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É Desporto

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29 de Março, 2021

Eteri Tutberidze. Uma «Aurélio Pereira» da patinagem russa

Rui Pedro Silva

Eteri Tutberidze

Anna Shcherbakova sagrou-se campeã mundial de patinagem artística a poucos dias de completar 17 anos. A atleta russa conseguiu o melhor resultado no programa curto em Estocolmo e, mais tarde, conseguiu resistir à aproximação de Alexandra Trusova para garantir a medalha de ouro e suceder à compatriota Alina Zagitova.

O desempenho de Shcherbakova foi irrepreensível e, de cada vez que saía do gelo, era congratulada por duas pessoas: o seu coreógrafo, Daniil Gleichenrauz, e a sua treinadora, Eteri Tutberidze. O talento existe e não está em causa mas, por trás de uma grande patinadora, está sempre uma grande treinadora. E Tutberidze dispensa apresentações.

Ou melhor, dispensa apresentações no mundo da patinagem artística. Como nem todos somos especialistas em saltos com os nomes Axel, Lutz, Salchow e muitos outros, talvez seja melhor calçar os patins e partir a toda a velocidade para este mundo que insiste em conquistar novos adeptos a cada prova que é transmitida na televisão.

Uma comparação costuma ser importante para atestar a importância de um protagonista. E é aqui que surge o nome de Aurélio Pereira, a figura da história do Sporting que descobriu grande parte dos craques das últimas décadas. Nos pelados e na relva, tal como no gelo, descobrir alguém com qualidade é importante, mas não tanto como potenciá-lo. E talvez seja nesta componente que Eteri Tutberidze comece a distanciar-se da comparação simplista que encontrámos.

Eteri Tutberidze não se limita a descortinar crianças e adolescentes de enorme qualidade. Até porque, verdade seja dita, na maior parte das vezes já nem precisa. Chamar-se Eteri Georgievna Tutberidze é mais do que suficiente. O discernimento na hora de olhar para as atletas não deixa de ser importante mas o mais comum é que sejam as crianças a ir ter com ela.

Adelina Sotnikova foi a primeira russa campeã olímpica, em 2014

Quando nasceu, a 24 de fevereiro de 1974, em Moscovo, a patinagem russa estava longe de ser uma potência. Vamos por partes: nos Jogos Olímpicos, a primeira medalha foi conquistada em 1972, por Sergei Chetverukhin, que foi prata em Sapporo. Foi preciso esperar até 1992 para a Equipa Unificada, pós-desmembramento da União Soviética, para chegar o primeiro de cinco títulos olímpicos consecutivos. Na vertente feminina, a primeira medalha foi alcançada apenas em Sarajevo-1984, com o bronze de Kira Ivanova, e o título só chegou em 2014, com Adelina Sotnikova (na imagem).

Nos Mundiais, o cenário não era mais favorável, apesar de haver competições praticamente todos os anos desde o fim do século XIX ou início do século XX, dependendo do género. O primeiro título masculino foi alcançado em 1975, por Sergei Volkov, quatro anos depois de Chetverukhin ter conquistado a primeira medalha soviética (bronze), enquanto a primeira mulher a subir ao pódio foi Elena Vodorezova (bronze) em 1983 e a primeira a fazer soar o hino foi Maria Butyrskaya, em 1999.

Eteri Tutberidze não nasceu num país que dominava a modalidade mas cresceu num meio em que as atenções estavam cada vez mais viradas para esse desporto. A patinagem artística ficou na moda durante a década de 1970, como nunca antes até então, e Eteri começou a praticar com quatro anos e meio.

Aconteceu por acaso. A meio de uma viagem com a mãe para levar o irmão a um treino de futebol, viu um grupo de jovens patinadoras pela primeira vez e não escondeu o encanto. «Não me pareciam crianças, mas sim fadas. Disse à minha mãe para me levar para lá também», contou em entrevista.

O progresso como patinadora foi animador. De um grupo de 30, foi uma das cinco escolhidas pelo treinador. Mas não estava destinada a durar muito tempo. «Já tinha um bom repertório. Um duplo Axel, um triplo Salchow e um triplo Toeloop. Mas quando o treinador começou a fazer outras escolhas para os torneios, a minha capacidade para saltar desapareceu gradualmente. Não conseguia perceber porquê e comecei a cair mais vezes, apesar de fazer tudo como me era ensinado. A partir de certa altura senti-me abandonada e, como resultado do mau treino e de maus aquecimentos, fui acumulando lesões», lamentou.

A lesão definitiva foi numa vértebra. Ficou de fora durante um longo período e em três meses cresceu 22 centímetros, talvez por culpa dos suplementos de cálcio que a mãe lhe dava. Eteri Tutberidze tinha-se tornado demasiado alta para a competição, por isso mudou-se para a dança no gelo.

Eteri Tutberidze a dançar no gelo ainda muito nova

A situação na União Soviética estava cada vez pior, com a Perestroika a caminho, e um convite dos Estados Unidos foi suficiente para deixar tudo para trás. Mas nem tudo correu bem. A entrada em Oklahoma com a companhia de ballet foi negada a todos os membros que não tinham nascido em Moscovo e, durante um mês, os que conseguiram entrar ficaram à mercê da caridade dos americanos. Sem dinheiro, foram obrigados a pedir para comer e receberam alojamento nas igrejas locais.

O sonho americano tinha-se transformado em pesadelo. O contrato foi cancelado e a vida nos Estados Unidos tornou-se ainda mais assustadora quando o edifício federal perto do local onde viviam foi alvo de um ataque bombista de Timothy McVeigh, em 1995, que matou 168 pessoas e feriu praticamente outras 700.

«Não me lembro como fui parar à rua. As paredes tinham desaparecido. Toda a gente estava a ser transportada e havia gritos sobre a possibilidade de haver uma segunda bomba. Estava toda a gente a correr e eu ali, parada. Sentia-me perdida. Até que apareceu um bombeiro a segurar-me pela mão e a arrastar-me dali para fora», recordou.

Edifício federal em Oklahoma após a explosão

A vida de Eteri Tutberidze transformara-se numa autêntica confusão mas estava prestes a melhorar. O bombeiro que a tinha arrastado acolheu Eteri e o seu parceiro, Kolya Apter, e enviou um vídeo dos dois a atuar para os Ice Capades. A dupla foi contratada e, além disso, ainda recebeu 1200 dólares cada por terem sido considerados vítimas do atentado terrorista.

A experiência nos Ice Capades durou quatro anos e, lentamente, a vontade de voltar à Rússia começou a instalar-se. Foi assim que, passo após passo, começou a consolidar-se como uma das melhores treinadoras que o mundo já viu, e responsável por muitas das melhores atletas sobre o gelo.

Qual é o segredo? «Trabalho. É a única coisa que consigo fazer, trabalhar. Tenho de trabalhar e ver onde é que isso me leva. Pode resultar, ou não. E também temos de planear tudo», explicou em 2017. «Falo muito com as minhas atletas, tento perceber o que lhes vai na cabeça e mostrar-lhes a razão pela qual estão a trabalhar. Precisam de perceber porquê, a razão do trabalho, a razão do suor. Quando eu patinava, ninguém me explicou isso e fui um fracasso. Como treinadora, tenho de conseguir liderá-las da melhor maneira. Quando estamos cansadas, é bom saber qual é a finalidade», continuou.

A fórmula de Eteri Tutberidze tem resultado na perfeição. Na última década, foi a treinadora responsável por Yulia Lipnitskaya (campeã olímpica por equipas em 2014), Alena Kostornaia (campeã europeia em 2020), Alina Zagitova (campeã olímpica em 2018, mundial em 2019 e europeia em 2018), Evgenia Medvedeva (campeã mundial em 2016 e 2017) e Anna Shcherbakova (campeã mundial em 2021).

Tutberidze com o coreógrafo e Alina Zagitova em Pyeongchang-2018

Eteri Tutberidze também foi responsável pelo desenvolvimento de Alexandra Trusova, a patinadora russa que é apelidada de Rainha dos Quádruplos e que atualmente é orientada por Evgeni Plushenko. Entre 2016 e maio de 2020, Trusova progrediu com Eteri, dos 11 aos 15 anos. Foi durante este período que fez história e se tornou a primeira mulher de sempre a tentar e conseguir um quádruplo Lutz, um quádruplo Flip e um quádruplo Toeloop.

Eteri Tutberidze não gosta de falar com jornalistas. Não gosta de falar sobre ela. Mas tem vivido na sombra de muitos dos grandes momentos da patinagem russa. Os resultados estão aí a comprová-lo e, como já ameaçava em 2017, «ainda vai melhorar». A profecia concretizou-se em Estocolmo: pela primeira vez desde 1991 e segunda em toda a história, os três lugares do pódio foram ocupados por patinadoras do mesmo país.

Se há 30 anos, o palco foi dominado pelos Estados Unidos, com Kristi Yamaguchi, Tonya Harding e Nancy Kerrigan, agora foi a vez da Rússia, com Anna Shcherbakova, Elizaveta Tuktamysheva e Alexandra Trusova. Duas delas têm o dedo de Eteri Tutberidze. Coincidência? Não, apenas trabalho. Muito trabalho.

27 de Março, 2021

Moacyr Barbosa. O guarda-redes do Maracanazo

Rui Pedro Silva

Barbosa no golo de Ghiggia

«A pena máxima criminal no Brasil é de 50 anos. Não sou um criminoso vulgar e já cumpri mais de dez anos além disso. Tenho o direito de dormir tranquilo.»

Moacyr Barbosa nunca conseguiu dormir tranquilo. A carreira devia falar por ele. Jogou no Vasco da Gama entre 1945 e 1955, venceu a Copa América em 1949, fez parte da seleção que atingiu a final da competição em 1953 e foi um dos quatro jogadores que alinharam em todos os seis encontros do Brasil no Mundial de 1950. Também conquistou o título carioca em 1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958 e em 1948 alcançou o título da competição que antecedeu a Taça dos Libertadores da América.

Mas, por mais invejável que fosse o seu currículo, teria aquele momento do Maracanã, a 11 minutos e 28 segundos do final do jogo, para sempre. «Ainda sou marcado, mais de 40 anos depois, pela Copa de 50. Ninguém tem mais o direito de me cobrar uma coisa ocorrida há tanto tempo», disse, não muito tempo antes de morrer em abril de 2000, de ataque cardíaco. Mas Barbosa caiu numa espiral da qual não se pode sair: tornou-se o jogador mais reconhecido da pior derrota que o Brasil sofreu na sua história.

O momento que estava preparado para ser a afirmação de um Brasil em recuperação no contexto mundial tornou-se numa humilhação. Era suposto ser a maior vitória do desde a independência, em 1822, mas tornou-se uma metáfora para as derrotas da própria sociedade brasileira.

Barbosa era um intocável para Flávio Costa. Tinha uma colocação impecável e uma grande técnica de jogo. Era desta forma que o jogador do Vasco da Gama de 29 anos era descrito pelo selecionador. E talvez tenha sido essa inteligência que o tramou no lance decisivo, pelo menos o mais emblemático, do último jogo do Mundial-1950.

O lance foi praticamente tirado a papel químico do golo do empate e começa com Ghiggia a fugir a Bigode pelo lado direito do ataque. Se aos 66 minutos, o ponta direita tinha assistido para o coração da área, para Schiaffino marcar; desta vez o guarda-redes estava determinado em impedir um desfecho idêntico.

Barbosa

«Pensei que o Ghiggia fosse cruzar, porque fazia sempre isso. Fiquei apavorado e saí da baliza para chamar a atenção do Juvenal e cortar o centro. Quando o Ghiggia percebeu, chutou para a baliza, entre o meu corpo e o poste esquerdo, mais por descargo de consciência, porque estava praticamente sem ângulo. Dei um salto de gato para trás e cheguei a tocar na bola. Um segundo depois, olhei para a baliza e vi as redes a balançar. Por um instante, pensei que ela estivesse do lado de fora. Ghiggia foi esperto. Tentou uma coisa impossível, que deu certo. Ele pensou errado e deu certo, eu pensei certo e deu errado», lamentou Barbosa.

O ponto de vista de Barbosa é mais ou menos partilhado pelos protagonistas. Flávio Costa disse que a antecipação foi uma «desgraça»: «Barbosa, como jogador inteligente, de grandes reflexos, adiantou-se, na posição de cortar a bola, pois esperava uma repetição do lance do primeiro golo uruguaio, quando Ghiggia deu um passe para trás».

E Ghiggia, como é que viveu o lance? «Barbosa já estava habituado aos cruzamentos e não se preocupou em fechar o ângulo. Senti que era a hora exata. Não pensei mais e chutei a bola com a direita. O remate saiu murcho e torto, em direção ao pequeno espaço entre Barbosa o poste. A bola levava efeito, e isso contribuiu também para que Barbosa não a pudesse controlar. Quando Barbosa se atirou, estava no contrapé e já era tarde», disse.

Nem toda a gente mostrou tanta compreensão. Era preciso encontrar um culpado para a derrota e Barbosa foi um alvo demasiado simples, como o são sempre os guarda-redes. O Estado de São Paulo deu voz ao descontentamento acentuado paulista, já desde a convocatória de Flávio Costa, e foi mordaz: «Se tivesse permanecido parado, onde se encontrava, a bola teria batido nele e voltado. Fez, porém, o inacreditável: numa bola atirada sem pretensões, de situação dificílima, atirou-se ao chão quando ela vinha de meia altura. E foi coberto vergonhosamente».

