois, porém, o organismo pediu desculpa, numa fase em que a instabilidade social no país ganhava novos contornos, e promoveu o regresso em pleno de Gwen Berry.

A iniciativa surtiu o seu efeito mas Gwen Berry aprendeu que essa pode não ser a melhor forma de atuar. «Sinto que se erguer o meu punho sempre que ganhar uma medalha vai tornar-se aborrecido. Em vez disso, tenho de fazer mais. Tenho de falar mais com as pessoas por todo o país», afirmou.

A iniciativa de Gwen em 2019 teve um efeito nefasto. A lançadora perdeu patrocinadores e viu o adiamento dos Jogos de Tóquio prejudicar ainda mais o seu futuro. «O adiamento foi devastador porque cortou as minhas receitas. Fiquei sem competição, sem probas no estrangeiro, sem dinheiro dos resultados. Quando se fica sem a oportunidade de ir aos Jogos Olímpicos, tudo é cortado. A situação mental destes atletas é muito frágil. Os atletas olímpicos não são todos como os basquetebolistas, que têm muito dinheiro. O público acha que somos estrelas mas não é nada disso, talvez só 1% tenha um rendimento decente», explicou.

As aspirações de Gwen Berry estão longe do pódio ou de atingir o tal estatuto de estrela. No Rio de Janeiro não conseguiu o apuramento para a final e em Mundiais nunca foi além da 12.ª posição. A atleta que começou no triplo salto mas que encontrou a sua especialidade no martelo, é uma pedrada no charco em várias componentes.

Ter sido mãe logo com 15 anos pode ter ajudado, mas a responsabilidade pela sua identidade muito vincada não é atribuída aos obstáculos que teve de ultrapassar mas sim à forma como o pai lidou com ela. «Lutou pelo país [no Iraque] e teve de estar longe dos seus quatro filhos. Ensinou-me muito sobre este mundo, sobre a vida, sobretudo sobre a história africana. Foi sempre um rebelde, sem medo de dizer o que pensava, fazer o que era certo para si e para a sua família. Acho que foi a ele que fui buscar esta postura», disse.

30 de Julho, 2021

Cyrille Tchatchet II. A importância da segunda oportunidade

Rui Pedro Silva

Cyrille Tchatchet II

Não há razões únicas para conduzir alguém a uma modalidade. Pode ser um herói na televisão, pode ser um pai ou uma mãe, pode ser um amigo na escola. Como nos dizem vezes sem conta enquanto crescemos, às vezes o que interessa realmente é encontrar alguma atividade que nos faça felizes e desperte o bichinho de continuar para sempre.

Para o camaronês Cyrille Tchatchet II, o fator determinante foi uma fotografia. De um familiar, é certo, mas uma fotografia. «Foi muito aleatório. Olhei para uma fotografia do meu tio a fazer halterofilismo numa parede e pensei que queria fazer o mesmo.» Assim tão simples.

O caminho estava apenas a começar. Cyrille contou o objetivo à mãe e, de familiar em familiar, passando por vários primos, o jovem chegou finalmente a um ginásio para fazer halterofilismo. Tinha 14 anos e um mundo de sonhos pela frente. Foi supersónico: «Vi a fotografia a um sábado e na segunda-feira comecei a fazer halterofilismo».

A história parece um conto de fadas mas está longe de o ser. Cinco anos depois, Cyrille já era um dos atletas mais conceituados do país e foi escolhido para representar os Camarões nos Jogos da Commonwealth de 2014, na Escócia. Teria sido uma boa oportunidade para mostrar as suas qualidades, mas assim que chegou ao norte da ilha… fugiu.

«Saí literalmente do estágio dos atletas em direção à cidade e acabei a dormir na rua nessa noite. Contei a minha história a alguém com quem me cruzei na rua e levaram-me para Londres», recordou mais recentemente. O calvário de Cyrille estava apenas a começar.

«Meteram-me num autocarro em direção a Brighton e não havia nada sobre Brighton que eu soubesse, mas era tão longe quanto possível», lembrou, falando de uma cidade que estava praticamente no ponto oposto da ilha, longe dos restantes camaroneses da comitiva. O problema veio depois: Cyrille estava abandonado e sem saber o que fazer.

«Pensei durante muito tempo em tomar uma decisão drástica. Queria pôr fim a tudo. Chegou a um ponto em que perguntava por que é que estava a desperdiçar tempo em vez de despachar logo tudo. Pensava desta maneira porque sentia que era inútil. Mas depois vi um número de telefone ao meu lado, de uma associação samaritana, que aconselhava a ligar caso alguém se sentisse em baixo», afirmou.

«Tinha algum saldo no meu telemóvel, por isso liguei. Perguntaram-me onde estava e desconfio que foram eles que ligaram à polícia porque, uns minutos depois, apareceu um carro. E travaram qualquer ideia que eu pudesse estar a ter», continuou.

Depois de bater no fundo, Cyrille começou a retomar a motivação de viver a pouco e pouco. Recuperou o interesse pelo desporto e preocupou-se em estudar, precisamente numa área com a qual se sentia muito identificado – na prestação de cuidados relacionados com saúde mental.

«A grande aprendizagem que fiz é que preciso de me manter ocupado e que há uma grande ligação entre o bem-estar físico e o mental. Acho que sou o exemplo perfeito de como o exercício positivo pode influenciar alguém», diz.

Hoje, sete anos depois, está nos Jogos Olímpicos. E não fugiu. Tem esperança, está ocupado, é uma pessoa diferente da que teve medo de regressar aos Camarões. Continua a sentir-se camaronês mas compete pela equipa de refugiados. E faz o que sempre gostou, pelo menos desde que viu aquela fotografia na parede.

30 de Julho, 2021

Emma Twigg. Parar para pensar abriu caminho ao ouro

Rui Pedro Silva

Emma Twigg

«Não consigo acreditar, a sério que não. Foi com descrença que cruzei a linha de meta. Aliás, nem sequer ouvi a sirene e por um minuto ainda pensei que tinha parado antes de chegar ao fim. Estou sem palavras», reagiu Emma Twigg depois do tão ansiado ouro.

A remadora da Nova Zelândia, 34 anos, tem um historial de ficar à porta sem conseguir ganhar. Pior: não consegue sequer alcançar o pódio nos Jogos Olímpicos. Na estreia, em Pequim, não foi além do nono lugar e em Londres e no Rio de Janeiro ficou mesmo à porta das medalhas, sempre no quarto lugar na prova feminina de skiff.

No remo desde os 14 anos, Twigg tinha dedicado mais de 15 a uma modalidade que estava a ser pouco simpática para ela. E não apenas em Jogos Olímpicos: «Odiei a primeira semana quando comecei. O meu pai encorajou-me a continuar porque era treinador. Se não tivesse sido por ele, talvez tivesse desistido depois do segundo dia. É um desporto que demora a entranhar-se».

Quando se entranhou, não houve volta a dar, mas a ausência de resultados levou Emma Twigg a tomar uma decisão drástica após o Rio de Janeiro: a despedida. Um ano depois, em 2017, estava a trabalhar no Comité Olímpico Internacional, em Lausanne (Suíça), mas no início de 2019 já estava de regresso.

«O tempo que estive afastada da modalidade fez-me ganhar uma nova perspetiva e entender que é um verdadeiro privilégio estar na elite do remo a competir contra as melhores. Quero aproveitar enquanto posso na esperança de poder inspirar quem vier a seguir», afirmou.

