Eteri Tutberidze. Uma «Aurélio Pereira» da patinagem russa
Anna Shcherbakova sagrou-se campeã mundial de patinagem artística a poucos dias de completar 17 anos. A atleta russa conseguiu o melhor resultado no programa curto em Estocolmo e, mais tarde, conseguiu resistir à aproximação de Alexandra Trusova para garantir a medalha de ouro e suceder à compatriota Alina Zagitova.
O desempenho de Shcherbakova foi irrepreensível e, de cada vez que saía do gelo, era congratulada por duas pessoas: o seu coreógrafo, Daniil Gleichenrauz, e a sua treinadora, Eteri Tutberidze. O talento existe e não está em causa mas, por trás de uma grande patinadora, está sempre uma grande treinadora. E Tutberidze dispensa apresentações.
Ou melhor, dispensa apresentações no mundo da patinagem artística. Como nem todos somos especialistas em saltos com os nomes Axel, Lutz, Salchow e muitos outros, talvez seja melhor calçar os patins e partir a toda a velocidade para este mundo que insiste em conquistar novos adeptos a cada prova que é transmitida na televisão.
Uma comparação costuma ser importante para atestar a importância de um protagonista. E é aqui que surge o nome de Aurélio Pereira, a figura da história do Sporting que descobriu grande parte dos craques das últimas décadas. Nos pelados e na relva, tal como no gelo, descobrir alguém com qualidade é importante, mas não tanto como potenciá-lo. E talvez seja nesta componente que Eteri Tutberidze comece a distanciar-se da comparação simplista que encontrámos.
Eteri Tutberidze não se limita a descortinar crianças e adolescentes de enorme qualidade. Até porque, verdade seja dita, na maior parte das vezes já nem precisa. Chamar-se Eteri Georgievna Tutberidze é mais do que suficiente. O discernimento na hora de olhar para as atletas não deixa de ser importante mas o mais comum é que sejam as crianças a ir ter com ela.
Quando nasceu, a 24 de fevereiro de 1974, em Moscovo, a patinagem russa estava longe de ser uma potência. Vamos por partes: nos Jogos Olímpicos, a primeira medalha foi conquistada em 1972, por Sergei Chetverukhin, que foi prata em Sapporo. Foi preciso esperar até 1992 para a Equipa Unificada, pós-desmembramento da União Soviética, para chegar o primeiro de cinco títulos olímpicos consecutivos. Na vertente feminina, a primeira medalha foi alcançada apenas em Sarajevo-1984, com o bronze de Kira Ivanova, e o título só chegou em 2014, com Adelina Sotnikova (na imagem).
Nos Mundiais, o cenário não era mais favorável, apesar de haver competições praticamente todos os anos desde o fim do século XIX ou início do século XX, dependendo do género. O primeiro título masculino foi alcançado em 1975, por Sergei Volkov, quatro anos depois de Chetverukhin ter conquistado a primeira medalha soviética (bronze), enquanto a primeira mulher a subir ao pódio foi Elena Vodorezova (bronze) em 1983 e a primeira a fazer soar o hino foi Maria Butyrskaya, em 1999.
Eteri Tutberidze não nasceu num país que dominava a modalidade mas cresceu num meio em que as atenções estavam cada vez mais viradas para esse desporto. A patinagem artística ficou na moda durante a década de 1970, como nunca antes até então, e Eteri começou a praticar com quatro anos e meio.
Aconteceu por acaso. A meio de uma viagem com a mãe para levar o irmão a um treino de futebol, viu um grupo de jovens patinadoras pela primeira vez e não escondeu o encanto. «Não me pareciam crianças, mas sim fadas. Disse à minha mãe para me levar para lá também», contou em entrevista.
O progresso como patinadora foi animador. De um grupo de 30, foi uma das cinco escolhidas pelo treinador. Mas não estava destinada a durar muito tempo. «Já tinha um bom repertório. Um duplo Axel, um triplo Salchow e um triplo Toeloop. Mas quando o treinador começou a fazer outras escolhas para os torneios, a minha capacidade para saltar desapareceu gradualmente. Não conseguia perceber porquê e comecei a cair mais vezes, apesar de fazer tudo como me era ensinado. A partir de certa altura senti-me abandonada e, como resultado do mau treino e de maus aquecimentos, fui acumulando lesões», lamentou.