Ghiggia vê a bola a entrar

O escritor Nelson Rodrigues entende que «o golo de Ghiggia ficou gravado, na memória nacional, como um frango eterno». «O brasileiro já se esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da gripe espanhola, do assassinato de Pinheiro Machado. Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é o chamado frango de Barbosa», continuou

Barbosa nunca esqueceu aquele momento. Nunca o deixaram esquecer. Não valia a pena insistir na tecla de que a derrota, como a vitória, tinha de ser dividida por todos. «Se não tivesse aprendido a não ficar incomodado quando as pessoas falavam do golo, provavelmente já estaria na prisão ou no cemitério», disse Barbosa antes de morrer. «As pessoas esquecem-se que os Mundiais de 1974 e 1978 foram humilhações piores. E que dizer do embaraçosa que foi a final em 1998? Mesmo assim as pessoas preferem falar de 1950».

O bode expiatório ignora que o contexto importa. O Brasil tinha parado para aquele Mundial, organizado em casa, construído do nada e com o objetivo, e a expectativa legítima, sobretudo depois das goleadas à Suécia (7-1) e Espanha (6-1), de alcançar o título. O bode expiatório ignora que o Maracanã tinha sido construído para aquele dia e havia cerca de 200 mil pessoas à espera de fazer a festa. Ou talvez não ignore, tenha apenas aprendido a esquecer.

«A cena da multidão derrotada é a que mais ficou gravada na memória de todos que presenciaram o jogo. Foi como se tivessem preparado uma festa para coroar um rei e o rei morresse antes da coroação», lamentou Barbosa, que confessou que ficou duas horas no balneário após a derrota e, nos dias seguintes, chegou a estar escondido num hotel.

Por aquela altura, Barbosa estava longe de imaginar que o futuro ia ser tão amargo para ele. Só voltou a jogar pela seleção uma vez, em 1953, durante a Copa América, e percebeu que se tinha tornado inesquecível para os adeptos. Durante os anos 70, num mercado, ouviu o pior comentário do pós-Maracanzo, quando uma mulher apontou para ele e disse ao rapaz que a acompanhava: «Olha para ele, filho. É o homem que fez todo o Brasil chorar».

A redenção nunca chegou. Ironicamente, trabalhou muitos anos no Maracanã e chegou a receber, como oferta, os postes de madeira da baliza de 1950. Resultado? Queimou-os assim que chegou a casa. A sua proximidade da seleção brasileira também foi vista como um mau presságio e em 1993 foi mesmo proibido de fazer comentários para a transmissão televisiva depois de Mário Zagallo ter alegado que trazia má sorte.

Má sorte teve Barbosa, até morrer. A mulher morreu em 1997, de cancro, e, sem filhos, só conseguiu viver com dignidade graças ao apoio do Vasco da Gama, que lhe ofereceu uma quantia mensal para pagar a renda da casa. A capacidade para ser feliz de Barbosa morreu naquele 16 de julho de 1950. A ilusão nasceu num dia como o de hoje, 27 de março, há 100 anos. Seria essa a idade que celebraria se ainda fosse vivo. E, muito possivelmente, mesmo apesar do 7-1 de 2014, continuaria a ser visto como o culpado de 1950. O golo de Ghiggia garantiu-lhe pena perpétua.

24 de Março, 2021

Alina Zagitova. Ter o mundo a seus pés na adolescência

Rui Pedro Silva

Alina Zagitova foi campeã olímpica com 15 anos

A patinagem artística favorece o aparecimento de talentos muito jovens. É a ginástica dos desportos de inverno e onde nos colchões surgem nomes como Nadia Comaneci, Olga Korbut e Simone Biles, no gelo há figuras como Alina Zagitova.

Alina só se tornou Alina depois do primeiro ano de vida. Os pais ficaram indecisos durante demasiado tempo e só atribuíram um nome à filha mais velha quando decidiram homenagear Alina Kabaeva, após a verem em ação numa prova de ginástica rítmica.

Se Zagitova demorou a ter um nome próprio, não precisou de muito tempo para ter uma entrada triunfal no mundo do desporto. Começou a patinar com sete anos, tentando perseguir o sonho que a mãe nunca conseguiu concretizar, e até aos dez não alcançara melhor do que um terceiro lugar. A partir daí, tudo mudou: começou a ter Eteri Georgievna como treinadora.

O primeiro grande momento surgiu em dezembro de 2016, na final júnior do Grande Prémio de Patinagem Artística, disputada em Marselha. Alina tinha 14 anos, era naturalmente menor de idade, e ia viajar para França com a avó. Mas, ao chegar ao aeroporto, aperceberam-se de um erro que poderia ter sido fatal.

«Houve um incidente. Eu e a minha avó tínhamo-nos esquecido da declaração dos meus pais a autorizarem a minha saída do país. Tentaram persuadir os agentes no aeroporto mas eu era menor e tudo se tornou mais sério. A minha avó voltou para casa mas não conseguia regressar a tempo do voo. Pensei que iria viajar mais tarde nesse dia sozinha, sem os treinadores, mas a Eteri Tutberidze disse que Paris tinha um grande aeroporto e que era arriscado», recordou. O contratempo foi resolvido, Alina viajou mesmo nesse dia e saiu de Marselha com a medalha de ouro.

O progresso de Alina foi imparável. Hoje, com 18 anos, tem um currículo invejável e detém simultaneamente o título europeu, o título olímpico e o título mundial. Derrota é uma palavra muito invulgar na sua vida mas está destinada a perder a última distinção, na competição que decorre em Estocolmo até ao final da semana.

E vai perder porque… decidiu suspender a carreira no final de 2019. Tinha 17 anos, não havia nada para alcançar, precisava de descanso e queria… apostar na sua formação profissional, com o curso de jornalismo em mente.

No início não esperava ficar tanto tempo parada. Mas depois veio a pandemia, os cancelamentos das grandes provas e… a resignação. Em 2019, após a conquista do Mundial, sentia-se física e emocionalmente exausta depois de dois anos de atividade intensa em que ganhou tudo o que havia para ganhar.

«Tenho pensado no regresso muitas vezes esta época», disse recentemente, mas o clique ainda não surgiu. «Há fatores que estão a impedir-me e regressar. Por outro lado, há outras coisas que me inspiram a voltar. Vamos ver o que acontece», confessou.

23 de Março, 2021

Gordie Howe. A incrível carreira do Mister Hockey

Rui Pedro Silva

Gordie Howe

A subjetividade é uma das maravilhas do desporto. É possível que «Gordie» tenha sido uma das primeiras palavras de milhares de crianças canadianas ao longo dos anos, mas em Portugal poucos serão aqueles que sabem quem é Gordie Howe.

A globalização ajudou a diminuir distâncias e hoje talvez seja muito mais provável que alguém em Portugal se tenha cruzado com este nome nos últimos anos, mesmo que nunca tenha visto um jogo de hóquei no gelo ou que não seja grande fã da modalidade.

Sempre que se fala em recordes na NHL, o nome de Gordie Howe aparece na conversa. Gordie Howe era Wayne Gretzky antes de haver Wayne Gretzky. E o currículo fala por ele. Numa era em que o período de atenção da pessoa comum é cada vez mais curto e os recrutadores de emprego preferem cada vez mais currículos curtos, de uma única página, em vez de testamentos, é difícil enfiar todas as grandes marcas da carreira de Howe em poucos parágrafos. Mas vamos a isso? Challenge accepted.

Gordie Howe estreou-se na NHL em 1946 e disputou o último jogo em 1980, com 52 anos. É o jogador mais velho de sempre a jogar na liga e não se limitou a fazer figura de corpo presente: disputou 80 jogos pelos Hartford Whalers com 15 golos e 26 assistências.

Gordie Howe representou os Detroit Red Wings nos primeiros 25 anos da carreira. Estreou-se com 18 anos em 1946, pouco mais de um ano depois do fim da II Guerra Mundial. E venceu a Stanley Cup em 1950, 1952, 1954 e 1955.

Gordie Howe foi o melhor marcador do campeonato em 1951, 1952, 1953, 1957 e 1963. Gordie Howe foi chamado para o jogo all-star entre 1948 e 1955, entre 1957 e 1965, entre 1967 e 1971 e, finalmente, em 1980, num total de 23 ocasiões. E foi membro da melhor equipa da liga em 12 temporadas.

Gordie Howe com Wayne Gretzky em 1972

Estatisticamente, a carreira de Gordie Howe é um paraíso. É o recordista de jogos da fase regular (1767), de jogos por uma só equipa (1687), é o jogador mais velho da história, com mais de quatro anos de vantagem para o segundo, e lidera o palmarés dos Red Wings, uma das equipas com mais tradição na história da NHL em pontos, golos e jogos. Quando disse adeus, com 52 anos e 11 dias, tinha 801 golos, 1049 assistências, um total de seis edições como melhor pontuador (golos mais assistências). E, como não podia deixar de ser, batizou uma hat-trick muito particular: golo, assistência e luta.

A carreira de Gordie Howe, que chegou a partilhar balneário com os filhos Mark e Marty na última temporada, em 1980, foi um mar de rosas, mas a infância, como a de tantas outras figuras na história do desporto, envolveu sofrimento e um contexto familiar complexo.

Nascido em março de 1928, era um de nove irmãos, e «viu» a família mudar-se logo no primeiro mês de vida. A Grande Depressão não teve um impacto imediato mas, anos mais tarde, foi obrigado a deixar a escola para ir trabalhar na construção civil antes de, aos 16 anos, dedicar-se exclusivamente ao sonho de ser um dos melhores jogadores de hóquei da história.

Gordie era um artista, um malabarista. Poderia ter sido um Harlem Globetrotter da patinagem, tal era a sua perícia com o stick, o disco e a capacidade para executar manobras visionárias que estavam ao alcance de muito poucos, sobretudo naquela altura. E como nunca é demais reiterar a importância de Howe na NHL, vamos a mais um apontamento estatístico: a NHL tinha 29 edições disputadas (apenas quatro da era Original Six, com apenas Montreal Canadiens, Toronto Maple Leafs, Boston Bruins, Detroit Red Wings, New York Rangers e Chicago Blackhawks) quando Howe se estreou. E disse adeus definitivamente na 63.ª edição, já com 21 equipas a disputar a Stanley Cup.

A passagem de testemunho para Wayne Gretzky foi natural mas Gordie Howe continuou a ser considerado como uma das melhores obras-primas da modalidade. Muitos dos seus recordes começaram a ser batidos, mas a ideia de «Gordie Howe» nunca chegou a ser derrubada. É uma lenda da modalidade, inspirou várias gerações de atletas e, quando morreu, em 2016, a liga homenageou-o em uníssono num dos funerais mais concorridos na história do Canadá.

19 de Março, 2021

Gudjohnsen. Quando o filho substituiu o pai

Rui Pedro Silva

Eidur e Arnór Gudjohnsen

Tallinn, 24 de abril de 1996. Há 16 seleções a prepararem a participação na fase final do Europeu de Inglaterra, enquanto as restantes aproveitam as datas internacionais para organizar jogos particulares. Ou amigáveis, como se chamavam na altura. Ou, se quisermos ir ainda mais longe, vendo da perspetiva islandesa, jogos familiares.

Estónia e Islândia estiveram longe, muito longe, de garantir a presença no Euro-1996. A seleção do Báltico tinha terminado a presença no grupo 4, com Croácia, Itália, Lituânia, Ucrânia e Eslovénia, sem um único ponto conquistado, apenas três golos marcados e 31 sofridos, com destaque para a goleada sofrida na Croácia (7-1). A Islândia fez melhor no grupo 3 mas também não escapou ao último lugar, com uma vitória (2-1 vs. Hungria) e dois empates (0-0 vs. Turquia e 1-1 na Suécia) num grupo que também tinha a Suíça.

Com os olhos já postos na qualificação para o Mundial-1998, o jogo amigável não teria grandes motivos de interesse mas a Islândia aproveitou para fazer história. Não por ganhar 3-0, nem sequer por Bjarki Gunnlaugsson ter feito um hat-trick na primeira meia hora do encontro (8’, 22’ e 30’). A Islândia de Logi Olafsson fez história por causa de um faðir e de um son.

Pode parecer ridículo numa seleção islandesa em que quase todos eles são sons. Basta olhar para o onze: havia dois Kristinsson, um Adolfsson, um Bergsson, um Jónsson, um Sigurdsson, um Sverisson, um Gretarsson, um Thordarson e um Gunnlaugsson. Temos dez nomes, fica a faltar um. E é o único que não era «son» mas «sen». Chamava-se Arnór Gudjohnsen, tinha 34 anos e era um avançado goleador com cartas dadas na Europa continental, com experiências na Bélgica (Lokeren e Anderlecht) e em França (Bordéus).

Por esta altura, talvez já estejam onde é que esta história vai dar. Arnór era o pai de Eidur, um Gudjohnsen mais famoso, mas que naquela altura estava apenas a dar os primeiros passos no PSV Eindhoven, tinha 17 anos e aguardava pela sua primeira internacionalização no banco de suplentes.

Eidur poderia ter-se chamado Arnórsson, mas a família não seguia à risca essa tradição tipicamente islandesa, pelo que aos 62 minutos houve uma substituição que entrou para a história e à qual ninguém ficou indiferente: saiu o Gudjohnsen pai, entrou o Gudjohnsen filho.

Pai e filho fizeram história: tornaram-se a primeira dupla pai-filho a disputar o mesmo jogo internacional. Mas nunca o conseguiram fazer simultaneamente. A longevidade de um e a prematuridade do outro garantiram este feito especial na Estónia mas não voltou a haver uma oportunidade.

O momento da substituição

«A minha maior desilusão é que nunca tenhamos conseguido jogar juntos», lamentou Arnór, que se despediu dos jogos pela seleção em 1997, apesar de ter continuado a jogar até aos 39 anos, já no campeonato islandês.

A «culpa» é partilhada. Pode ser atribuída ao presidente da federação islandesa de futebol, Eggert Magnússon, que tinha dado instruções ao selecionador para aguardar o feito para um jogo na Islândia, contra a Macedónia, a 1 de junho de 1996, mas Eidur também tem alguma «responsabilidade».