Na final de Tóquio, todas vieram a seguir. Emma Twigg cruzou a meta na primeira posição e a nova perspetiva que adquiriu foi qualquer coisa de especial. «Acho que vou demorar a assimilar o que aconteceu», disse, mostrando satisfação com o pormenor de os Jogos terem sido adiados por um ano. Não só permitiu que tivesse mais um ano de preparação como teve a possibilidade de partilhar a glória com o treinador. «Se tivesse sido há um ano, provavelmente ele não estaria aqui por causa de um acidente de viação. Acho que foi o destino. É uma sensação incrível», afirmou.

29 de Julho, 2021

Sunisa Lee. A nova rainha da ginástica

Rui Pedro Silva

Sunisa Lee

A prova feminina do all-around da ginástica artística nos Jogos Olímpicos parece um jogo de cartas viciado. É baralhar, voltar a dar e… sair uma atleta dos Estados Unidos. Pelo menos desde 2004, ano em que Carly Petterson derrotou a russa Svetlana Khorkina. Desde então, o ouro foi entregue a Nastia Liukin, Gabby Douglas, Simone Biles e, agora, Sunisa Lee.

Cada atleta tem a sua história especial. Simone Biles, por exemplo, antes de ser uma vedeta extraordinária da modalidade, teve uma infância muito delicada. A mãe era uma toxicodependente alcoólica e Simone foi adotada pelo avô aos três anos. E Gabby Douglas foi obrigada a superar inúmeros comentários racistas quando dava os primeiros passos: «Estava sempre a ouvir piadas racistas e não falavam comigo. Foi muito difícil. Às vezes perguntavam-me se não era a escrava delas. Chegava a casa e chorava compulsivamente».

Sunisa Lee, 18 anos, é a quinta norte-americana a ganhar a prova consecutivamente e também tem um passado complicado. Uma vida que a fez tremer, pensar em desistir, interromper tudo o que estava a fazer para simplesmente ter tempo para agarrar um pedaço de ar que pudesse respirar e ganhar outro conforto.

A possibilidade de o futuro ser melhor foi a única coisa que a fez avançar. Como acontece com todos nós, a cada momento em que se sente o soco no estômago. Continuar e esperar pelo melhor é o único caminho e foi esse rumo que Sunisa Lee seguiu, mesmo quando a vida parecia atirar-lhe bolas curvas de forma consecutiva.

Em Tóquio, chegou a recompensa. Numa semana que está a ser dominada pela atenção mediática dada a Simone Biles, Sunisa Lee mostrou ser uma herdeira digna. Depois de ter contribuído para a medalha de prata na prova por equipas, teve uma prestação brilhante no all-around e subiu ao lugar mais alto do pódio.

Ali, com a sensação de dever cumprido, pôde finalmente parar para pensar no pesadelo que foram os últimos meses e anos. Não pelos sacrifícios (normais mas ao mesmo tempo sobrehumanos) associados à ginástica artística, não pela polémica que tem rodeado a federação norte-americana nos últimos anos, mas pela sua vida pessoal.

Se 2021 está a ser um ano de medalhas olímpicas, 2019 e 2020 foram anos para nunca mais repetir. Tudo começou em agosto de 2019, quando o pai caiu de uma escada e ficou paralisado do peito para baixo. No mesmo mês, Sunisa competiu nos campeonatos norte-americanos e garantiu a medalha de ouro nas paralelas assimétricas. E isto com uma pequena fratura na tíbia. «Estive a pensar no meu pai o tempo inteiro. Queria ganhar esta prova por ele porque sabia que ficaria muito orgulhoso», disse na altura.

Se o pai não perdeu a capacidade de a ver brilhar nos mais altos palcos, o mesmo não se pode dizer dos tios. No ano passado, em plena pandemia, tanto um tio como uma tia morreram de Covid-19, contribuindo para uma maturação à força de Sunisa, apenas uma adolescente de 17 anos na altura.

«Foram acontecimentos que me deixaram mais forte mentalmente. Combati os pensamentos negativos e toda a tristeza e concentrei-me no que queria. Agora sinto que estou mais forte por causa disso. Sinto não, estou mesmo. Estou mais forte por causa disto», disse há um ano.

Quando subiu ao lugar mais alto do pódio para receber a medalha de ouro, Sunisa Lee não estava sozinha. Enquanto o hino soava, sabia que levava consigo os seus maus momentos, os momentos que a fizeram hesitar, os momentos que a atiraram contra uma parede e que a fizeram perder a companhia ativa do pai e as conversas com o tio e a tia. Sunisa Lee venceu. O «amanhã» chegou não para apagar ou compensar o passado, mas para demonstrar que é possível continuar, mesmo num caminho cheio de buracos, físicos e metafóricos.

Sunisa Lee não é uma nova princesa da Disney, com uma história de conto de fadas. É a princesa da ginástica artística, com sofrimento, tristeza, muitos sacrifícios e uma medalha de ouro. A recompensa possível.

29 de Julho, 2021

Alessandra Perilli. A medalha histórica de San Marino

Rui Pedro Silva

Alessandra Perilli

San Marino é um país com pouco mais de 30 mil pessoas e está em festa absoluta depois de Alessandra Perilli ter conquistado a medalha de bronze na prova de fosso olímpico nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Qualquer país pequeno com pouca tradição costuma festejar estes momentos, mas esta celebração não tem comparação. Literalmente. San Marino nunca tinha vencido uma medalha olímpica.

Alessandra Perilli fez história de inúmeras maneiras. Não é apenas a primeira medalhada na história de San Marino como deu ao seu país o título de mais pequeno território do mundo a alcançar um pódio nos Jogos Olímpicos, roubando o estatuto às Bermudas, que este ano até já venceu a sua primeira medalha de ouro de sempre (e a segunda na história).

Não é preciso improvisar muito para dizer que San Marino não tem uma grande tradição desportiva. No que aos Jogos Olímpicos diz respeito, o país estreou-se em Roma, em 1960, e desde então teve apenas 77 atletas com esse estatuto até chegar a Tóquio.

A lista não deixa grande margem para dúvidas: há modalidades que são apenas representadas marginalmente, como o judo com quatro, a vela com três, o tiro com arco, o ténis e o halterofilismo com dois e a ginástica e a luta com um; há modalidades que têm um pouco mais tradição, como o atletismo com 12, a natação com 11 e o ciclismo com 10; e depois há uma claramente destacada de todas as outras – o tiro, com 29.

Sim, os sanmarinenses são tão dedicados que esta é a única modalidade que teve representantes em todas as edições desde 1960. Em 1980 e 1984 chegaram mesmo a ter dez atletas diferentes em prova. Não espanta, portanto, que a primeira medalha tenha chegado daí.

Com cinco atletas em Tóquio, o tiro é a única modalidade com mais de um: um homem, Gian Marco Berti, e uma mulher, Alessandra Perilli. Se o primeiro chegou a estar nos lugares da frente nas primeiras rondas de qualificação mas teve uma última série de 25 para esquecer, a segunda não deixou escapar um feito histórico e foi precisa como nunca a premir o gatilho.

Alessandra Perilli terminou as cinco rondas de qualificação com apenas três tiros falhados (122 em 125) e ocupava a segunda posição. Depois, na ronda decisiva, esteve uns furos abaixo e falhou 11 em 40 oportunidades, mas mesmo assim foi suficiente para subir ao pódio atrás da norte-americana Kayle Browning (prata) e da eslovaca Zuzana Rehak Sfefeceova (ouro).

Com 33 anos, e ainda com aspirações a um pódio na prova mista com Gian Marco Berti, Perilli não vai esquecer este momento. Depois de falhar o pódio por muito pouco em Londres (quarta classificada) e de um modesto 16.º posto no Rio de Janeiro, a sanmarinense alcançou finalmente um objetivo que milhares (33, vá) de pessoas desejavam.