A lesão definitiva foi numa vértebra. Ficou de fora durante um longo período e em três meses cresceu 22 centímetros, talvez por culpa dos suplementos de cálcio que a mãe lhe dava. Eteri Tutberidze tinha-se tornado demasiado alta para a competição, por isso mudou-se para a dança no gelo.
A situação na União Soviética estava cada vez pior, com a Perestroika a caminho, e um convite dos Estados Unidos foi suficiente para deixar tudo para trás. Mas nem tudo correu bem. A entrada em Oklahoma com a companhia de ballet foi negada a todos os membros que não tinham nascido em Moscovo e, durante um mês, os que conseguiram entrar ficaram à mercê da caridade dos americanos. Sem dinheiro, foram obrigados a pedir para comer e receberam alojamento nas igrejas locais.
O sonho americano tinha-se transformado em pesadelo. O contrato foi cancelado e a vida nos Estados Unidos tornou-se ainda mais assustadora quando o edifício federal perto do local onde viviam foi alvo de um ataque bombista de Timothy McVeigh, em 1995, que matou 168 pessoas e feriu praticamente outras 700.
«Não me lembro como fui parar à rua. As paredes tinham desaparecido. Toda a gente estava a ser transportada e havia gritos sobre a possibilidade de haver uma segunda bomba. Estava toda a gente a correr e eu ali, parada. Sentia-me perdida. Até que apareceu um bombeiro a segurar-me pela mão e a arrastar-me dali para fora», recordou.
A vida de Eteri Tutberidze transformara-se numa autêntica confusão mas estava prestes a melhorar. O bombeiro que a tinha arrastado acolheu Eteri e o seu parceiro, Kolya Apter, e enviou um vídeo dos dois a atuar para os Ice Capades. A dupla foi contratada e, além disso, ainda recebeu 1200 dólares cada por terem sido considerados vítimas do atentado terrorista.
A experiência nos Ice Capades durou quatro anos e, lentamente, a vontade de voltar à Rússia começou a instalar-se. Foi assim que, passo após passo, começou a consolidar-se como uma das melhores treinadoras que o mundo já viu, e responsável por muitas das melhores atletas sobre o gelo.
Qual é o segredo? «Trabalho. É a única coisa que consigo fazer, trabalhar. Tenho de trabalhar e ver onde é que isso me leva. Pode resultar, ou não. E também temos de planear tudo», explicou em 2017. «Falo muito com as minhas atletas, tento perceber o que lhes vai na cabeça e mostrar-lhes a razão pela qual estão a trabalhar. Precisam de perceber porquê, a razão do trabalho, a razão do suor. Quando eu patinava, ninguém me explicou isso e fui um fracasso. Como treinadora, tenho de conseguir liderá-las da melhor maneira. Quando estamos cansadas, é bom saber qual é a finalidade», continuou.
A fórmula de Eteri Tutberidze tem resultado na perfeição. Na última década, foi a treinadora responsável por Yulia Lipnitskaya (campeã olímpica por equipas em 2014), Alena Kostornaia (campeã europeia em 2020), Alina Zagitova (campeã olímpica em 2018, mundial em 2019 e europeia em 2018), Evgenia Medvedeva (campeã mundial em 2016 e 2017) e Anna Shcherbakova (campeã mundial em 2021).
Eteri Tutberidze também foi responsável pelo desenvolvimento de Alexandra Trusova, a patinadora russa que é apelidada de Rainha dos Quádruplos e que atualmente é orientada por Evgeni Plushenko. Entre 2016 e maio de 2020, Trusova progrediu com Eteri, dos 11 aos 15 anos. Foi durante este período que fez história e se tornou a primeira mulher de sempre a tentar e conseguir um quádruplo Lutz, um quádruplo Flip e um quádruplo Toeloop.
Eteri Tutberidze não gosta de falar com jornalistas. Não gosta de falar sobre ela. Mas tem vivido na sombra de muitos dos grandes momentos da patinagem russa. Os resultados estão aí a comprová-lo e, como já ameaçava em 2017, «ainda vai melhorar». A profecia concretizou-se em Estocolmo: pela primeira vez desde 1991 e segunda em toda a história, os três lugares do pódio foram ocupados por patinadoras do mesmo país.
Se há 30 anos, o palco foi dominado pelos Estados Unidos, com Kristi Yamaguchi, Tonya Harding e Nancy Kerrigan, agora foi a vez da Rússia, com Anna Shcherbakova, Elizaveta Tuktamysheva e Alexandra Trusova. Duas delas têm o dedo de Eteri Tutberidze. Coincidência? Não, apenas trabalho. Muito trabalho.