A ideia era que os dois pudessem fazer a festa em frente da família, amigos e adeptos islandeses em Reiquejavique. Mas Eidur não teve sorte. Em maio, fraturou o tornozelo durante um jogo da seleção sub-18 contra a Irlanda e atravessou um período de recuperação longo.

Não só falhou o jogo com a Macedónia, num encontro em que o pai marcou o golo viking no empate a um, como demorou muito a regressar. Quando voltou aos jogos pela seleção, em 1999, já o pai tinha terminado a carreira internacional.

O filho acabou por superar as pisadas do pai. Jogou em clubes como Chelsea e Barcelona, foi campeão europeu, inglês e espanhol e, com a mesma idade com que Arnór terminou a carreira, fez parte de uma equipa histórica: a que marcou presença no Euro-2016.

Por essa altura, já o seu filho mais velho, Sveinn Aron, era internacional pela Islândia mas… apenas nos sub-19. A história não se repetiu: Arnór e Eidur tiveram uma oportunidade única e fizeram história, mas nunca esqueceram o dissabor de não terem partilhado verdadeiramente um relvado num jogo pela Islândia.

18 de Março, 2021

Wayne Rainey. Uma curva fatal

Rui Pedro Silva

Wayne Rainey

Domingo, 5 de setembro de 1993. O campeonato do mundo de motociclismo (500 cc) está perto da decisão e o circuito de Misano recebe a antepenúltima corrida da temporada. As cartas estão todas do lado de Wayne Rainey e o título pode não ser mais do que uma formalidade.

O norte-americano é o tricampeão em título e lidera o Mundial com 214 pontos. O compatriota Kevin Schwantz é a maior ameaça e segue com 203. Em Misano, a Yamaha de Rainey segue na liderança da prova, seguida de perto pela Yamaha de Luca Cadalora, com a Suzuki de Kevin Schwantz um pouco mais atrás.

Wayne Rainey seguia a 160 quilómetros por hora mas viu a vida fugir-lhe por entre os dedos ao sair ligeiramente da trajetória numa curva para a direita. «A primeira análise demonstra uma paralisação das pernas que pode ser o resultado de um golpe simples, que é recuperável, ou, muito possivelmente, uma lesão real, que pode ser definitiva», explicou numa primeira instância o diretor médico da prova, Ángel Villamor.

Wayne Rainey foi transportado para o Hospital Bufalini em Cesena para fazer mais testes e o neurocirurgião Franco Servada afirmou que os sinais vitais estavam estáveis mas que o prognóstico era reservado. Quando o diagnóstico final chegou, o mundo do motociclismo ficou diferente para sempre: fratura e luxação da sexta vértebra lombar, com paralisação das pernas muito profunda e com escassíssimas possibilidades de recuperação.

Acidente de Rainey

Os maiores rivais de Rainey sentiram o peso de ver um adversário, mas sobretudo um colega, ficar de fora desta maneira. Kevin Schwantz, que estava a caminho do seu único título de campeão mundial graças ao azar de Rainey, admite que desejou que «não tivesse sido nada muito importante para poder continuar a lutar pelo título em Laguna Seca e Jarama». «O Wayne é um autêntico lutador e não o quero ver a atirar a toalha ao chão», continuou.

Luca Cadalora e Mick Doohan foram um pouco mais longe e alertaram para as condições da pista. «Naquela curva há um pouco de alcatrão levantado fora da trajetória. O Rainey chegou um pouco atrasado e passou por cima dele. Ao acelerar, a roda traseira perdeu aderência e depois também a da frente. Vi-o cair e por um momento pensei que me iria acontecer a mesma coisa. Evitei como pude a colisão mas não pensei que pudesse ter provocado tantos estragos», disse Cadalora.

«Não sei se a culpa do acidente se deve ao asfalto de Misano, mas é provável, porque é muito perigoso. Aceito os acidentes porque fazem parte das corridas, mas não por más condições dos circuitos», queixou-se o australiano, que viria a conquistar os títulos de 1994, 1995, 1996, 1997 e 1998. Misano só voltou a fazer parte do circuito em 2007 e no ano a seguir ao acidente, na temporada de 1994, já tinha sido substituído por Mugello.

Campeão de consciência limpa

Wayne Rainey

Wayne Rainey acordou para uma nova vida e concentrou-se em ver o lado positivo de tudo o que acontecera: «Caí quando era campeão do mundo, a liderar o mundial e a corrida em Misano. Não vos quero ver tristes, porque agora o mais importante é que consiga sair do hospital».

Meses mais tarde, numa entrevista à imprensa espanhola, confessou que o que lhe custou mais a aceitar foi a cadeira de rodas. «Quando estava na cama, estava na cama como em tantas outras vezes até então. Como quando aconteceu durante muito tempo depois do acidente na Malásia. Mas quando me vi pela primeira vez na cadeira de rodas foi muito duro», lamentou.

Depois, como sempre acontece com os grandes campeões, adaptou-se e estabeleceu novos objetivos: «Habituei-me a pensar em mim como uma pessoa cuja mobilidade se deve a esta cadeira. Estou a aprender a mexer-me melhor com ela, a calcular melhor as distâncias e estou a recuperar as forças para subir melhor. Vou construir no meu jardim um caminho asfaltado, para não lhe chamar um circuito, para poder fazer exercício à vontade».

«Na verdade, sinto-me um homem com muita sorte. No fundo, sou uma pessoa mais feliz agora do que antes do acidente. No meu interior, sinto uma paz e uma tranquilidade que nunca tinha tido antes. Embora também tenha dias maus e momentos mais em baixo», garantiu.

A ideia de ter dito adeus quando liderava a prova, o campeonato e como campeão foi algo a que se agarrou. «Fui falando com a minha mulher sobre o momento certo para deixar as corridas. Não queria abandonar, como fizeram muitos, como um derrotado. Eu estava no meu melhor momento quando caí. Ia em primeiro no Mundial, em primeiro na corrida, com o número 1 na minha Yamaha. Estou absolutamente convencido de que o quarto título consecutivo é meu, mas agora talvez tenha conquistado algo mais importante, apesar de o preço a pagar ter sido muito grande», disse.

Wayne Rainey aprendeu a viver sem pressa. A acordar com tempo, a não ter de passar os dias a treinar, a viajar pelo mundo, sem tempo para a família. Começou a olhar para vida de outra forma, ganhou tempo para brincar com o filho e não forçou o regresso ao motociclismo, que iria acabar por chegar, embora noutras funções.

16 de Março, 2021

Errol Tobias. O primeiro negro a jogar pelo Springboks

Rui Pedro Silva

Errol Tobias

Nasceu a 18 de março de 1950, um de nove filhos, num país que não estava preparado para ter negros a representar os Springboks. A África do Sul era um país fortemente segregado, a inclusão racial era uma miragem e as inúmeras federações de râguebi ajudavam demonstrá-lo.

As federações eram racialmente exclusivas e apenas algumas equipas promoviam a abertura. Errol Tobias sempre gostou de râguebi e contou com o apoio da família para tentar chegasse até onde conseguisse. O pai era um ídolo e os dois não perdiam uma oportunidade para ver os melhores jogos, mesmo que o acesso nem sempre fosse fácil.

O caminho para Tobias chegar aos Springboks passaria pela equipa júnior da Proteas, antes de ser considerado para a equipa da WP League, a «equipa de cor» que jogava na competição para brancos da SARB (South African Rugby Board). Depois havia os South African Barbarians (equipa mista), os sub-23 Gazelles, os junior Springboks e, finalmente, os Springboks.

«Tive de mostrar o que valia nos maiores palcos do rugby Springbok. Fui gozado e humilhado mas as minhas qualidades eram fantásticas e ajudaram-me a passar de um pequeno degrau para a plataforma mais elevada até eventualmente me tornar o primeiro Springbok negro em 1980», disse Errol Tobias.

Danie Craven foi muito importante durante todo este período. Era o presidente da Federação Sul-Africana de Râguebi e não era necessariamente um radical. O seu objetivo não era implementar uma mudança radical na sociedade ou na política no país, mas percebia que era preciso fazer concessões para salvar o râguebi da África do Sul, sobretudo a nível internacional. Havia constantes boicotes – que se prolongaram até à exclusão dos dois primeiros Mundiais, em 1987 e 1991 – e Craven soube trabalhar bem com as federações de râguebi para jogadores de cor e para jogadores negros.

Evolução gradual

Errol Tobias

O caminho de Errol Tobias foi lento mas sustentado. Começou por ser selecionado para os South African Barbarians em 1979, a primeira equipa multirracial a jogar no estrangeiro, durante uma digressão no Reino Unido. Tinha oito brancos, oito negros e oito «jogadores de cor», como eram vistos na altura. A iniciativa foi muito criticada em Inglaterra por ser vista apenas como mais uma manobra de diversão do regime africano para esconder o racismo existente no país.

Depois de ter brilhado pelos Junior Springboks em 1980, Errol Tobias teve uma proposta do presidente da federação francesa de râguebi para ir jogar três anos para França. Mas a mãe convenceu-o a não ir, tal como a mulher. Sobretudo porque estava cada vez mais próximo de atingir o sonho de representar os Springboks.

A mãe, tão importante também na definição da sua carreira, morreu a 3 de setembro de 1980, um mês antes de um telefonema decisivo. Tinha sido convocado para uma digressão dos Springboks na América do Sul. Os jogos deviam ter sido na Argentina mas acabaram por se disputar no Paraguai, Uruguai e Chile, por causa do apartheid.

A estreia foi em Assunção, no Paraguai, numa vitória por 84-6 contra a seleção local. Tobias fez um ensaio, brilhou no ataque e ganhou a alcunha de Pelé sul-africano. Foi o primeiro de 13 jogos que disputou pelos Springboks. No terceiro, bateu um recorde com dez pontapés aos postes com sucesso. A estreia em casa aconteceu durante um triunfo sobre a Irlanda por 23-15. Foi o primeiro de seis jogos de teste que realizou.

Em 1981, fez uma digressão com os Springboks na Nova Zelândia mas não chegou a jogar. Houve mais de 200 manifestações violentas espalhadas por 28 cidades com um total de 150 mil manifestantes. O râguebi estava em ebulição e jogar na África do Sul ou contra equipas sul-africanas era mal visto um pouco por todo o lado.

A inclusão de Errol Tobias era, de acordo com muitos, pouco mais do que um oásis, conforme escreveu Gert van der Westhuizen, editor de desporto do jornal Beeld: «A sociedade não era normal. Nem sequer havia essa ilusão. Tobias estava limitado sobre onde poderia viver, onde poderia trabalhar, para quem poderia trabalhar, para onde poderia ir de férias, em que escola poderia deixar as crianças, onde ir ao supermercado. Nem sequer podia ler o que queria, nem decidir hospital ou cemitério».

Errol Tobias era muitas vezes acusado de ser apenas um trunfo do regime para provar algo que na verdade não existia. E Errol percebeu-o uma vez, em 1982, quando parou durante uma viagem de carro num restaurante à beira da estrada. Os proprietários reconheceram-no e serviram-no com pompa e circunstância, mas instantes depois recusaram servir outro casal com a desculpa de não servirem pessoas de cor.

Havia uma dualidade óbvia. A sociedade não estava a mudar, havia apenas uma exceção para Errol Tobias. E o jogador não se mostrava necessariamente incomodado com isso: «O apartheid era um sistema político horrível mas queria aproveitar para mostrar à África do Sul e ao resto do mundo, da minha maneira e através dos meus talentos, que os jogadores negros são pelo menos tão bons como os brancos».

Durante os estágios que foi fazendo, sentiu que houve sempre estupefação dos colegas de equipa brancos, com as circunstâncias que partilhavam. «Afinal de contas, lemos todos da mesma Bíblia, comemos a mesma comida, porque as nossas mães trabalhavam nas cozinhas de muitas casas de brancos, falávamos a mesma língua. A única diferença é que tinham crescido numa sociedade que os fazia pensar que eram os patrões e os negros eram inferiores».

Mudanças nos Springboks?

Springboks

Errol Tobias chegou a partilhar balneário com Avril Williams, outro jogador negro. Mas depois foi preciso esperar por 1995, ano do Mundial conquistado em casa, para aparecer Chester Williams.

A entrada no século XXI continuou sem resolver o problema. Os Springboks «ainda são demasiado brancos porque os políticos continuam a ser políticos e o racismo está a crescer», afirmou, lamentando, no início da última década, que pouco tenha mudado desde 1984.

As oportunidades continuam a escassear, e não apenas nos Springboks mas também nas condições de fundo. Não existem instalações, oportunidades, hipóteses. Mas, ao mesmo tempo, Errol Tobias manifesta-se visceralmente contra as quotas no desporto profissional.

«Depois de 20 anos de democracia, por que é que continua a ser necessário utilizar quotas? Não será uma questão de consciência pesada? As pessoas têm vergonha de admitir que não foram honestas quando prometeram investimento no talento desportivo. Por que outra razão é que as seleções continuam a ser esmagadoramente brancas? Por que razão havia dois Springboks de cor em 1984, sem qualquer investimento e, tantos anos depois, continua a haver apenas dois? Não é apenas uma razão de treinadores e selecionadores brancos ou racistas», escreveu Errol Tobias.

15 de Março, 2021

López Nieto. O árbitro que alterou o grupo do FC Porto

Rui Pedro Silva

López Nieto

Antonio López Nieto foi um árbitro espanhol e, como tantos outros na Península Ibérica, nunca foi bem visto por jogadores, treinadores, dirigentes e adeptos. O Barcelona de Cruijff queixou-se mais do que uma vez das suas decisões, mas faz parte do trabalho e o malaguenho nunca se deixou afetar muito.