A atleta que nasceu em Itália e que se tornou cidadã de San Marino com 18 anos, via nacionalidade da mãe, tornou-se uma heroína nacional e já sabe que o futuro não voltará a ser igual. No tiro desde 2001, pelas mãos do pai, quando ainda só tinha 13 anos, evoluiu ao ponto de subir a um dos três lugares mais desejados nos Jogos Olímpicos. Finalmente, diga-se.

29 de Julho, 2021

Jessica Fox. Inspiração familiar rumo à história

Rui Pedro Silva

Jessica Fox

Não é fácil encontrar o caminho certo quando a pressão de cima é grande. Por mais que se queira trilhar um rumo próprio, seja no desporto ou noutra área qualquer, é difícil fugir muito das comparações quando há verdadeiras lendas desportivas na família. Se com um já é complicado, com dois torna-se uma tarefa hercúlea. Mas Jessica Fox conseguiu e fez história à sua maneira.

Jessica Fox conquistou duas medalhas para a Austrália em Tóquio e tornou-se a primeira atleta da história a subir ao pódio nas provas de canoa e caiaque da canoagem slalom. Sim, é verdade que foi a primeira vez que a vertente de canoa teve espaço no calendário olímpico feminino mas também não houve nenhum homem a alcançá-lo no passado.

Competir pelo país dos cangurus pode ter sido o primeiro salto que Jessica Fox deu para se distanciar dos pais. Depois de nascer em Marselha em 1994, viajou com a família para os antípodas com apenas quatro anos depois de o pai ter sido convidado para treinar a seleção de canoagem slalom.

Sim, o pai era uma figura da modalidade. Richard Fox, britânico, esteve nos Jogos Olímpicos de Barcelona sem grande resultado de relevo, mas acabou a carreira com cinco títulos mundiais. A mãe, Myriam, Francesa, venceu a medalha de bronze em K1 na canoagem slalom em Atlanta-1996.

Está visto onde é que isto ia dar, certo? Nem por isso. Jessica Fox não queria seguir o mesmo caminho dos pais e preferiu a ginástica. Só quando partiu um braço, por causa das acrobacias, é que deu uma real oportunidade à modalidade… e apenas porque foi aconselhada pelo fisioterapeuta para complementar a reabilitação. O resto, sim, é história.

«Ter pais que foram ambos atletas olímpicos e conhecendo alguns atletas que estiveram nos Jogos em Sidney, Atenas e Pequim foi muito inspirador. Ficava colada à televisão e a sonhar com a hipótese de um dia ser eu. Quando comecei a pagaiar, em 2005, foi apenas como parte da minha reabilitação, mas evoluí muito rapidamente e quis ver até onde conseguiria chegar na modalidade», recordou.

Spoiler: chegou à medalha de ouro. A única campeã olímpica da família. E ainda lhe juntou uma medalha de bronze, exatamente o mesmo que a minha mãe tinha feito nos Estados Unidos, em 1996. Mas isto foi só em Tóquio. Antes, já tinha alcançado mais duas medalhas: um bronze no Rio de Janeiro e uma prata em Londres, com direito a uma vingança muito especial.

Quando a mãe foi medalha de bronze em Atlanta, perdeu o título para uma checa chamada Stepanka Hilgertova. Na altura, Myriam tinha 34 anos e Stepanka 28. A checa revalidou o título mundial em Sidney e ainda competiu em Londres-2012, precisamente na edição de estreia de Jessica.

Aí, a vingança serviu-se fria. A australiana foi segunda e atirou Hilgertova para fora do pódio (4.º lugar). Poderia ter sido a despedida perfeita para a veterana de 44 anos mas havia uma desforra familiar com 16 anos para se cumprir.

«Ela [Myriam] tem sido um grande exemplo para mim, mas também para muitas mulheres e treinadoras. Não há muitas treinadoras nesta modalidade e ela foi uma das primeiras. Nos anos 90 não era tão comum ser atleta de alta competição, ser mãe e regressar ao nível mais alto para conquistar uma medalha. O que ela fez inspirou muita gente, eu incluída», confessou Jessica.

A inspiração fez a diferença em Tóquio e contribuiu para que escrevesse um capítulo histórica na modalidade. «A medalha de ouro é o grande sonho para o Japão. Se tiver a oportunidade para competir nas duas categorias, será incrível», disse em 2018. E foi mesmo incrível: com o título olímpico na canoa e um bronze no caiaque. Nunca houve ninguém como ela: Jessica, a raposa dos rápidos.

28 de Julho, 2021

Shah Hussain Shah. Ir para o judo para não levar na boca no boxe

Rui Pedro Silva

Shah Hussain Shah

Há países asiáticos que têm o judo como o grande denominador comum. Basta olhar para o medalheiro histórico nos Jogos Olímpicos e perceber a quantidade de pódios que Japão (84), Coreia do Sul (43), China (22) e Mongólia (11) têm.

Mesmo mais em baixo na lista, encontramos outras países como Coreia do Norte, Uzbequistão, Quirguistão ou Tajiquistão. No meio de tantos «ão», há um que não aparece – o Paquistão. O judo está longe de ser uma das modalidades-rainha do país e as dez medalhas já alcançadas surgem em apenas três modalidades: hóquei em campo (8), luta (1) e boxe (1).

Esta história pode ser de um judoca mas começa precisamente na medalha de bronze alcançada no boxe em 1988, a última individual alcançada por um paquistanês. Falamos de Hussain Shah, o pai de Shah Hussain Shah.

Como é que o filho foi parar ao judo com uma lenda olímpica em casa noutra modalidade? Com a influência da mãe. «A minha mãe não queria que me tornasse pugilista depois de ver o meu pai a ser esmurrado 500 vezes por dia sempre que ia treinar», contou Shah Hussain.

Shah Hussain recorda que cresceu a ouvir toda a gente a falar como o pai era uma autêntica lenda, não esconde o orgulho de ser filho do último medalhista individual na história olímpica do Paquistão e até confessa que se sentiu motivado e encorajado a tornar-se desportista. Desde que não fosse, tal como a mãe exigia, no boxe.

A opção recaiu no judo e não poderia ter sido mais natural. A família vivia no Japão e Shah Hussain começou a praticar com quatro anos, em 1997. «O judo é o desporto nacional e concentra-se na autodefesa. Por isso não é apenas um desporto mas também um aspeto da vida quotidiana», referiu.

Talvez seja por isso que tenha sido tão fácil convencer a mãe. Depois de ver o marido a levar pancada durante anos a fio, agora teria o filho a aprender a defender-se, mesmo que fosse numa modalidade de contacto.

O contexto de Hussain promoveu um facto histórico. Se no Paquistão o judo está longe de ser uma modalidade muito praticada, o seu crescimento num cenário muito mais propício contribuiu para que se tornasse o primeiro judoca paquistanês no palco olímpico. Aconteceu em 2016, no Rio de Janeiro, na categoria de -100 quilos, na qual não foi além de um 17.º lugar.

Em Tóquio, cinco anos depois, voltará a ser muito difícil chegar longe. O currículo de Shah Hussain é uma coleção de derrotas antes de atingir o top-16, seja em Jogos Olímpicos ou em Mundiais. Para a história ficará a oportunidade de combater na casa que o acolheu com dois anos e permitiu que encontrasse um desporto que o deixasse feliz, dentro da flexibilidade permitida pela mãe.

28 de Julho, 2021

Annemiek Van Vleuten. A redenção da celebração precoce

Rui Pedro Silva

Annemiek Van Vleuten

Não foi preciso acompanhar os Jogos Olímpicos, gostar de desporto ou seguir a prova de estrada feminina de ciclismo para cruzar os olhos com o que se passou. A rábula não é inédita na modalidade mas talvez nunca tenha acontecido num palco tão grande como uma final olímpica: Annemiek Van Vleuten cruzou a meta sem saber que já havia uma campeã olímpica e festejou como se tivesse vencido o ouro quando na verdade não foi além da prata.