O currículo de López Nieto é invejável. Arbitrou o Rep. Checa-Itália e o França-Holanda no Euro-1996, e o Camarões-Alemanha do Mundial-2002, num encontro em que estabeleceu um novo recorde ao mostrar 14 cartões amarelos e dois vermelhos. Nas competições de clubes da UEFA, esteve em três finais europeias, sempre na Taça UEFA: o Galatasaray-Arsenal de 2000, o Lazio-Inter de 1998 e a primeira mão do Parma-Juventus de 1995.

Durante os dez anos em que foi árbitro com as insígnias da FIFA, entre 1993 e 2003, López Nieto também ficou associado a dois jogos de equipas portuguesas: arbitrou o Boavista na Liga dos Campeões contra o Manchester United (2001/02) e o Sporting-Casino Salzburgo na Taça UEFA em 1993/1994.

Os grandes momentos e os grandes jogos sucederam-se ao longo da sua carreira mas nenhuma história ganhou tanto peso e é tão sinónimo de López Nieto como a polémica de 1995, associada a um jogo da fase de grupos da Liga dos Campeões entre o Dínamo Kiev e o Panathinaikos.

Vamos por partes. O Dínamo Kiev tinha atingido a fase de grupos depois de derrotar os dinamarqueses do Aalborg na pré-eliminatória. O árbitro checo Jiri Ulrich assinalou uma grande penalidade aos 81 minutos no jogo da primeira mão e Yevhen Pokhlebayev não vacilou. Na segunda mão, os dinamarqueses não conseguiram fazer a diferença a jogar em casa e quando Peter Rasmussen marcou aos 87 minutos, já o Dínamo Kiev tinha festejado três vezes: uma por Yuriy Kalitvintsev e duas por Andriy Shevchenko.

A equipa ucraniana avançou para a fase de grupos e ficou inserida no grupo A, com Panathinaikos, Nantes e FC Porto. Na primeira jornada, a 13 de setembro, os dragões empataram em França sem golos e o Dínamo Kiev recebeu e venceu o Panathinaikos por 1-0, num jogo arbitrado por, lá está, López Nieto.

Fim de história? Nem por isso. Aliás, isto foi apenas o começo. A história começou na véspera do jogo, quando López Nieto e a sua equipa de arbitragem aterrou em Kiev. Os espanhóis foram recebidos por dois dirigentes do Dínamo, como era comum naquela altura, e seguiram diretamente para uma loja com artigos tipicamente ucranianos. Depois seguiram para um armazém com casacos de pele e… estalou a polémica. O árbitro diz que a ida não foi solicitada e que os dirigentes lhe perguntaram se a mãe ainda estava viva, o clube diz que foi López Nieto a requisitar a compra, porque os casacos de pele eram mais baratos na Ucrânia do que em Espanha.

Horas mais tarde, no hotel, tocaram à porta do quarto de López Nieto e apareceram dois casacos de pele. Os dois assistentes e o quarto árbitro, situados em andares diferentes, também receberam um cada.

A oferta foi vista com estranheza e López Nieto decidiu esclarecer a situação. Os dois dirigentes, Igor Babichuck e Igor Sourkis, não reconheceram o que se tinha passado e levaram a equipa de arbitragem para a alegada sede, numa caserna no meio dos bosques, sem troféus nem o tipo de artigos que normalmente se associam a uma sede de um clube. Os diálogos estranhos reapareceram: depois da oferta de uma sauna, que López Nieto entendeu como uma oferta de cariz sexual, Babichuk, o vice-presidente do clube, passou um papel para as mãos do espanhol que tinha uma oferta de 30 mil dólares em caso de vitória do Dínamo no dia seguinte.

López Nieto deixou de ter dúvidas e, no regresso ao hotel, denunciou a oferta ao delegado na UEFA. Depois de falarem com o secretário-geral da UEFA, Gerd Aigner, López Nieto decidiu que estava em condições para arbitrar o jogo, já depois de devolver as ofertas aos responsáveis do Dínamo Kiev. Dentro de campo, a equipa ucraniana, com Shevchenko e Rebrov no onze, venceu por 1-0 mas o caso ainda ia correr muita tinta.

Dínamo-Panathinaikos

A Comissão de Controlo e Disciplina da UEFA reuniu-se na cidade do Porto uma semana depois e decidiu suspender o Dínamo Kiev de todas as competições europeias por dois anos e banir os dois dirigentes de qualquer cargo relacionado com futebol.

O Dínamo Kiev recorreu, acusou o árbitro de mentir e de se ter recusado a pagar o preço dos casacos de pele, mas não teve sucesso. O presidente da UEFA, Lennart Johansson, afirmou que o caso era «uma tragédia para o futebol» e considerou o castigo exemplar para dissuadir qualquer situação semelhante no futuro.

O Aalborg, como boa equipa dinamarquesa, beneficiou da sanção de outros e foi convidado a integrar o grupo do FC Porto. Apenas duas semanas depois do escândalo, estreou-se na fase de grupos ao perder nas Antas por 2-0, por culpa de um bis de Rui Barros. O Panathinaikos não saiu diretamente beneficiado da situação uma vez que voltou a perder o jogo da primeira jornada, na Dinamarca, por 2-1. Curiosamente, foi mesmo a única derrota dos gregos na fase de grupos.

O Panathinaikos apurou-se na primeira posição, com onze pontos, enquanto o Nantes seguiu no segundo lugar com nove. O FC Porto foi terceiro com sete e o Aalborg conseguiu a proeza de ser eliminado da mesma competição duas vezes no mesmo ano. Além da vitória na receção ao Panathinaikos só voltou a somar pontos na receção aos dragões. Emerson bisou para a equipa de Bobby Robson e garantiu um empate a dois golos.

O Dínamo Kiev nunca se conformou, queixou-se de a UEFA só ter querido acreditar na versão do árbitro, mas acabou por ver a sanção amenizada. Um ano depois, regressaram às competições europeias. Foram eliminados pelo Rapid Viena na pré-eliminatória da Liga dos Campeões com duas derrotas (2-0 na Áustria e 4-2 em Kiev) e não tiveram melhor sorte na Taça UEFA: eliminados pelos suíços do Neuchâtel Xamax (0-0 em casa, 1-2 fora) logo na primeira ronda.

14 de Março, 2021

Goran Ivanisevic. O wild card que venceu Wimbledon

Rui Pedro Silva

Goran Ivanisevic

O desporto está repleto de eternos segundos. No futebol germânico, o Leverkusen foi vice-campeão em 1997, 1999, 2000, 2002 e 2011, nunca conseguiu chegar ao título e ainda conseguiu perder uma final da Liga dos Campeões. No ciclismo, Portugal teve durante muitos anos um fantasma a pairar sobre Vítor Gamito. O atleta de Lisboa foi segundo da Volta a Portugal em 1993, 1994, 1996 e 1999, antes de vencer, finalmente, em 2000.

Goran Ivanisevic foi o Vítor Gamito de Wimbledon durante a década de 90. Estreou-se em grand slams na relva em 1988, no ano em que se tornou profissional, e mostrou sempre que essa era a sua superfície favorita, até pelas características que tinha como tenista: alto (1,93 metros) e com um serviço que fazia a diferença.

O Open da Austrália, Roland Garros e o US Open sempre foram patinhos-feios. Em Melbourne e em Paris não fez melhor do que chegar aos quartos de final em três edições e em Nova Iorque conseguiu atingir a meia-final em 1996. Mas foi mesmo na relva de Londres que as suas capacidades foram potenciadas e ameaçavam levar o croata a almejar algo mais.

Em 1992, no ano em que começou a representar oficialmente a Croácia, perdeu pela primeira vez na final, contra Andre Agassi no quinto set. «Estou feliz pelo Andre, porque ninguém esperava que pudesse vencer aqui. Mereceu realmente a vitória», afirmou Goran, na altura com 20 anos e longe de imaginar o calvário que teria pela frente.

Ivanisevic teve uma presença na final polémica. Foi acusado de insultar um juiz de linha, negando que lhe tenha chamado macaco, e queixou-se dos insultos em sérvio vindos das bancadas. Os 37 ases foram insuficientes para alcançar o triunfo mas valeram-lhe um telefonema de Franco Tudjman, o presidente croata, para congratular uma prestação que tinha incluído triunfos sobre Ivan Lendl, Stefan Edberg e Pete Sampras.

Ivanisevic após perder com Agassi

Dois anos depois, Ivanisevic regressou à final. Houve um reencontro com Pete Sampras mas, desta vez, o norte-americano não deu qualquer hipótese e venceu em três sets (7-6, 7-6 e 6-0). Mais uma vez, o discurso do tenista croata foi conformado: «Sampras jogou demasiado bem. É melhor jogador do que eu. Os seus serviços e todas as outras pancadas foram demolidoras. E isso fez toda a diferença».

Não há duas sem três e em 1998 a final voltou a contar com a presença de Goran Ivanisevic. E com a de Pete Sampras. A vitória na meia-final de 1992 era parte do passado e por esta altura o norte-americano já tinha quatro títulos em Wimbledon. E ia a caminho do quinto, após duas horas e 52 minutos que foram suficientes para levar a melhor sobre o croata em cinco sets.

Se em 1994 Sampras tinha sido demolidor, desta vez vacilou. Perdeu o primeiro set e no segundo esteve em desvantagem no tie-break, mas Ivanisevic não conseguiu concretizar. E pagou caro. «É o pior momento da minha vida, sinto-me muito mal. Vivi outros momentos maus mas não há nada que se possa comparar com isto. Será difícil voltar a motivar-me para jogar ténis. Hoje tive a minha grande oportunidade e… perdi», lamentou o croata.

Goran Ivanisevic estava a caminho dos 27 anos e a melhor fase da sua carreira parecia parte do passado. Nos onze grand slams seguintes, venceu apenas nove encontros, não passou da primeira ronda em quatro ocasiões e entrou em 2001 relegado para terceiro plano no panorama do ténis mundial. Falhou no qualifying do Open da Austrália e esteve ausente em Roland Garros. E só chegou a Wimbledon porque recebeu um wild card. Nesta altura era 125.º do ranking mundial.

Goran Ivanisevic estava numa fase muito difícil. Assombrado por uma lesão no ombro, tinha sentido demasiado as constantes derrotas em finais. Durante um torneio em 2000, no qual perdeu depois de ter danificado todas as raquetes que tinha disponíveis, Ivanisevic demonstrou que a dor era grande: «Quando deixar de jogar ténis, ao menos vão lembrar-se de mim por algum motivo. Dirão “Era o tipo que nunca ganhou Wimbledon… mas que destruiu todas as suas raquetes”».

Quando o quadro principal de 2001 começou, o tenista croata não era mais do que uma nota de rodapé. Roger Federer estava a dar os primeiros passos, era o 15.º cabeça-de-série e perdeu nos quartos-de-final. O top-10 tinha Pete Sampras, Andre Agassi, Patrick Rafter, Marat Safin, Lleyton Hewitt, Tim Henman, Yevgeny Kafelnikov, Juan Carlos Ferrero, Sébastien Grosjean e Thomas Enqvist. Apesar do passado, Ivanisevic estava longe de ser um candidato a qualquer coisa.

Ivanisevic ergueu-se do nada para vencer

Passo a passo, a história acabou por demonstrar algo diferente. Depois de derrotar o sueco Fredrick Jonsson, que vinha da qualificação, em três sets, Ivanisevic teve o primeiro teste de fogo, contra o espanhol Carlos Moya (21.º cabeça-de-série). Com 35 ases, o croata precisou de uma hora e 58 minutos para vencer em quatro sets. A lesão no ombro continuou a prejudicar o seu desempenho, mas foi insuficiente para que o espanhol pudesse fazer mais do que vencer o primeiro parcial com 10-8 no tie-break.

O norte-americano Andy Roddick caiu na terceira ronda em quatro sets e Greg Rusedski, britânico com o apoio local, foi eliminado em três sets. De repente, Goran Ivanisevic estava nos quartos de final de um grand slam pela primeira vez desde… 1998, ano da final de Wimbledon. E, tal como nessa altura, também não iria ficar por aqui. O russo Marat Safin foi afastado em quatro sets e na meia-final houve espaço para uma maratona frente a Tim Henman, na altura o grande ídolo dos ingleses que continuavam a desesperar por um campeão local. A ausência de Pete Sampras abriu caminho para um dos quatro resistentes procurarem a glória, mas o registo de Ivanisevic contra Henman era tudo menos animador: quatro jogos, quatro derrotas.

O jogo foi disputado em três dias. No primeiro, a vantagem foi de Henman. O britânico vencia 2-1 mas a chuva obrigou a decisão a ser adiada para o dia seguinte, já com o australiano Patrick Rafter a descansar e à espera de adversário. No segundo dia, sábado, a chuva não deu hipóteses. O jogo foi retomado com 2-1 para Henman no quarto set mas Goran Ivanisevic conseguiu recuperar e forçou o quinto set. Aí, com 3-2 para o croata e com Henman a servir… o jogo foi novamente adiado para o dia seguinte.

Foram precisos apenas 14 minutos no terceiro dia para Ivanisevic fixar o triunfo com parciais de 7-5, 6-7, 0-6, 7-6 e 6-3. «Se tivesse de jogar a final agora, acho que não ganharia mais do que três jogos de serviço. Deus enviou-me a chuva e salvou-me. Hoje foi um duelo de nervos, que nada teve a ver com ténis. Se esta noite for visitado por um anjo durante o sono e me disser que posso ganhar Wimbledon desde que não volte a pegar numa raquete de ténis, nem terei dúvidas», afirmou um exausto Ivanisevic.

Ivanisevic em lágrimas

A final disputou-se numa segunda-feira, 9 de julho. E houve espaço para mais uma maratona. Em cinco sets, Goran Ivanisevic venceu, com o público do lado dele, por 6-3, 3-6, 6-3, 2-6 e 9-7. Ali, à frente de toda a gente, o croata fizera história. Deixou de ser o eterno derrotado e tornou-se o primeiro wild card - e único até agora – a vencer um torneio do grand slam.

«Não me importa que não volte a jogar ténis. Vá para onde for, serei sempre campeão de Wimbledon. Ganhar aqui sempre foi um sonho da minha vida, não pode haver nada melhor do que isto», garantiu.

Goran Ivanisevic foi igual a si mesmo. Visivelmente afetado por problemas físicos, foi buscar forças à frustração das derrotas das edições anteriores e esteve sempre mais perto do triunfo do que Rafter, chegando mesmo a desperdiçar dois pontos de campeonato com duplas-faltas.

Ivanisevic tirou o peso das costas. Chorou de alegria, e de alívio, abraçou Rafter e festejou com as bancadas. Era finalmente campeão de um grand slam. E logo Wimbledon. O acordo que tinha feito para não voltar a pegar numa raquete foi recordado, embora não tenha sido levado à letra.

Aquele foi mesmo o último título da sua carreira. E o mais saboroso. Ivanisevic ainda participou em mais dois grand slams (Austrália-2002 e Wimbledon-2004), mas o seu propósito estava cumprido desde aquela segunda-feira de 2001. A Croácia tinha finalmente um campeão no ténis ao mais alto nível e a receção foi digna do feito: mais de 150 mil pessoas celebraram o regresso do tenista a Split. Foi merecido.

13 de Março, 2021

Nawal El Moutawakel. A inspiração feminina do Islão

Rui Pedro Silva

Nawal El Moutawakel

Como se traduz a grandeza de um feito desportivo? Em mais de 100 anos de Jogos Olímpicos, só para falar do evento mais global, não conseguimos resistir à imortalização de momentos como os triunfos de Jesse Owens na Alemanha de Hitler, o 10 de Nadia Comaneci ou os recordes de Michael Phelps e Usain Bolt.

Existem várias componentes. A dimensão do feito desportivo, o enquadramento histórico ou a superação de obstáculos durante uma vida difícil dão sempre bons filmes porque… são boas narrativas. Mas Nawal El Moutawakel não surge claramente em nenhuma destas métricas.

Sim, Nawal ganhou uma medalha de ouro nos 400 metros barreiras nos Jogos de Los Angeles, em 1984. Sim, Nawal tornou-se a primeira muçulmana, e primeira marroquina, a vencer um título olímpico. E sim, Nawal até tem uma história de vida interessante. Mas, apesar de tudo isso, estarei a dar um tiro muito ao lado quando escrevo que poucos de vocês, que estão a ler estas linhas, já tinham ouvido falar de Nawal El Moutawakel? Ou que a associam claramente a uma história olímpica importante?

Eu, ignorante, me confesso. Até há uma semana nunca tinha ouvido falar de Nawal El Moutawakel. Ao mesmo tempo é difícil ficar imune à dimensão do seu feito. E não apenas por ter sido a primeira muçulmana mas sim por tudo o que esse feito desencadeou. Quão importante será alguém para que baste o seu nome para enviar uma carta.

Este é o primeiro ponto: escrever «Nawal El Moutawakel, Marrocos» passou a ser suficiente para contactar a atleta. E depois, claro, o que surgiu do telefonema do Rei Hassan II, minutos depois do triunfo. «Ligou-me assim que cruzei a linha de meta. Levaram-me para uma sala especial e disseram-me que o rei estava ao telefone. Disse-me: “Estou tão orgulhoso por ti. O país inteiro está louco. Esta vitória deixou-nos todos muito felizes e orgulhosos”».

Os elogios não se ficaram por aqui. «Para celebrar, declarou que todas as raparigas nascidas naquele dia teriam de se chamar Nawal», continuou, admitindo que ficou sem palavras. «Não conseguia acreditar que ele estava acordado e a ver a prova. Era de madrugada em Marrocos.»

Caminho traumático até ao ouro

Nawal El Moutawakel

Nawal El Moutawakel não era uma figura de renome do atletismo mundial e estava longe de ser a favorita naquele 8 de agosto de 1984. Tinha dois campeonatos árabes e dois campeonatos africanos desde o início da década, não apenas nos 400 metros barreiras, mas no confronto contra as melhores do mundo não tinha brilhado.

A edição inaugural dos Mundiais de Atletismo, em Helsínquia, em 1983, mostrou que estava longe da elite. Não conseguiu passar das eliminatórias nos 100 metros barreiras e nos 400 metros barreiras não foi além das meias-finais, com o 12.º melhor tempo.

Os norte-americanos viram algo nela que gostaram. Nawal tinha 21 anos, vinha de uma família que promovia a igualdade, com educação semelhante entre irmãos rapazes e raparigas, e o convite para aceitar uma bolsa desportiva da Universidade de Iowa State foi inesperado.

«O meu pai praticava judo, a minha mãe voleibol e eu e os meus quatro irmãos e irmãs praticávamos atletismo», contou, concretizando a naturalidade com que a prática desportiva era vista no seio da família. Mas a surpresa do convite fez o pai hesitar, acabando por se decidir, seduzido pela possibilidade de a filha ter uma boa educação. Nawal fez as malas, seguiu para os Estados Unidos e o pai… morreu uma semana depois.

«Durante três meses ninguém me disse que ele tinha morrido. Sempre que pedia para falar com ele, diziam-me que estava ocupado ou que não queria falar comigo para garantir que eu me concentrava nos meus treinos. Quando descobri que tinha morrido, fiquei muito zangada», admitiu.

A presença nos Jogos Olímpicos em Los Angeles surgiu menos de um ano após a morte do pai. Motivada e com um treino mais adequado, passou dos 57.10 segundos de Helsínquia para os 54.61 em Los Angeles. Foi beneficiada, é certo, pela ausência das primeiras cinco classificadas dos Mundiais (as duas soviéticas e as três alemãs orientais falharam a competição devido ao boicote de leste), mas isso passou a ser apenas uma nota de rodapé.

Não era favorita mas terminou com mais de meio segundo de vantagem sobre a norte-americana Judi Brown e sobre a romena Cristieana Cojocaru. O hino marroquino soou pela primeira vez – três dias depois, Saïd Aouita conquistou o primeiro lugar nos 5000 metros – e a população entrou em delírio. Pelo inédito da situação. Por ser marroquina. Por ser uma mulher.

«As mulheres começaram a escrever-me a agradecer pelo que tinha feito por elas através do desporto. Mulheres com e sem véu diziam-me que as tinha libertado», recordou.

Nawal El Moutawakel não virou as costas à responsabilidade e tornou-se uma figura importante em Marrocos. Em 1993 foi responsável pela criação de uma corrida de cinco quilómetros para mulheres que recebe anualmente cerca de 30 mil mulheres. «Quis que pudessem sentir o poder do desporto juntas. É como uma pequena revolução. Acredito fortemente que o desporto pode influenciar uma vida para sempre. A minha vida pode ser dividida num antes e num desporto da minha medalha de ouro. Aqueles 54.61 segundos mudaram totalmente a minha vida», afirmou.

O Rei Hassan II também voltou a cruzar-se na sua vida. Em 1997 foi convidada para o cargo de Secretária de Estado do Ministro dos Assuntos Sociais, com a pasta da Juventude e do Desporto mas só durou até março de 1998. Quase uma década depois, assumiu durante dois anos a posição de Ministra da Juventude e do Desporto. Pelo meio, também assumiu posições na Federação Internacional do Atletismo e no Comité Olímpico Internacional.

Nawal El Moutawakel precisou «apenas» de correr 400 metros para ser uma pioneira de corpo e alma. Pode não ser reconhecida como Jesse Owens, Nadia Comaneci, Michael Phelps ou Usain Bolt, mas não deixou de afetar – melhorando – muitas vidas. Uma de cada vez.

12 de Março, 2021

Richardson. A família que dominou o curling mundial

Rui Pedro Silva

 

Ernie, Arnold, Sam e Wes

Há uma explicação para tudo. Às vezes, visto de fora, pode haver inspirações difíceis de conceber, competições que não fazem sentido aos nossos olhos ou desportos que parecem roçar por pouco a linha que separa o aceitável do ridículo.

A tendência demonstra que somos mais propensos a recusar algo que está fora da nossa zona de conforto. Por isso, não é de espantar que nos países de temperaturas mais quentes, o curling surja sempre como um patinho-feio. Não é apenas por ser um desporto de inverno, é por ser o curling.

Talvez seja um dos desportos de inverno mais famosos. Mesmo que não tenham visto, todas as pessoas já devem ter ouvido falar, feito ou lido uma piada. Limpeza de casa, esfregar o chão, utilizar vassouras são apenas algumas das frases mais usadas quando se fala de curling. E, ainda assim, talvez da mesma forma que os canadianos olham para o hóquei em patins com tanto desdém, em comparação com o hóquei em gelo, os portugueses têm tendência a ver o curling como uma piada.

O contexto é muito importante. E é tudo para perceber como a família Richardson se tornou a maior potência do curling mundial no final da década de 60 e no início de 50. É tudo uma questão de inspiração.

Os quatro Richardson não eram propriamente jovens no início desta história, em 1955. Arnold era o mais velho e já tinha 26 anos, Wes tinha 24, Ernie 23 e Sam 21. Mas os tempos eram outros e todos marcaram presença no grande evento da cidade de Regina, na região de Saskatchewan: a final nacional de curling.

A cidade parou e a região acabou em festa. Era a segunda vez que organizava o torneio final mas, pela primeira vez, o título ficou em casa. Os vencedores foram os irmãos Campbell (Garnet, Don, Glen e Lloyd).

Aquela festa, aquela euforia e os quatro irmãos serviram como um momento eureka para os quatro Richardson. Os Richardson não eram todos irmãos mas vinham todos da mesma família: Ernie e Sam eram irmãos, sim, mas Arnold e Wes eram «apenas» primos. E, todos juntos, estavam a caminho de fazer história na modalidade.

Ernie Richardson é a figura nuclear desta história: começou a praticar em 1953 e assumiu-se como o capitão de uma equipa que se reforçou com Sam e Arnold logo em 1956, a seguir ao título dos Campbell, e de Wes em 1958.

Os resultados foram imediatos e 1959 foi um ano de sonho. Venceram o título regional e no Quebeque tornaram-se a equipa mais jovem de sempre a conquistar o campeonato nacional, numa prova em que surgiram como perfeitos desconhecidos. Mais tarde, Ernie assumiu que esta vitória foi a mais emocionante da sua carreira exatamente por isso: era tudo novo, não conheciam ninguém e foram avançando vencendo tudo o que havia para vencer.

O título mundial foi a cereja no topo do bolo em 1959. Contra a Escócia, num desafio que envolveu apenas os dois países mas que é hoje considerado como o primeiro Mundial da história, a família Richardson não teve contemplações e venceu todos os cinco jogos contra o representante escocês.

A supremacia «richardsoniana» manteve-se em 1960, novamente com domínio absoluto a nível regional, nacional e internacional (ainda só com a Escócia), mas em 1961 surgiu um momento para esquecer: a derrota contra a equipa de Alberta. A família demonstrou que foi apenas um grão de areia na engrenagem e voltou ao seu melhor em 1962.

Regresso à supremacia

Por esta altura, o Mundial já tinha quatro equipas, com a entrada dos Estados Unidos e da Suécia. O aumento da concorrência não afetou o domínio da equipa de Ernie Richardson: seis jogos, seis vitórias. O estilo de jogo dos Richardson aliava a contundência com a perícia, a inteligência com a sagacidade e não parecia dar qualquer hipótese à concorrência.

A competição em 1963, novamente com um domínio quase absoluto, com a exceção para uma derrota no Mundial com os Estados Unidos, teve um pequeno asterisco: Wes Richardson estava a enfrentar uma lesão nas costas e foi substituído por Mel Perry.

Foi com Mel Perry que a equipa fez história e se tornou a primeira e única até agora a vencer quatro títulos mundiais. Depois, como em tudo na vida, começou o período de decadência. Não voltaram a vencer o título canadiano, mas perderam a edição de 1964, terminando na segunda posição, atrás da equipa de British Columbia.

O período áureo já tinha passado e 1968, com a derrota na final regional, marcou o adeus à competição dos Richardson enquanto equipa. O domínio foi histórico e isso mesmo foi reconhecido quando se tornaram a primeira equipa de curling a entrar na Hall of Fame do desporto canadiano.

Depois, cada um à sua maneira, seguiram rumos diferentes. Ernie Richardson, considerado «O Rei», escreveu vários livros sobre a modalidade, foi uma personalidade decisiva na evolução do desporto e em 1978 foi distinguido com a Ordem do Canadá. Arnold desligou-se completamente da modalidade, mas Sam Richardson venceu a final regional na variante mista em 1973. Já Wes Richardson foi viver para o Havai e dedicou-se ao ciclismo e às maratonas. Estava farto do gelo.

A região de Saskatchewan nunca voltou a ser tão dominadora e tem apenas sete títulos na história: o de 1955, com os Richardson a assistir, os de 1959, 1960, 1962 e 1963, com os Richardson a competir, e depois os de 1973 e 1980. A edição deste ano está a decorrer e termina no próximo domingo, 14 de março.

11 de Março, 2021

Henri Cornet. O homem que venceu o Tour no quinto lugar

Rui Pedro Silva

Henri Cornet

O que têm em comum Lance Armstrong, Floyd Landis e Alberto Contador? Os três ciclistas, dois norte-americanos e um espanhol, chegaram a ser declarados como vencedores do Tour para, anos mais tarde, devido a controlos positivos a doping, perderem a vitória.