Entre esse dia e do contrarrelógio individual, Van Vleuten teve de superar tudo o que se dizia e escrevia sobre ela e, acima de tudo, teve de se mentalizar que o passado é imutável e que só se podia preocupar em tentar mudar o futuro. Que é como quem diz: ser finalmente campeã olímpica.

Annemiek Van Vleuten tem 38 anos. Estreou-se nos Jogos Olímpicos em 2012 com um 14.º lugar na prova de estrada e quatro anos depois, no Rio de Janeiro, não chegou a terminar. Em Mundiais, o currículo é muito mais rico: campeã de estrada em 2019 e de contrarrelógio individual em 2018 e 2017.

O palmarés é invejável mas a neerlandesa tinha uma grande falha: o palco olímpico. Se não tivesse feito a diferença na prova contra o tempo, teria sido recordada como uma das anedotas desta edição. Assim, será mais uma história de redenção. De quem festejou antes do tempo mas que acabou por ter mesmo motivos para celebrar.

A ciclista percorreu os 22,1 quilómetros com um tempo pouco superior a 30 minutos e 13 segundos e teve de esperar enquanto as principais rivais chegavam para confirmar a medalha de ouro. Uma a uma, cruzavam a meta com pior tempo. E, progressivamente, a expressão de Van Vleuten ia ficando cada vez mais iluminada, apesar da cautela. Annemiek tinha aprendido com a lição e não queria festejar demasiado cedo.

A vitória desta vez foi mesmo inevitável. A medalha de prata, a suíça Marlen Reusser, ficou a mais de 56 segundos e Anna Van der Bregger, a neerlandesa que foi a última a cruzar a meta, perdeu mais de um minuto. Por esta altura já Van Vleuten festejava sem o peso em cima dos ombros.

Sim, ninguém esquecerá a forma como festejou prematuramente uns dias antes mas para a história ficará a estatística: uma medalha de prata e uma medalha de ouro em duas corridas. Aos 38 anos. Depois de uma carreira que começou em 2005 após uma lesão enquanto jogava futebol, Van Vleuten encontrou algo que a realizava. E se toda a gente aprendeu que às vezes é cedo demais para festejar, nunca é demasiado tarde para ganhar.

Van Vleuten desligou-se das redes sociais nos dias entre as duas provas e concentrou-se nos pontos positivos: «Percebi na prova de estrada que estava numa grande forma. Enquanto toda a gente estava a falar de tudo o resto, ninguém pareceu aperceber-se disso. Conseguiu ignorar toda a energia negativa e alcancei este bónus: é muito, muito especial ser campeã olímpica».

27 de Julho, 2021

Flora Duffy. A persistência rumo a um feito histórico para as Bermudas

Rui Pedro Silva

Flora Duffy

Quando se fala em Bermudas, há duas ideias que devem saltar imediatamente na cabeça de toda a gente: calções e triângulo. Se no caso da primeira, as delegações olímpicas fazem questão de cumprir a tradição e aparecer sempre de bermudas nas cerimónias de abertura – de Jogos de Verão ou de Inverno – no caso da segunda as dificuldades são maiores.

Não, não desaparecem aviões nesta história, apenas atletas. As Bermudas estão nos Jogos Olímpicos desde 1936 e desde então só não competiram em Moscovo-1980 por culpa do boicote liderado pelos Estados Unidos. O mínimo de atletas que tinham tido foi três em Melbourne, em 1956, e em Barcelona, em 1992, atingiram a maior delegação de sempre, com vinte.

Agora, em Tóquio, tiveram apenas dois. Ou seja, não conseguiam formar um triângulo nem que quisessem. No remo, Dara Alizadeh até se pode gabar de já ter vencido duas edições da famosa regata entre Cambridge e Oxford, mas no Japão não teve grande sucesso nas eliminatórias. No triatlo, Flora Duffy surgiu como um grande nome a fazer história.

O passado das Bermudas não deixa grande margem para dúvidas. Até agora, tinha havido apenas uma medalha em Jogos Olímpicos. Aconteceu no boxe, na categoria de pesos pesados, quando Clarence Hill conquistou a medalha de bronze em Montreal-1976. Desde então, nada, mesmo nada, para amostra.

Foi preciso esperar muito. E depois um pouco mais, com o adiamento dos Jogos Olímpicos. E finalmente um pouco mais ainda, uma vez que o arranque da prova de triatlo feminino foi adiado por culpa do mau tempo. Quando houve autorização para arrancar, Flora Duffy pareceu determinada. A espera tinha de acabar.

Flora era uma das candidatas ao triunfo e esteve sempre no topo da classificação. Terminou o segmento de natação na sexta posição, o de ciclismo na segunda e atacou a liderança assim que a corrida começou. Para nunca mais a perder.

Flora Duffy correu e dominou rumo a uma das medalhas de ouro mais saborosas desta edição dos Jogos Olímpicos. Não apenas por ser conquistada pelo país mais pequeno do mundo a chegar ao lugar mais alto do pódio mas também porque reflete o final de um longo caminho de persistência de uma atleta com 33 anos.

A estreia olímpica deu-se em 2008, no dia em que Vanessa Fernandes foi medalha de prata, e terminou com uma desistência. Desde então, Flora Duffy foi sendo sempre mais forte: 45.ª em Londres, oitava no Rio de Janeiro e medalha de ouro em Tóquio. E isto apesar de a pandemia lhe ter trocado as voltas.

«2020 devia ter sido o meu ano. Nunca tinha estado tão bem preparada para uns Jogos Olímpicos, nunca me tinha sentido tão apoiada e tão confiante. E depois tudo mudou. Tinha imaginado um ano de 2021 completamente diferente, a correr, sim, mas de forma mais relaxada», confessou.

Flora Duffy não estava preparada para voltar a desistir do seu sonho. Em 2008, depois da má experiência em Pequim, que culminou uma fase marcada por lesões, depressão, cansaço e distúrbios alimentares, suspendeu a carreira, começou a trabalhar nas Bermudas e decidiu que era mais importante terminar a sua formação académica. Mas a paixão pelo triatlo falou mais forte e regressou mesmo ao desporto.

«Vencer uma medalha nos Jogos Olímpicos sempre foi o meu sonho, desde que era uma criança. Por isso, mesmo nos meus dias mais sombrios, sempre pensei que não podia desistir». O tempo deu-lhe razão. Pode ser difícil, pode ser inesperado, mas no fim valeu muito a pena. Para ela e para as Bermudas, uma ilha em festa.

27 de Julho, 2021

Masomah Ali Zada. A afegã que era apedrejada sempre que pedalava

Rui Pedro Silva

Masomah Ali Zada

Já pararam para pensar, hoje, no privilégio que têm? Vamos esperar um momento antes de entrar num mundo ainda mais difícil de compreender, um mundo que fez Masomah Ali Zada sentir que não era digna sequer de algo tão simples como andar de bicicleta.

A história de uma das atletas, que compete com estatuto de refugiada, com estreia prevista esta madrugada na prova de contrarrelógio feminino começa com um pedaço de iô-iô simbólico. Nasceu no Afeganistão em 1996, no ano em que os pais fugiram para o Irão devido à instabilidade política do seu país-natal. Durante os primeiros anos de vida, aprendeu a andar de bicicleta, interessou-se pelo mundo, sentiu que podia ter um propósito maior. Depois, com o regresso ao Afeganistão, tudo mudou.