Henri Cornet está no extremo oposto. Praticamente um século antes, em 1904, terminou no quinto lugar e, praticamente cinco meses depois, foi declarado como vencedor. Porquê? Bom, querem a versão curta ou a versão longa?

Vamos pela versão intermédia. Esperámos uns minutos por respostas enquanto escrevíamos o texto mas, provavelmente por não o estarem a ler em direto, não tiveram oportunidade de se manifestar e ter uma palavra a dizer nos parágrafos que se seguem.

O Tour estava na segunda edição. Maurice Garin tinha dominado a edição de 1903 do início ao fim e voltava a ser o grande favorito a chegar a Paris na primeira posição. O formato da competição era idêntico ao da estreia e as seis etapas estavam distribuídas entre 2 e 24 de julho.

Talvez seja estranho perceber, tendo em conta o ciclismo moderno, mas houve sempre pelo menos dois dias de descanso entre aventuras, o que se percebe perfeitamente tendo em conta que a etapa mais curta tinha 268 quilómetros, havia três acima dos 400 quilómetros e a mais longa atingia mesmo os 471. Sem esquecer as etapas que começavam à meia-noite.

Dificuldades do início ao fim

Os problemas começaram a surgir logo na primeira etapa. Além de várias quedas feias, o campeão em título Maurice Garin e Lucien Pothier foram atacados por quatro homens de máscara que saíram de um carro. Os dois resistiram, conseguiram terminar a etapa e a vitória foi mesmo para Garin, no final de 467 quilómetros.

«Se não for assassinado antes de chegarmos a Paris, vou vencer o Tour outra vez», disse Garin, ignorando que os maiores problemas – vá, talvez nada tão agressivo como um assassinato – ainda estavam para chegar.

As penalizações também começaram a surgir: havia quem tivesse ciclistas não inscritos a ajudar a marcar ritmo e quem aproveitasse a presença de um carro para ter condições favoráveis no percurso. Pierre Chevalier foi terceiro classificado na etapa acabou desqualificado por ter passado 45 minutos do percurso a descansar dentro de um carro. Já Ferdinand Payan (decorem este nome) foi desqualificado depois de suspeitas de ter tido o auxílio de um motor.

O vencedor da etapa, Maurice Garin, também quebrou as regras. Durante a etapa, e apesar de ser proibido, pediu a comida a um oficia de corrida que, mesmo sabendo que estava a cometer uma ilegalidade, acedeu à requisição com receio de que o principal ciclista do pelotão pudesse desistir.

Na segunda etapa, disputada sete dias depois, começaram as insurreições populares. Alfred Fauré decidiu atacar para passar próxima da sua cidade-natal no primeiro lugar e viu os seus conterrâneos bloquearem a estrada para que todos os outros ciclistas ficassem para trás. No meio da confusão, Garin sofreu uma lesão na mão, Giovanni Gerbi ficou inconsciente, houve vários ciclistas com dedos partidos e a situação só ficou resolvida depois de terem sido disparados tiros para o ar.

Obstáculos sem descanso

Quando o pior já tinha passado, aparentemente, os ciclistas ainda tiveram de atravessar uma estrada repleta de pregos e vidros partidos. O caos acabou por não beneficiar Fauré, no final de 374 quilómetros, e a confusão à chegada, num dia ganho por Hippolyte Aucouturier, foi tanta que os tempos finais não foram mais do que uma estimativa.

A terceira etapa, de 424 quilómetros, entre Marselha e Toulouse, passava pela terra de Payan (lembram-se dele?). O francês insistiu em participar na etapa, nem que fosse apenas naquele dia, mas não teve autorização. Os habitantes estavam furiosos com a desqualificação e atiraram pedras ao pelotão e impediram a passagem na estrada. Déjà-vu?

Depois de um descanso, finalmente, na quarta etapa, os problemas regressaram na quinta e penúltima. Henri Cornet furou os dois pneus mas não teve direito a assistência mecânica, acabando forçado a disputar os últimos 35 quilómetros em circunstâncias pouco amigáveis.

Maurice Garin entrou na última etapa na liderança, com 28 segundos de vantagem sobre Lucien Pothier, e com a possibilidade de repetir o feito de 1903: ser o primeiro do início ao fim da prova.

E foi isso mesmo que aconteceu. O balanço final destacava ainda as quatro vitórias de etapa de  Hippolyte Aucouturier, que terminara na quarta posição da geral. A corrida garantiu a desqualificação de nove ciclistas no total, desde a utilização de motores, aproveitamento de carros e até a utilização de comboios.

O último a rir...

Os organizadores foram para casa com a sensação de trabalho bem feito mas a União Velocipédica Francesa não foi indiferente aos protestos de vários ciclistas e iniciou uma investigação.

Em dezembro de 1904, desqualificou todos os vencedores das etapas e os quatro primeiros da geral. Maurice Garin foi banido por dois anos e perdeu o título e as penalizações a Hippolyte Aucouturier garantiram que o triunfo «póstumo» da segunda etapa tenha sido mesmo atribuído a Alfred Fauré.

Henri Cornet beneficiou no meio do caos. O jovem – tinha terminado o Tour com 19 anos mas a vitória só lhe foi atribuída já com 20 – resistiu à polémica mas também foi alvo de um aviso oficial, depois de ter aproveitado a «boleia» de um carro durante alguns quilómetros. O francês de Pas-de-Calais entrou na história mas o seu sucesso foi fugaz, não voltando a ter um desempenho relevante nos anos seguintes.

O organizador Henri Desgrange ficou desgostoso com o que se tinha passado. Sentiu que a cegueira competitiva tinha levado a melhor sobre o espírito desportivo e não gostou de ter visto a prova envolta em ataques de populares e com os ciclistas a recorrerem a todos os estratagemas para ganharem vantagem.

«O Tour de France terminou e receio que a segunda edição tenha sido a última. Chegámos ao fim e estamos enojados, frustrados e desanimados», lamentou. Mais tarde, repensou e teve uma declaração pouco profética: «Temos de continuar esta grande cruzada moral para limpar o ciclismo, e isso é algo que apenas o Tour conseguirá alcançar».

10 de Março, 2021

Alain Sutter. O suíço que não quis ser neutro e atacou Chirac

Rui Pedro Silva

Protesto em Gotemburgo

O Mundial-1994 apresentou Alain Sutter ao mundo. O futebolista helvético fazia parte das opções de Roy Hodgson e, apesar de não ter o mesmo impacto de nomes como Ciriaco Sforza e Stéphane Chapuisat, tornou-se uma das figuras mais entusiasmantes.

Os longos cabelos louros eram um ponto de atração óbvia mas o desempenho no relvado também despertou atenções. Foi dele o primeiro golo da goleada à Roménia (4-1) e saíram das suas ações algumas das jogadas individuais mais impressionantes.

A Europa do futebol estava atenta e foi sem surpresa que, semanas depois, já tinha o equipamento de treino noutro balneário. O Bayern Munique entrou em ação e contratou-o ao Nuremberga. Sutter nunca conseguiu confirmar o que se esperava dele. Esteve apenas uma temporada em Munique, jogou dois anos no Friburgo e terminou a carreira em 1998, ao serviço de uma equipa norte-americana chamada Dallas Burn.

Alain Sutter no Bayern Munique

O Mundial-1994 foi a única grande prova em que participou, apesar de ter contribuído para a qualificação rumo ao Euro-1996, em Inglaterra. Foi também durante essa etapa que proporcionou um dos momentos mais marcantes da sua carreira. No relvado, sim, mas por algo que se passava noutro tabuleiro.

Falamos de Gotemburgo, 6 de setembro de 1995. A Suécia estava obrigada a vencer a Suíça para evitar a eliminação enquanto os helvéticos, ainda com Roy Hodgson, pareciam cada vez mais próximos de garantir o passaporte para o berço do futebol.

A grande notícia da semana era outra: os testes nucleares que os franceses tinham feito no Pacífico, no Atol Mururoa. Na véspera, tinha-se realizado o primeiro de dois testes nucleares decididos pelo presidente Jacques Chirac. A decisão provocou um tsunami de protestos um pouco por todo o mundo e o avançado não foi exceção.

Sutter não quis ser o típico suíço, neutro. E decidiu agir. «Nunca fui uma pessoa política, embora muita gente ache que sim. Deve ter sido por causa dos cabelos compridos. Mas sempre acreditei no certo e no errado. A 5 de setembro de 1995, foi a bomba atómica que o presidente francês Jacques Chirac decidiu detonar no Atol Mururoa. Como é que uma pessoa se consegue sentir no direito de provocar tanta destruição?»

Atol Mururoa

O testemunho de Alain Sutter foi publicado em 2010, na revista «11 Freunde». Os detalhes continuam. A comitiva suíça estava em Gotemburgo e tomou conhecimento do que tinha acontecido ao ler os jornais ao pequeno-almoço.

«Um assunto deste género afeta toda a gente e os futebolistas não são exceção. Sei que há muitos preconceitos contra os futebolistas profissionais mas em toda a minha carreira nunca conheci um jogador que não tivesse uma palavra a dizer sobre tópicos que afetam o planeta», escreveu.

A equipa decidiu agir e Sutter descreve apenas que, sem saber como, apareceu um lençol com a inscrição «Stop It Chirac» pintada a spray. «Levei-o comigo para o campo e quando as primeiras notas do hino nacional foram ouvidas, eu e os meus companheiros abrimos o lençol. Foi uma ação espontânea e conjunta, nunca teria feito algo assim sozinho na minha vida», acrescentou.

O protesto teve repercussões imediatas e Alain Sutter foi visto como o cabecilha da ideia. À chegada à Suíça, Sutter defendeu-se: «Não se tratou de política. Foi para expressar o que pensamos e sentimos. Não é uma questão política, é sobre direitos humanos».

O presidente da Federação Suíça de Futebol, Marcel Mathier, não conseguiu esconder a irritação: «Não se pode abusar do desporto para fazer política. Todos os atletas têm o direito de pensar o que quiserem, mas não podemos abusar da hospitalidade de um país para fazer política».

João Havelange, o brasileiro que era presidente da FIFA, admitiu o «respeito pelas opiniões de cada pessoa» mas garantiu que não estava disposto a autorizar que o futebol fosse aproveitado por fins políticos. «Nem a UEFA nem a FIFA vão permitir isso», disse.

A federação suíça arriscou uma sanção mas, um pouco por toda a Europa, foram chegando apoios ao protesto. Jürgen Klinsmann, colega de Sutter no Bayern Munique, disse que qualquer castigo seria pouco razoável e desafiou os outros clubes da Bundesliga a juntarem-se à iniciativa dos clubes italianos para protestar contra os testes nucleares.

Golo à Roménia em 1994

O treinador de Sutter no Bayern Munique, Otto Rehhagel também teve uma reação curiosa quando o jogador regressou à Alemanha: «Disse-me que não tinha ficado surpreendido por este protesto acontecer numa equipa onde eu jogava».

«Mais tarde, a UEFA emitiu uma proibição de manifestações políticas em estádios de futebol. Não tenho problemas com isso, acho que a política não deve abusar do futebol. Mas ações espontâneas continuam a fazer parte da vida, para mim. Enriquece-nos muito os dias», contou.

A viagem à Suécia foi uma das últimas internacionalizações de Sutter. A Suíça garantiu o apuramento para o Euro-1996 mas, no momento das decisões, o avançado ficou de fora das opções de Artur Jorge e provocou uma onda de revolta popular. «Não dava para convocar toda a gente. Eu era o treinador e tinha de tomar uma decisão. Nem todos estavam de acordo, mas isso é normal», contou em entrevista ano depois.

Não demorou muito até imprensa e adeptos relacionarem os dois eventos. Em setembro de 2018, Sutter descartou essa possibilidade: «É pura especulação que não me tenha convocado porque eu tinha protestado publicamente contra os testes nucleares do presidente francês Jacques Chirac. Ele não era o selecionador nacional na altura».

De facto, Artur Jorge só chegou à seleção em dezembro de 1995. Alain Sutter chegou a ser chamado para alguns compromissos e não foi o único destaque a ficar de fora, uma vez que Adrian Knup, outro dos titulares de 1994, também não fora convocado.

09 de Março, 2021

Frazier vs. Ali. Muito mais do que um combate do século

Rui Pedro Silva

Ali vs. Frazier

Segunda-feira, 8 de março de 1971 no Madison Square Garden. O mundo parou (e o exagero nem é assim tão grande) para ver o combate do século. Um combate do século, vá, que os aficionados do pugilismo não são de meias medidas na altura de engrandecer as perspetivas de um duelo.

Mas este era especial. Pela primeira vez na história, dois pesos pesados iam discutir o título na condição de imbatíveis. De um lado estava Joe Frazier, com 27 anos, detentor do cinturão e com um registo de 26 vitórias consecutivas, com 23 knockouts, desde que tinha abraçado o profissionalismo após a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. Do outro, estava Muhammad Ali, 29 anos, com 31 triunfos seguidos, com 25 knockouts, e o título em Roma-1960 para amostra.

O contexto desportivo seria suficiente para atrair a atenções de milhões de pessoas mas o enquadramento deste combate promoveu muito mais do que a luta por um estatuto. Muhammad Ali, que nesta altura já se recusava a responder pelo nome de Cassius Clay, tinha-se tornado uma figura polarizadora nos EUA, muito amado por uns e ainda mais odiado por outros. Joe Frazier, em muitas coisas, servia de contraponto.

A música de Rui Veloso faria pouco sentido neste duelo onde Frank Sinatra marcou presença como fotógrafo da revista Time. Era muito mais aquilo que os separava do que o que os uniam. Sim, tinham crescido e sobrevivido a um contexto de pobreza, eram afro-americanos, tinham enveredado pelo boxe e eram invencíveis. Mas as semelhanças terminavam aí.

Muhammad Ali era cáustico. Muçulmano. Defensor de causas sociais, figura da luta pela igualdade nos direitos cívicos e humanos e objetor de consciência. Tinha recusado o recrutamento para a Guerra do Vietname e não foi preciso muito até se tornar uma das vozes mais críticas perante o extremar do conflito.

Joe Frazier era cauteloso. Ponderado. Não exagerava, não tinha uma postura aberta, não transmitia opiniões sobre temas fraturantes. Não era necessariamente pró-guerra, mas tinha sido adotado por esse lóbi como figura de contrapeso às declarações de Ali. E tinha escapado à guerra por ser casado e com filhos.

A Guerra do Vietname estava a caminho da sua derradeira fase mas continuava a ser um ponto de grande debate. E o título mundial de pesos pesados estava associado diretamente à guerra. Apesar de Joe Frazier ostentar oficialmente o cinturão, Muhammad Ali não tinha chegado a perder qualquer combate desde que derrotou Sonny Liston em Miami, em 1964. Tinha «perdido» na burocracia, ao ser suspenso devido à sua posição perante o conflito na Indochina.

Ali era contra o Vietname

Depois de ter participado apenas em dois combates entre 1967 e 1971, Muhammad Ali era um homem à procura de vingança. A perspetiva de um combate entre estes dois pesos pesados ganhou um efeito simbólico incontrolável. Os bilhetes esgotaram no dia em que foram postos à venda, por valores a rondar os 150 dólares (equivalentes a cerca de 1000 em 2021), e foram trocados no mercado negro acima dos 600 dólares. Mais de 72 países adquiriram diretos de transmissão e um total superior a 400 salas de cinema na América do Norte, entre Estados Unidos e Canadá, retransmitiram o combate.

O dinheiro em cima da mesa também era inigualável. Cada pugilista recebeu 2,5 milhões de dólares à cabeça e o valor da lotação, superior a 20 mil pessoas, rendeu um milhão e meio. Mas apesar de tudo, do dinheiro e da simbologia, continuava a ser um combate de orgulho.

«Sou melhor no contra-ataque do que o Jack Johnson, mais rápido do que o Joe Louis, sou mais forte do que o Rocky Marciano e tenho melhores golpes do que o Jack Dempsey. O Frazier é um usurpador e vou oferecer-lhe, por etapas, uma viagem ao inferno», garantia Muhammad Ali, no seu estilo inconfundível.

Ali ia mais longe e até dizia como ia vencer: «Na primeira parte do combate, vou limitar-me a bailar à volta dele. Depois tenho uma surpresa reservada para limpar o ringue com os seus calções». O pré-combate tornara-se uma das especialidades de Ali e nem os antigos campeões, sobretudo os que atribuíam o favoritismo a Frazier, como Jack Dempsey e Joe Louis foram poupados: «Vivem na ignorância. Não sou apenas um pugilista – o melhor deles – mas também um representante dos povos oprimidos do mundo inteiro. E assim não há como perder».

Joe Frazier era mais moderado mas não fugia às provocações: «Assim que começar o combate vou tratar o meu rival pelo seu nome: Clay. Vai ficar furioso porque não suporta que lhe chamem outra coisa que não Muhammad Ali. Vai ficar tão nervoso que nem vai ver chegar o soco com que o vou pôr a dormir».

Frazier deixou Ali duas vezes no chão

Ali e Frazier tiveram mais olhos que barriga. Ali prometia pôr-se de joelhos e arrastar-se pelo ringue a dizer que Frazier era o melhor se fosse derrotado mas garantia que não havia milagres no boxe. E, na verdade, Ali esteve mesmo no chão duas vezes, uma no 11.º assalto, outra no 15.º e derradeiro.

Não houve knockout. Joe Frazier mostrou estar mais fresco e mais bem preparado mas o triunfo só chegou após a votação unânime dos três juízes do duelo. A imprensa internacional, fortemente representada no Madison Square Garden, não poupou Muhammad Ali. Uma das agências de notícias escreveu que «o objetor de consciência já não é o que era, nem por sombras». «É uma caricatura daquele outro pugilista que dominava o ringue, tinha grandes golpes, um excelente jogo de pernas e reações fulminantes», continuava.

A conferência de imprensa após o combate não teve o que se esperava. Muhammad Ali falhou o momento devido a uma suspeita de fratura do maxilar, não confirmada, que o levou para o hospital. Assim, apenas Joe Frazier pôde falar aos jornalistas mais a frio.

«Ali chamou-me de preto e disse que me ia matar», queixou-se Frazier, apesar de garantir que desculpava Ali por tudo o que tinha dito antes do combate. «Subestimou-me. Devia estar louco para ir para as cordas e esperar os meus ataques. Não deixei que o Clay impusesse a sua distância. Ele é um pugilista clássico, académico, um pugilista tão contundente quanto preciosista. Por que haver de deixar que fizesse o que queria? Quando um profissional sobe ao ringue, é para fazer o que tem de fazer, não o que o adversário quer nem o que os espetadores esperam. Por isso fiz o meu combate, atacando-o desde o primeiro momento. E aí todos sabemos que o Clay esteve muitos meses parado, seria um grande desafio físico para ele. Não lhe podia dar um momento para respirar, eu estava muito bem preparado», disse.

Ali não esteve na conferência de imprensa mas, instantes após o combate, prestou declarações ao canal de televisão que transmitiu o combate. «Não tenho muito a dizer. O Frazier é um grande campeão e demonstrou-o durante todo o combate. Ninguém a não ser ele teria conseguido resistir ao conjunto de socos que dei durante os 15 assaltos», admitiu.

A derrota marcou Muhammad Ali. Caiu do seu pedestal, deixou de ser invencível, percebeu que não podia subestimar Joe Frazier nem voltar a entrar num ringue sem estar em perfeitas condições físicas. A desforra, pedida desde o primeiro momento, haveria de chegar. E aí, já acima dos 30 anos, venceu mesmo. Primeiro em 1974 e, finalmente, em 1975, no terceiro e derradeiro duelo entre os dois, disputado nas Filipinas e timbrado com o nome «Thrilla in Manila». Por esta altura, porém, o duelo já não provocava sensações tão extremadas. O conflito do Vietname estava no fim e Ali era cada vez mais reconhecido como uma figura importante, um herói, e não tanto como um transgressor sem um pingo de patriotismo.

08 de Março, 2021

Rangers. O título do helicóptero

Rui Pedro Silva

Rangers em festa

A fação protestante de Glasgow está em festa depois de o Rangers ter reconquistado o título de campeão da Escócia depois de um hiato de nove temporadas que incluiu uma falência, a descida ao inferno e um regresso gradual à elite.

Os vinte pontos de vantagem sobre o Celtic não deixam dúvidas. Apesar de faltarem ainda seis jogos para o final da temporada, a equipa de Steven Gerrard conseguiu, provavelmente, o título mais saboroso do século. Não apenas por ter assinalado o primeiro depois de bater no fundo do poço, mas também por ter posto termo a uma série de nove títulos consecutivos da equipa verde e branca.

O fantasma do decacampeonato continua a assombrar os dois rivais da capital escocesa – foi a terceira vez na história que uma série terminou em nove. O Celtic foi o primeiro a passar por isso, entre as décadas de 60 e 70. A equipa associada ao treinador Jock Stein era imbatível na Escócia e até conseguiu conquistar a Taça dos Campeões Europeus em 1967. Mas em 1975 viu o Rangers quebrar a série de triunfos consecutivos.

A vingança chegou em 1998. Alcançar o decacampeonato era uma obsessão no Ibrox Stadium mas o Celtic desforrou-se do Rangers. E agora, em 2021, foi a vez de o Rangers voltar a devolver a gracinha.

O título foi saboroso. Por todas as razões e mais algumas. E apesar de nunca ninguém se queixar ao conseguir um campeonato demasiado cedo, não há dúvida de que não existe o mesmo dramatismo de um título conseguido ao soar da buzina quando ninguém – sobretudo quem manda – acredita que ainda é possível.

Foi o que aconteceu a 21 de maio de 2005. A história explica-se em poucas frases mas merece uma atenção mais cuidada. À partida para o derradeiro jogo, o Celtic liderava com dois pontos de vantagem sobre o Rangers e tinha vantagem no confronto direto. O primeiro classificado disputava o último jogo no terreno do Motherwell, enquanto o Rangers viajava até Edimburgo para defrontar o Hibernian.

As contas estavam contra o Rangers e o desenrolar dos dois encontros não chegou para mudar opiniões. Nacho Novo marcou o golo do Rangers, o único desse encontro, aos 59 minutos, mas a equipa não dependia apenas de si.

O Motherwell não estava a conseguir ajudar o Rangers. O Celtic chegou à vantagem aos 29 minutos por intermédio de Chris Sutton e o jogo, arbitrado pelo polémico Hugh Dallas (figura que teve uma noite para esquecer num Bayern-FC Porto em 2000), parecia encaminhar-se para o fim sem grande réplica da equipa visitada.

A tradição entrou em jogo e os responsáveis da liga escocesa tiveram de tomar uma decisão. Um helicóptero reservado para o efeito estava à espera desde o início da tarde para saber onde iria entregar o troféu. O objetivo era chegar tão cedo quanto possível e foi sem surpresa que começou viagem a caminho do Fir Park.

A dimensão do país e o contexto da última jornada ajudava à logística. Entre o Fir Park em Motherwell, não muito longe de Glasgow, e o Easter Road, em Edimburgo, há menos de 60 quilómetros. A viagem nunca seria longa, mas ninguém esperava uma inversão de sentido em cima da hora.

Scott McDonald foi o carrasco do Celtic

A culpa foi de Scott McDonald, avançado do Motherwell, que bisou com golos aos 88 e 90 minutos quando o barulho das hélices já se ouvia ao longe. Quando ninguém esperava, o título ia, afinal, para o Rangers. Os jogadores do Celtic limitaram-se a ver o troféu escapar por entre os dedos.

O herói dos adeptos do Rangers garante que nunca esquecerá esse dia. Mas não pelos motivos que se possa pensar. «Fiquei em choque depois do jogo. Achei que ia ser linchado. Lembro-me de ter ficado sentado em lágrimas», recordou o australiano, que cresceu como adepto do Celtic.

«Foi uma loucura. O meu avô estava num bar de adeptos do Celtic em Melbourne, no meio da madrugada, e teve de sair com proteção depois do jogo. O meu sogro esteve uma semana sem conseguir olhar para mim», contou.

Uma grande curiosidade é que, cerca de dois anos depois, McDonald cumpriu um sonho de infância e foi contratado pelo Celtic, já depois de uma proposta do Rangers ter sido recusada. Entre 2007 e 2010, McDonald teve oportunidade de marcar um golo a cada dois jogos (64 em 128), conquistando o campeonato na temporada de estreia.

Mas era impossível esquecer 2005. Naquela tarde, as palavras tinham desaparecido. «Ninguém conseguiu dizer nada no balneário», confessou Craig Beattie, que entrou pelo Celtic a quinze minutos do fim. «O Martin O’Neill esteve sentado no chão durante 20 ou 25 minutos e não disse uma única palavra. Estava toda a gente a olhar para o chão. É raro vermos um treinador sem palavras», acrescentou.

O ambiente no outro estádio foi o oposto. Vencedores e derrotados estavam em festa. Adeptos e jogadores do Rangers exultaram com as notícias que chegaram de Motherwell e festejaram um título que chegaram a dar como perdido, uma vez que os golos só surgiram já depois do apito final em Edimburgo. Apesar da derrota, o Hibernian também assinalou aquela tarde com carinho, uma vez que conseguiu garantir um lugar nas competições europeias, terminando na terceira posição a 31 pontos do Celtic e a 32 do Rangers.

A competitividade nunca foi uma grande palavra para descrever o futebol escocês, como se explica pelas três possibilidades de decampeonatos em menos de 50 anos, mas dificilmente terá havido um título mais disputado até ao último segundo do que este.

07 de Março, 2021

Rusty Kanokogi. Fingir ser homem para ganhar no judo

Rui Pedro Silva

Rusty Kanokogi

Nova Iorque, 1959. O torneio local de judo organizado pela YMCA está prestes a chegar ao fim e o vencedor da prova por equipas está decidido mas ainda falta um combate. Um dos judocas da equipa ganhadora tem um problema físico e o treinador pressente a oportunidade perfeita para lançar Rusty Kanokogi, então com 24 anos.

Está com o cabelo curto e as formas femininas estão tão bem disfarçadas quanto possível. O objetivo é competir sem dar muito nas vistas e, também por isso, o treinador pede-lhe para ser discreta, diz-lhe que um empate é suficiente. «Mas assim que consegui a primeira pega e percebi que conseguia tentar alguma coisa dali, não resisti e correu-me bem», recordou muitos anos depois.

A cerimónia de entrega das medalhas foi fatal. Um dos organizadores perguntou-lhe diretamente se era uma mulher e Rusty não mentiu. «Ainda bem que não o fiz. Se tivesse mentido, acho que o judo feminino não teria chegado aos Jogos Olimpicos. Aquele momento fez-me sentir que uma mulher não poderia ter de voltar a passar por aquilo», explicou.

Rusty Kanokogi nasceu Rena Glickman em 1935. Habituada a vaguear pelas ruas de Brooklyn, nomeadamente em Coney Island, Rena ganhou a alcunha de Rusty por culpa de um cão rafeiro e não demorou muito até fazer parte de um gangue só de raparigas. Eram as Apaches.