«Não podia andar de bicicleta como no Irão. Era proibido. Nunca vi uma rapariga a andar de bicicleta, muito menos com roupa desportiva. Naquela altura, não havia muitas raparigas que andassem de bicicleta e as pessoas eram violentas quando nos viam», recordou Masomah referindo-se também à irmã Zahra.

«As pessoas achavam que andarmos de bicicleta era contra a nossa cultura, contra a nossa religião, mas isso não é verdade. Sentiam apenas a estranheza de ver uma mulher em cima da bicicleta pela primeira vez», continuou. Mas não era apenas estranheza que sentiam. As irmãs eram insultadas e apedrejadas, às vezes havia até quem lhes atirasse fruta podre.

O ambiente era tudo menos propício para o desporto mas em 2016, com 20 anos, tudo começou a mudar quando participaram numa prova em França e foram alvo de um documentário intitulado As Pequenas Princesas de Kabul. Um advogado interessou-se pelas suas histórias e ofereceu-lhes ajuda para garantir asilo em França.

A mudança deu-se em 2017. Masomah e a irmã Zahra mudaram-se para Lille com os pais e puderam começar a andar de bicicleta à vontade. «Nunca desisti do ciclismo», garante a atleta olímpica. «Pelo contrário, quero encorajar as raparigas a andar de bicicleta e quero normalizar o ciclismo feminino no Afeganistão», acrescentou.

«Numa bicicleta tens a sensação de liberdade. Ninguém te diz que tens de fazer isto ou aquilo só por seres uma mulher. Nunca encontrei outro desporto tão adequado para mim», garantiu.

Masomah Ali Zada vai competir esta madrugada e destacar-se-á de todas as outras atletas, uma vez que decidiu pedalar sempre de véu. «As pessoas costumam fazer comentários sobre isso, perguntam-me se não fica demasiado calor. Sinto que nunca devemos deixar de educar as pessoas. Vivo sozinha em Lille agora e o meu pai sempre me disse que seria eu a decidir se deveria usar ou não o véu, e isso é algo que as pessoas têm dificuldade em perceber», lamenta.

26 de Julho, 2021

Saeid Mollaei. O homem que só se deixou perder uma vez

Rui Pedro Silva

Saeid Mollaei

Esta história de Saeid Mollaei começa e acaba em Tóquio com dois anos de intervalo. É uma história de um atleta que pôs o desportivismo e a vontade de vencer acima de tudo o resto, incluindo pressões e ameaças governamentais. É a história de alguém com as prioridades certas e que se recusou a servir de peão num conflito com Israel.

Vamos por partes. Viajamos até 2019 para os Mundiais de Judo disputados em Tóquio. Saeid Mollaei foi avançando ronda atrás de ronda e atingiu as meias-finais com boas esperanças de revalidar o título mundial na categoria de -81 quilos alcançado um ano antes em Baku, no Azerbaijão.

Mollaei era favorito no duelo contra o belga Matthias Casse mas a pressão governamental entrou em cena. O ministro do Desporto e os presidentes da federação e do Comité Olímpico exigiram que Mollaei perdesse para garantir que não houvesse um duelo na final contra Sagi Muki. Porquê? Porque era israelita.

Não foi a primeira vez que algo do género aconteceu em nome de um conflito insanável e também não será a última (já aconteceu precisamente nestes Jogos Olímpicos). Mas Saied Mollaei não se conformou e decidiu agir. Logo no mesmo mês fugiu para a Alemanha e foi-lhe concedido um visto de dois anos.

A Federação Internacional de Judo também interveio e suspendeu o Irão das competições tendo em conta a violação grosseira dos estatutos do organismo, mantendo a sanção até que o Irão proporcionasse provas e garantias de que aceita os legítimos interesses, princípios e objetivos da federação. Sem esquecer, claro está, que aceita que os seus atletas compitam contra israelitas.

A carreira de Mollaei continuou - apesar das ameaças constantes oriundas do Irão - e a Alemanha não passou de um ponto intermédio. Da Europa, o judoca foi para a Mongólia, depois de o presidente do país lhe ter oferecido a nacionalidade mongol. Mollaei estava preparado para competir como refugiado mas agora está nos Jogos Olímpicos com a bandeira de um país com muita tradição na modalidade.

«Posso competir onde quiser. O meu objetivo é vencer os Jogos Olímpicos. Pode ser muito difícil, mas o meu sonho é este. Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para dar à minha família a alegria de uma medalha olímpica», disse. O sabor será o mesmo, mesmo que tenha de soar o hino da Mongólia.

26 de Julho, 2021

Ariarne Titmus. A mulher que interrompeu o legado de Ledecky

Rui Pedro Silva

Ariarne Titmus e Katie Ledecky após a prova

Katie Ledecky é uma potência da natação mundial. Durante os últimos anos, a sua hegemonia foi esmagadora. Quando saltava para a pista, já não era uma questão de ganhar, mas sim de por quanto o faria. Recordista mundial dos 400, 800 e 1500 metros livres, Ledecky teve uma experiência inédita em Jogos Olímpicos por culpa de uma nova sensação: Ariarne Titmus.

O currículo de Ledecky em Jogos Olímpicos é esmagador. Começou por vencer a prova de estreia em Londres-2012, nos 800 metros livres, e quatro anos depois, no Rio de Janeiro, fez o mesmo nos 200, nos 400 e nos 800 metros livres. Pelo meio, ainda foi medalha de ouro na estafeta dos 4x200 metros livres e prata nos 4x100 metros livres.

Por outras palavras, Katie Ledecky nunca tinha perdido uma prova individual nos Jogos Olímpicos e havia até quem equacionasse se o domínio da norte-americana neste estilo não era ainda mais consolidado do que qualquer um dos que Michael Phelps teve na sua carreira. Sim, o norte-americano pode ser o nadador mais completo da história mundial, mas Ledecky é (ou era) uma especialista longe, muito longe de toda a concorrência. Até chegar Ariarne Titmus.

A final dos 400 metros livres marcou o final de uma era. Katie Ledecky parecia estar a fazer uma prova à sua imagem: chegou aos 50 metros na terceira posição e a partir daí foi sempre primeira até à entrada para os últimos 100. Só que Ariarne Titmus nunca descolou e foi uma verdadeira sombra.

Titmus foi segunda praticamente toda a corrida mas percebeu-se que estava a encarnar apenas mais um dos múltiplos animais venenosos que existem na Austrália. Aproximou-se da presa, esperou o momento certo para atacar, lançou o seu veneno e ganhou a medalha de ouro, quebrando a hegemonia de Ledecky.

Ariarne Titmus tem 20 anos e a nasceu em setembro de 2000, em vésperas da edição que ficou marcada pelo domínio de um nadador australiano (Ian Thorpe). A rivalidade com Ledecky foi crescendo nos derradeiros anos e esta não foi a primeira vez que a derrotou, embora nunca tivesse acontecido num palco como este, onde todas fazem tudo para ganhar e planeiam a forma ao centímetro para não desperdiçarem a oportunidade.

Numa situação normal, Titmus sentia que não teria oportunidade de derrotar Ledecky mas nunca viraria a cara à luta. Em 2019, depois de ter infligido a primeira derrota à norte-americana numa grande prova desde 2013, Titmus anteviu o que poderia acontecer nos Jogos Olímpicos, com muita cautela.

«Se ela estiver ao seu melhor nível, não consigo derrotá-la, mesmo no melhor das minhas capacidades. Não sou boa o suficiente para derrotá-la no seu melhor. Mas vamos partir ambas do zero, será uma batalha dura e vai ser muito interessante. Nunca nado com medo contra ela, preocupo-me mais com o que serei capaz de fazer e sei que conseguirei ser boa o suficiente para vencer», disse.