A violência era o caminho natural de Rusty. Em casa, a família não queria saber dela. O pai morreu quando estava no início da adolescência, o irmão alistou-se no exército e na marinha e a mãe passava os dias a trabalhar para garantir que nada faltava. Nas ruas, tinha de se impor para garantir respeito. Andava sempre com uma navalha para o caso de haver sarilhos e não virava a cara aos problemas. Tanto assim foi que, certo dia, depois de ter sido traída pelas colegas de gangue, perseguiu-as uma a uma até saldar as contas [Calma, não era a máfia, ninguém morreu, houve apenas algumas nódoas negras e talvez um bocado de sangue].

O judo apareceu como salvação. Já tinha casado e estava divorciada, rumava a uma vida sem rumo mas um dia um amigo mostrou-lhe um movimento que tinha aprendido com o desporto. Foi amor à primeira vista. Aparentemente sem esforço, Rusty tinha sido projetada para o chão sem qualquer reação. Havia ali algo de especial.

«Crescer em Coney Island fez com que vivesse constantemente com a sensação de ter de provar alguma coisa. O desporto controlado era a melhor forma. Há uma família no judo, há disciplina, tudo o que uma pessoa precisa para sobreviver», comentou em 2002.

Estávamos em 1955, quatro anos antes do célebre torneio de 1959. Não que houvesse concorrência por aí além, mas o judo tornou-se o domínio de Rusty. Os Estados Unidos tornaram-se demasiado pequenos e decidiu cruzar o Pacífico e ir para o Japão, para o instituto de judo Kodokan.

O espaço era emblemático. Existia desde 1926 e tinha uma longa tradição mas o sexismo abundava. As mulheres não podiam treinar com os homens, não tinham acesso ao pavilhão principal e não tinham as mesmas oportunidades de progressão. Só que Rusty não era uma mulher qualquer e mereceu o convite para, uma vez mais, estar entre homens. Uma enorme barreira tinha acabado de ser destruída.

Uma medalha que demorou 50 anos

Foi no Japão que conheceu o seu futuro marido, Ryohei Kanokogi, também ele judoca. Casaram-se em 1964, em Nova Iorque, numa altura em que qualquer progresso adicional de Rusty no mundo do judo parecia impossível. «Toda a gente me dizia que teria a medalha de ouro garantida se houvesse competição nos Jogos Olímpicos. E, sinceramente, não tenho como negar», lamenta, percebendo que estava muitos anos à frente de todas as outras mulheres na altura.

A ausência de competição não prejudicou o seu sonho para o futuro. Se ela não poderia competir, ia continuar a lutar para que quem viesse a seguir o pudesse fazer. Em 1965, organizou o primeiro torneio júnior em Nova Iorque, em 1976 tornou-se treinadora da equipa feminina dos Estados Unidos e em 1980 não hesitou em hipotecar a casa para ter o dinheiro suficiente para organizar os primeiros Mundiais femininos, num dos espaços do Madison Square Garden.

Faltava um objetivo: os Jogos Olímpicos. A pressão foi grande e garantiu que o judo feminino se tornasse uma modalidade experimental em 1984 mas o Comité Olímpico Internacional torceu o nariz à possibilidade de fazer daquilo algo definitivo.

Rusty não hesitou em ir com tudo. Ameaçou o Comité Olímpico Internacional com processos de discriminação e aproveitou para cavalgar a onda mediática para provocar o volte-face da decisão. Quatro anos depois, em Seul, na Coreia do Sul, o judo feminino ia tornar-se uma prova como todas as outras.

O trabalho de Rusty Kanokogi ainda não tinha terminado. Nunca terminou, na verdade. Em 1988, ajudou Margaret Castro a vencer uma medalha de bronze e em 1991, três anos depois, entrou no hall of fame da modalidade.

Até morrer, em 2009, nunca esqueceu o amor pelo judo e continuou a promover o desenvolvimento da modalidade, que lhe valeu a maior distinção do Japão que pode ser atribuída a um cidadão estrangeiro, e a lidar com crianças desfavorecidas no estado de Nova Iorque. Meses antes da morte, a justiça foi reposta, e a YMCA ofereceu-lhe uma medalha simbólica.

É esta a história da mãe do judo.

06 de Março, 2021

Mike Conley. A recompensa de saber esperar

Rui Pedro Silva

Mike Conley

Não foi com pompa. Foi apenas uma circunstância. Mike Conley sabe que está a viver as suas últimas oportunidades e o sonho de ser all-star parecia cada vez mais uma viragem mas, de repente, o cenário mudou.

Foi preciso esperar pela 14.ª temporada. E pela lesão de Anthony Davis. E ainda pela lesão de Devin Booker. Mike Conley, base dos Utah Jazz, tem 33 anos e vai chegar ao jogo das estrelas como o «substituto do substituto». Mas isso pouco interessa. Pormenores como esses são esquecidos num estalar de dedos e o estatuto viverá para sempre. É como um ator depois de ser nomeado para um Óscar – já sabe que o prefixo vai acompanhá-lo para sempre.

Quando entrar em campo, Mike Conley terá 33 anos e 147 dias. Na história da NBA, apenas quatro jogadores atingiram este estatuto com mais tempo de vida: Kyle Korver (33 anos e 335 dias em 2015), Anthony Mason (34 anos e 59 dias em em 2001), Sam Cassell (34 anos e 89 dias em 2004) e Nat Clifton, o veterano dos veteranos (34 anos e 94 dias em 1957).

A paciência de Mike Conley não foi suficiente para fazer dele um recordista. Ou talvez tenha feito. Se olharmos para a estatística de outro modo, talvez o base surja num campeonato à parte. Nat Clifton conseguiu a estreia mais velha mas fê-lo na sétima temporada na liga. Sam Cassell esperou 11 temporadas, Kyle Korver 12 e Anthony Mason 13. Neste dado, Mike Conley está mesmo isolado (14).

Viver na sombra de outros tem sido o denominador comum da carreira do jogador, mesmo antes de chegar à NBA. Em 2006/07, ao serviço dos Ohio State Buckeyes, equipa que atingiu a final do campeonato universitário, Conley era o braço-direito de Greg Oden, o poste dominador que seduziu os Portland Trail Blazers para a primeira escolha do draft de 2007, imediatamente à frente de Kevin Durant. A vez de Conley chegou na quarta posição, que pertencia aos Memphis Grizzlies.

A equipa do Tennessee é quase a definição perfeita de «sombra dos outros». Joga na conferência Oeste apesar de estar a Este do rio Mississippi, não é um grande mercado e, apesar de ter tido temporadas ameaçadoras, de «grit & grind», com Mike Conley, Marc Gasol, Tony Allen e companhia, nunca se assumiu como uma potência ou grande candidato ao título.

E o seu base também nunca foi a maior estrela a Oeste. Desde a estreia em 2007, Conley teve de disputar atenções com Steve Nash, Allen Iverson, Kobe Bryant, Chris Paul, Russell Westbrook, James Harden, Steph Curry, entre muitos outros. Agora, num ápice, tudo mudou.

A época é a mais atípica de todas as temporadas atípicas e a lesão de Anthony Davis levou a que Devin Booker fosse selecionado para o seu lugar. Mas, quando a alternativa se lesionou, foi o comissário da liga, Adam Silver, que decidiu optar por Mike Conley para compor o leque de jogadores convocados do Oeste, numa altura em que o draft das duas equipas até já tinha sido feito pelos capitães LeBron James e Kevin Durant.

Mike Conley está a cumprir a segunda temporada ao serviço dos Utah Jazz e, depois de um início titubeante, ganhou o seu espaço e tem um papel decisivo para os resultados sólidos da equipa de Salt Lake City, que chegou à pausa com o melhor registo da liga (27 vitórias e nove derrotas).

É muito improvável que Conley seja a estrela mais cintilante do fim de semana. Porque nunca é. Porque houve Greg Oden. Porque houve Marc Gasol. Porque houve Steve Nash, Steph Curry e tantos outros. E porque agora há Donovan Mitchell e Rudy Gobert. Mas para Conley nada disso importa e, tantos anos depois, continua a fazer o seu trabalho e a contribuir como pode. A paciência finalmente recompensou.

05 de Março, 2021

Marita Koch. Uma corrida irrepetível

Rui Pedro Silva

Marita Koch

Há encruzilhadas capazes de decidir o destino de uma pessoa num piscar de olhos. Uma escolha feita hoje pode alterar de forma significativa tudo o que se lhe sucede e a dimensão do que acontece depois será tão maior quão mais influente é a pessoa.

Marita Koch era apenas mais uma jovem quando, em 1975, com apenas 18 anos, teve de tomar uma decisão que alterou o panorama do atletismo mundial. A alemã oriental gostava de correr mas queria estudar. Tinha tido uma oferta para ir para Berlim prosseguir os estudos de medicina, mas a hipótese de continuar a correr pairava no ar, com a preparação para os Europeus juniores de atletismo na Grécia ao virar da esquina.

«Atenas estava a chamar e não consegui resistir à oportunidade de viajar e participar num evento internacional. Sempre disse, a brincar, que se a prova tivesse sido na Polónia, provavelmente nunca teria decidido ir para Rostock para o centro de treinos», contou Marita, em entrevista ao diário espanhol El País em outubro de 2010.

Correr é, por definição, uma viagem. E Marita Koch estava habituada a fazer viagens mais curtas, de 100, 200 e 400 metros, mas foi o resto do mundo que a seduziu. Por isso, não é de espantar que o momento mais marcante da sua carreira tenha sido no outro lado do mundo, em Camberra, na Austrália, em outubro de 1985.

O palmarés de Marita Koch provoca inveja. Foi campeã olímpica dos 400 metros nos Jogos de Moscovo em 1980, venceu três medalhas de ouro nos Mundiais de Helsínquia, em 1983, e conquistou o título dos 400 metros nos Europeus de 1978, em Praga, nos de 1982, em Atenas, e nos de 1986, em Estugarda - três edições consecutivas com a germânica a ser a mais rápida da Europa a dar a volta à pista.

Mas não houve nenhuma volta à pista tão rápida como a que deu em Camberra, no Hemisfério Sul, onde a água rodopia sobre si própria no sentido inverso. Talvez tenha sido isso que proporcionou a Marita Koch a corrida mais rápida de sempre de uma mulher nos 400 metros. Foi em 1985 mas o recorde mundial mantém-se até hoje: 47,60 segundos.

A marca superou a da checoslovaca Jarmila Kratochilova, que detém o recorde mais antigo do atletismo mundial (1:53:28 nos 800 metros a 26 de julho de 1983), e não deixou dúvidas sobre o talento da alemã que já tinha 28 anos e começava a ver o fim do seu apogeu no horizonte, muito por culpa dos constantes problemas no tendão de Aquiles.

Preparação premonitória

«Viajei com expectativas altas para a Taça do Mundo e, com aquela idade, sabia que seria provavelmente a minha última oportunidade para correr abaixo dos 48 segundos», confessou, garantindo que a preparação para a prova foi perfeita. «Foi no final da temporada e tinha tido cinco semanas para pensar na corrida. Os meus treinos indicavam que iria conseguir um grande tempo», disse ao jornal espanhol.

A prova de Marita é impressionante. Sai da pista 2 e aos 200 metros já está isolada no primeiro lugar, com uma curva ainda para fazer. «Hesitei sobre que marca poderia alcançar mas aos 360 metros ainda me sentia com força. Nos últimos metros, a única coisa que consegui pensar foi que não queria falhar a casa dos 47 segundos por pouco. Quando cruzei a meta e ouvi a ovação do público, percebi que tinha conseguido algo bom».

A paixão pelas viagens deu-lhe uma motivação especial. Depois de falhar os Jogos Olímpicos em Los Angeles, por culpa do boicote oriental, decidiu que 1985 seria um ano para reivindicar o seu estatuto. E a Taça do Mundo foi a oportunidade perfeita. «Uma das coisas que mais me motivou foi o facto de ter sido na Austrália. De outra forma, um cidadão da República Democrática da Alemanha nunca poderia ter visitado a Austrália. Queria muito ter terminado os meus estudos, mas a oportunidade de viajar sempre foi uma das minhas maiores motivações para me tornar uma atleta», admitiu.

Marita Koch garante que correu sempre por si mesma e nunca se sentiu uma embaixadora do seu país. Por outro lado, é impossível dissociar a sua carreira da RDA e de uma organização que utilizou o doping sistemático durante anos para tentar alcançar a supremacia desportiva. Os controlos realizados a Marita Koch tiveram sempre resultado negativo mas a suspeição ganhou ainda mais forma quando, após a queda do Muro, foram divulgados documentos que incluíam a corredora na lista de atletas que recebiam um esteróide anabolizante chamado turinabol entre 1981 e 1984.

Os desmentidos de Marita Koch e a evidência dos resultados a que foi submetida nunca foram suficientes. Hoje, tantos anos depois, a sua carreira e, sobretudo, a marca alcançada em 1985, são tão inalcançáveis como discutíveis. Sobretudo porque nunca depois dela uma atleta ameaçou sequer aproximar-se da casa dos 47 segundos. O recorde olímpico pertence a Marie-José Perec (48,25 segundos em 1996) e no Rio de Janeiro, em 2016, a bahamiana Shaunae Miller mergulhou para a vitória com um tempo de 49,44.

É possível que o recorde de Marita Koch nunca venha a ser batido. E é provável que os críticos nunca deixem de colocar um asterisco ao lado da sua marca. Mas, seja como for, a atleta tem uma visão diferente para dar ao debate. «Sinto que o meu recorde pode ser batido mas muito poucas terão potencial para tal. É preciso ter as qualidades de uma velocista. É preciso fazer bons tempos intermédios nos 100 e nos 200 metros. Os avanços tecnológicos não mudaram muito nesta disciplina. Talvez a mudança da superfície possa ajudar, mas os ténis não mudaram muito. No final de contas, o atleta só tem de se manter saudável e ser bem apoiado, isso será sempre igual.»