Não se sabe como seria se a final tivesse sido disputada em 2020. A verdade é que um ano depois, o melhor de Titmus foi suficiente para derrotar uma Ledecky que até não esteve muito abaixo do que fez em 2016 para vencer a final com mais de cinco segundos de vantagem sobre a concorrência.

A aura de Ledecky sofreu um duro golpe porque o desporto é mesmo assim. E a natação não foge à regra. Os grandes dominadores têm prazo de validade e a Austrália e os Estados Unidos estão constantemente a formar novos talentos capazes de destronar quem lá estava. É a beleza da competição.

26 de Julho, 2021

Hidilyn Díaz. A primeira ninguém vai esquecer

Rui Pedro Silva

Hidilyn Díaz

Carlos Lopes conseguiu a primeira medalha de ouro olímpica para Portugal em 1984. Em Los Angeles, correu em direção ao estádio olímpico com o apoio em uníssono de um país que assistiu de madrugada, com ou sem olheiras, a um momento histórico que ainda hoje é recordado. Porque a primeira nunca ninguém esquece.

Baptista Bastos gostava de perguntar com insistência onde cada pessoa estava no 25 de Abril de 1974. No desporto, é possível que se possa fazer o mesmo com o 12 de agosto de 1984. Gente que passou a noite em clara, crianças que acordaram para ver os quilómetros finais, memórias de felicidade ao acordar, há de tudo. Foi a primeira. E não voltará a haver outra igual.

Os anos passaram e a cada nova edição há países que entram para o lote dos que podem dizer, com orgulho, que têm pelo menos um campeão olímpico. No Rio de Janeiro, por exemplo, logo no início, Majlinda Kelmendi fez história para o Kosovo no judo. Mas o Kosovo fazia a sua participação de estreia.

Com as Filipinas foi preciso sofrer. Muito. Até hoje, dia que nunca mais será esquecido entre o povo e os fãs de halterofilismo. Os filipinos estão nos Jogos Olímpicos desde 1896. Na primeira edição, em Atenas, fizeram parte da comitiva espanhola e entre 1900 e 1920 competiram pelos Estados Unidos. Só em 1924, em Paris, se estrearam oficialmente enquanto país, com David Nepomuceno a correr, sem grande sucesso, os 100 e os 200 metros.

Desde então, muitos tentaram e nenhum conseguiu fazer soar o hino filipino. A primeira medalha surgiu logo em 1924, na natação, por Teófilo Yldefonso, mas foi preciso esperar praticamente 100 anos até ao ouro. Houve mais três medalhas de prata e seis de bronze, mas o ouro parecia uma utopia. Até aparecer Hidilyn Díaz.

E quem é Hidilyn Díaz, além de campeã olímpica na categoria dos -57 quilos do halterofilismo com um recorde olímpico quebrado? Além de heroína nacional, entenda-se. Tem 30 anos, faz parte da Força Aérea, estou Ciências da Computação e vem de uma família com paixão pelo halterofilismo – a prima também competiu e o primo foi treinador.

A paixão começou com onze anos. «Os meus primos eram halterofilistas e via-os a levantar pesos. Na verdade não eram bem halteres, eram bocados de madeira. Olhei para eles e achei que seria divertido se fizesse o mesmo. E foi assim que comecei», contou.

Praticamente 30 anos depois, atingiu o ponto mais alto na carreira. Depois de se estrear em Pequim, sem grande sucesso (10.ª) e sem grande conhecimento do que eram os Jogos Olímpicos, e de não ter registado resultado na edição de Londres em 2012, Hidilyn conseguiu a medalha de prata na categoria de -53 quilos no Rio de Janeiro.

O Japão foi pensado desde o início para assinalar a despedida da carreira olímpica. «Tóquio-2020 mais um será a minha quarta edição e poderá, muito possivelmente, ser a minha última. Por isso, quero dar o meu melhor nos meus últimos Jogos com o apoio de todas as pessoas que têm estado nesta viagem comigo», disse em março de 2021. Bela profecia, certo?

A luta pelas medalhas não era o mais importante. «Quero que o meu legado reflita que fui alguém que nunca deixou de perseguir os seus objetivos. Ser uma atleta não dura para sempre, não se ganha sempre, não se perde sempre. Em desporto, não há apenas milagres. Na maior parte do tempo, é preciso trabalhar arduamente para alcançar algo», afirmou.

O legado está cristalizado em ouro. A atleta que passou grande parte dos últimos dois anos sem ver a família, num misto de preparação olímpica com efeitos da pandemia, atingiu um estatuto de intocável. É o primeiro ouro na história das Filipinas. É a única atleta com um ouro e uma prata. É a única filipina com medalhas no século XXI. É especial. E nunca mais será esquecida.

26 de Julho, 2021

Faith Ogallo. Deixar tudo à procura de um sonho olímpico

Rui Pedro Silva

Faith Ogallo

Tentou o andebol, o basquetebol e estava determinada a procurar a sorte no râguebi mas Faith Ogallo só conseguiu mudar verdadeiramente a vida desportiva quando um treinador lançou a sugestão de tentar o taekwondo. Por causa da sua estrutura física.

A queniana de Nairobi era como uma carteira que andava de porta em porta à procura do prémio mais apetecido, numa mistura de CTT com o concurso televisivo 1, 2, 3 da RTP durante a década de 90. Bateu, bateu e nada aparecia. Até que de repente, com um desporto individual de combate, abriu caminho para concretizar o sonho olímpico.

Faith Ogallo tem 26 anos e começou a praticar taekwondo em 2018. Não se pode dizer que seja um amor de menina, mas foi claramente à primeira vista. Um ano depois, já estava a adiar exames universitários para disputar os Jogos Africanos em Marrocos. E não há dúvida de que foi por uma boa causa – conquistou a medalha de prata na sua estreia internacional, a competir na categoria de +73 quilos.

Nos Jogos Olímpicos de Tóquio vai competir na categoria de +67 quilos. Será a segunda queniana no taekwondo e tem-se esforçado muito para garantir que não dá um único passo em falso. Numa modalidade em que o pé de apoio é tão importante, Ogallo teve fé e entregou-se de corpo e alma ao sonho de chegar ao palco mais importante do desporto mundial.

Tóquio-2020 tornou-se uma obsessão e não é de espantar que a partir de março deste ano se tenha praticamente enclausurado numa bolha anti-Covid para evitar qualquer tipo de percalço. Um centro de treinos queniano tornou-se a sua segunda casa e ninguém entrava ou saía sem um teste negativo.

Dia após dia, semana após semana, mês após mês, Faith Ogallo foi vendo os Jogos Olímpicos de Tóquio cada vez mais perto e agora, a 27 de julho, vai conseguir finalmente a sua estreia. A estudante de ação social, que desenvolveu uma forte consciência ambiental e que se tem mostrado muito ativa para que o Quénia possa cumprir o Acordo de Paris e alcançar o objetivo de redução de emissões de carbono até 2030, está preparada.

Foi para isto que trabalhou a sua vida inteira. Ou desde 2018, vá. Nunca é tarde para ter um sonho e não há nenhum que seja alcançado demasiado rápido.

26 de Julho, 2021

Abdullah Al-Rashidi. Voltar a mostrar ao filho como se faz

Rui Pedro Silva

Abdullah Al-Rashidi

A vida de Abdullah Al-Rashidi podia ser levada ao grande ecrã pelos mesmos criadores da vida de Benjamin Button. Não por estar cada vez mais jovem mas sim por parecer seguir uma evolução contrária ao mais habitual em Jogos Olímpicos.

Se o desporto – e não apenas o olímpico – está cheio de histórias em que os filhos seguem as pisadas dos pais, neste caso do atirador kuwaitiano, a ordem natural das coisas foi precisamente a oposta, numa história que começa em 2012.

Nos Jogos Olímpicos de Londres, no tiro, na disciplina de armas de caça, Talal Al-Rashidi teve uma exibição muito modesta e terminou na 26.ª posição entre 34 atletas, muito longe das medalhas. E quem é Talal? O filho de Abdullah.

A paixão pelo tiro faz parte da família. Com 12 anos, Abdullah começou a ir com frequência para o deserto com o pai praticar caça. Já adulto, com 25, começou a competir profissionalmente e a estreia nos Jogos Olímpicos deu-se em Atlanta, em 1996, com 32 anos.

Os resultados de Abdullah nunca foram muito bons. Foi 42.º na estreia e desde então somou um 14.º posto, dois nonos lugares e em Londres, a competir na mesma edição do filho, não foi além da 21.ª posição.

Mas acabou por ser a presença do filho que o catapultou para uma nova dimensão e, a partir do Rio de Janeiro, tudo mudou – mas na categoria de skeet. Mesmo impedido de competir pelo Kuwait, Abdullah Al-Rashidi representou a equipa de Atletas Independentes e, equipado com uma camisola do Arsenal comprada pelo filho, conquistou a medalha de bronze.

A alcunha do Arsenal, «gunners», podia ser um bonito simbolismo, mas Abdullah Al-Rashidi desconhecia a coincidência. «Não fazia ideia. Foi uma camisola que o meu filho me ofereceu. Comprou-me para os Jogos Olímpicos e gosto muito dela», disse na altura.

Cinco anos depois, já com as cores do Kuwait, Abdullah Al-Rashidi demonstrou que a experiência pode mesmo ser um posto – sobretudo no tiro – e voltou a conquistar uma medalha de bronze, desta feita sem camisolas de clubes ingleses.

O clique que separa a mediania de um pódio olímpico surge quando menos se espera e para Abdullah esse clique parece ter sido a estreia do filho. Foi preciso Talal competir – sem nenhum sucesso – para somar medalhas consecutivas e mostrar ao seu herdeiro como se faz. Talvez tenha sido o instinto paternal a disparar mais alto.

26 de Julho, 2021

Kimia Alizadeh. A histórica refugiada que arranhou o bronze

Rui Pedro Silva

Kimia Alizadeh

Foi por pouco, muito pouco. Kimia Alizadeh perdeu o combate de atribuição da medalha de bronze para a turca Hatice Kubra Ilgun na categoria de -57 quilos do taekwondo e «desperdiçou» a oportunidade de escrever mais uma história inapagável do desporto mundial.

Kimia não é novata nas lides olímpicas. No Rio de Janeiro, em 2016, a competir pelo Irão, alcançou a medalha de bronze precisamente nesta prova e tornou-se a primeira mulher iraniana de sempre a chegar ao pódio em Jogos Olímpicos. Num país com 70 medalhas (22 de ouro), só Kimia Alizadeh conseguiu quebrar essa barreira.

O momento poderia ter servido para dar uma lufada de ar fresco no desporto do Irão mas acabou por acontecer precisamente o oposto. «O taekwondo mudou a minha vida. Quando conquistei a medalha, fui a primeira de sempre no Irão e, a partir daí, as pessoas sabiam quem eu era… tornou-se difícil».

Kimia Alizadeh tinha 18 anos quando foi bronze no Rio de Janeiro e estava longe de adivinhar o que lhe ia acontecer. Ser crítica do regime aliado ao facto de se ter tornado famosa e perfeitamente reconhecível na rua tornou a situação insustentável e em janeiro de 2020 decidiu abandonar o Irão.

Na altura, numa publicação nas redes sociais, apontou as limitações que as mulheres têm no Irão. «Sou uma entre milhões de mulheres iranianas oprimidas com quem os poderosos têm andado a brincar há anos. Levavam-me onde queriam, tinha de vestir o que me mandavam. Ordenavam-me o que tinha de dizer, e eu repetia. Sempre que achavam necessário, exploravam-me», lamentou, negando-se a continuar a compactuar com um regime de hipocrisia, mentiras e injustiças.

Quando chegou à Alemanha, tudo mudou. «Agora está tudo bem. O mais importante é que já consegui aliar a minha vida pessoal à vida desportiva», disse, mostrando-se aliviada.

Em Tóquio, Kimia Alizadeh esteve a uma vitória de voltar a fazer história. Alcançou o melhor resultado de uma atleta a competir com o estatuto de refugiada e foi por pouco que não garantiu a primeira medalha: uma derrota por 6-8 foi fatal, mas na memória ficará para sempre a coragem de não ser cúmplice e de estar nos livros do desporto e do Irão. Para o bem e para o mal.

26 de Julho, 2021

Romain Cannone. A «Dinamarca de 1992» nos Jogos Olímpicos

Rui Pedro Silva

Romain Cannone

É uma das histórias mais conhecidas do desporto mundial, mesmo para quem não é grande adepto de futebol. Em 1992, a seleção dinamarquesa marcou presença no Euro-1992 para ocupar a vaga deixada em aberto pela exclusão da Jugoslávia e surpreendeu o Velho Continente na Suécia com uma caminhada até ao título.

Agora, 29 anos depois, há um campeão olímpico na esgrima que tem uma aventura com algumas semelhanças. Falamos de Romain Cannone, o francês que subiu ao lugar mais alto do pódio na disciplina de espada após derrotar o húngaro Gergely Siklosi na final.

Não há outra forma de dizer as coisas: na véspera ninguém pensou que a final pudesse ser o lugar de Romain Cannone. A surpresa é grande mas ganha outra dimensão quando se percebe que há não muito tempo havia até quem achasse que o gaulês não deveria ter lugar nos Jogos Olímpicos.

O currículo de Cannone é, à falta de melhor palavra, escasso. Foi 30.º nos Mundiais de 2019 em Budapeste, 34.º nos Europeus do mesmo ano em Dusseldorf e está longe de ser uma potência até na própria esgrima francesa, que disputa com Itália e Hungria o domínio da modalidade.

A qualidade de Cannone era tão discutível que até há um mês nem sequer sabia que ia a Tóquio. A chamada para o Japão só chegou depois de se ter confirmado a suspensão de Daniel Jérent após o controlo antidoping positivo a um diurético relizado em novembro de 2020. E isto já depois de a presença de Jérent ter sido posta em causa após um acidente de automóvel em abril que provocou uma dupla fratura do fémur.

Voltando ao herói do dia, Cannone entrou em Tóquio como número 47 do ranking mundial e com um lado do quadro bastante temível. Mas, um a um, foi derrotando todos os adversários até à surpreendente medalha de ouro.

«Fiquei chocado e genuinamente feliz. Não sabia como celebrar. Senti-me apenas invadido por uma grande alegria e energia. Estava a viver o momento plenamente e com a sensação de ter feito algo bom pela minha equipa», disse após o título.

Não será uma vitória com figuras como Peter Schmeichel e Brian Laudrup ou com histórias com grande peso como a de Kim Vilfort, mas esta «Dinamarca de 1992» de Tóquio não se deverá importar muito. O universo foi conspirando até garantir que Cannone pudesse vencer a medalha de ouro na sua estreia em Jogos Olímpicos.

25 de Julho, 2021

Irmãos Abe. Uma profecia cumprida a combater em casa

Rui Pedro Silva

Irmãos Abe foram campeões olímpicos num espaço de minutos

«25 de julho vai ser o dia em que eu e o meu irmão vamos brilhar», disse a judoca Uta Abe quando o calendário para os Jogos Olímpicos de Tóquio ficou definido. E tinha razão. Num espaço de poucos minutos, a irmã mais nova venceu a medalha de ouro na categoria de -52 quilos e o irmão mais velho Hifumi venceu o título olímpico em -66 quilos.

Não foi a primeira vez que dois irmãos venceram medalhas de ouro no mesmo dia. Até houve alturas em que quatro irmãos ganharam medalhas, mas na mesma prova, nunca individuais, nunca num espaço de tão pouco tempo.

Se o Japão é a casa do judo parece que o judo também é a casa da família Abe. «Este tornou-se o melhor dia de sempre. Não acho que nós, enquanto irmão e irmã, pudéssemos ter brilhado mais neste palco dos Jogos Olímpicos. Estou tão contente», disse Hifumi.

O irmão mais velho, responsável pela inspiração da ida da irmã Uta para a modalidade, sentiu a pressão de corresponder. Tal como tinha acontecido em 2018 quando ambos foram campeões mundiais: «Assim que a minha irmã venceu, cheguei à final com ainda mais vontade de vencer».

Para os Jogos Olímpicos, a presença de Hifumi chegou a estar em dúvida, tal é a competitividade da modalidade entre os japoneses. Quando a notícia chegou finalmente, a pressão voltou a ser maior: «Agora posso dizer oficialmente que estou a pensar em vencer a medalha de ouro com a minha irmã nos Jogos Olímpicos. Como irmão mais velho, não me posso dar ao luxo de perder».

E não perdeu mesmo. Abe Uta derrotou a francesa Amandine Buchard e Hifumi fez o mesmo contra o georgiano Vazha Margvelashvili, cumprindo uma das páginas mais bonitas do desporto japonês e do desporto familiar em palcos olímpicos.

«Ainda não consigo assimilar aquilo que aconteceu, mas a ideia de ser campeã está a começar a bater. A emoção, a alegria começa a explodir», disse Uta Abe depois de conquistar a medalha de ouro na sua primeira participação em Jogos Olímpicos aos 21 anos.

Hifumi conseguiu o mesmo com 23 anos. «Esta medalha de ouro tem um significado muito grande. Posso ter apenas 23 anos mas este ouro contém todos esses anos e consigo sentir o peso disso».

25 de Julho, 2021

Anna Kiesenhofer. A vitória do cálculo avançado

Rui Pedro Silva

Anna Kiesenhofer

A medalha de ouro na prova feminina de estrada do ciclismo foi para a austríaca Anna Kiesenhofer mas esta história começa a contar-se pela medalha de prata, ganha pela neerlandesa Annemiek Van Vleuten.

A corrida marcava exatamente três horas e 54 minutos quando a atleta dos Países Baixos cruzou a meta. Estava em êxtase depois de uma prova tão dura e festejou como se tivesse vencido. Ou pelo menos assim achou toda a gente no início. Van Vleuten pensou mesmo que tinha acabado de cruzar a meta na primeira posição.

O problema foi uma falha de cálculo. Ninguém sabia que Anna Kiesenhofer continuava sozinha na frente. «Pensei que estava em primeiro, mas estava errada», lamentou Van Vleuten. A sua compatriota, Anna van der Breggen, corroborou o erro: «Não sabia que ainda estava alguém na frente. Não acho que a tenhamos desvalorizado. Não a conheço. Quão errada podes estar se na verdade não conheces alguém?», questionou.

Anna Kiesenhofer terminou 75 segundos antes de Van Vleuten e não teve quaisquer problemas com as contas necessárias para terminar na primeira posição e conquistar a medalha de ouro. Até porque tinha exigência profissional para isso: Kiesenhofer trabalha na Universidade de Tecnologia de Viena nas áreas da Física e da… Matemática.

O seu percurso é uma autêntica lição de formação na área. Tem um mestrado em Matemática na universidade de Cambridge, um pós-doutoramento em Matemáticas Aplicadas em Barcelona e ainda trabalhou como investigadora na área em Lausanne, na Suíça. Por outras palavras, era impossível cometer erros de cálculo em Tóquio.

A ciclista austríaca é uma verdadeira desconhecida. Tem 30 anos, só começou na modalidade em 2014, com 23 anos, e tornou-se profissional em 2017. Porém, a paixão pelo desporto esteve sempre lá: «Desde criança que adoro desporto. Quando era adolescente corria por gosto até que um amigo sugeriu que começasse a competir. A partir de 2011 fiz um pouco de tudo: atletismo, triatlos, duatlos até que uma lesão em 2014 me forçou a deixar a corrida durante muito tempo. Foi aí que descobri a minha paixão pelo ciclismo», contou em 2016.

Cinco anos depois, a paixão deu frutos – uma medalha de ouro sem caroço. As atletas não a conheciam até agora mas provavelmente nunca mais a vão esquecer. Tal como Kiesenhofer nunca esquecerá a sensação de vencer um título olímpico sem que alguém percebesse.

25 de Julho, 2021

Ahmed Hafnaoui. A surpresa que veio da Tunísia

Rui Pedro Silva

Ahmed Hafnaoui

Pergunta rápida: se tivessem de apostar, qual seria a modalidade em que diriam que a Tunísia tem mais medalhas de ouro em Jogos Olímpicos? O atletismo talvez seja uma resposta segura, mas não é a correta. A partir de 25 de julho de 2021, a resposta certa é a natação. Por culpa de Ahmed Hafnaoui e da sua vitória na prova dos 400 metros livres.

Vamos começar pelo contexto. A Tunísia tem 15 medalhas olímpicas mas apenas cinco são de ouro. Mohammed Gammoudi venceu os 5000 metros masculinos na Cidade do México-1968, Habiba Ghribi venceu os 3000 metros obstáculos femininos em 2012 e depois... depois é tudo natação.

Começou em 2012 com os dois títulos de Oussama Mellouli (1500 metros livres e 10 km águas abertas) e prolongou-se com a vitória surpreendente de um adolescente com 18 anos nas águas de Tóquio.

Quem é, afinal, Ahmed Hafnaoui? Correndo o risco de ser um exagero – é mesmo –, é possível que nem o próprio consiga responder a isso. Ninguém previa que pudesse acontecer o que aconteceu no primeiro dia de finais da natação, sobretudo tendo em conta a forma como tinha sofrido na eliminatória de qualificação.

À entrada para os últimos 50 metros, Hafnaoui estava na sexta posição e a ver o apuramento por um canudo, mas conseguiu levar a cabo um esforço final, subiu para o quarto lugar e garantiu o oitavo melhor tempo por apenas 14 centésimos. Dito de outra forma: entrou na final com o pior registo da qualificação.

Na manhã seguinte, na corrida decisiva, parecia que íamos ter mais do mesmo. Saiu da pista oito, teve a segunda pior reação à partida de todos os finalistas e voltou a fazer uma prova de trás para a frente. Era quarto aos 50 metros, terceiro aos 100 metros, e foi virando sempre em segundo até aos 50 metros finais. Aí, fez novamente um último esforço final, ultrapassou o australiano Jack McLoughlin e terminou com 16 centésimos de vantagem para vencer a primeira grande prova da carreira.

Essa é capaz de ser a maior surpresa deste triunfo. Este não é apenas o primeiro título olímpico de Hafnaoui. Até agora, o tunisino não tinha feito melhor do que um quarto lugar nos Mundiais Juniores nos 800 metros livres. Só mesmo em África tinha conseguido pódios, nos campeonatos continentais: em 2018, na Argélia, somou uma prata e três bronzes.

Mas ouro, vitória mesmo, só agora em Tóquio. O discípulo de Oussama Mellouli surgiu praticamente do nada e venceu a segunda medalha de África e da Tunísia nesta edição. E a primeira medalha de ouro. No final, Hafnaoui explicou a razão para o sucesso: disse que se sentiu muito melhor na piscina de manhã do que no dia anterior à noite.

É caso para dizer que para ele, de manhã, só se está bem é na aguinha.

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