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É Desporto

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30 de Abril, 2020

Estados Unidos. A histórica e controversa derrota com a União Soviética

Especial Jogos Olímpicos (Munique-1972)

Rui Pedro Silva

Final olímpica de 1972

Estavam obrigados a jogar com amadores – como era natural nos Jogos Olímpicos -, mas os Estados Unidos ainda não tinham perdido um único dos 63 encontros disputados no evento. Em 1972, em Munique, depois de chegar a final, a série foi finalmente interrompida, pela União Soviética, num jogo em que as decisões de arbitragem foram alvo da ira norte-americana.

Campeões em todas as edições desde 1936, os Estados Unidos não somavam qualquer derrota em jogos internacionais. Em Munique, parecia que a série ia continuar e os jogos na caminhada até ao encontro decisivo tiveram resultados esclarecedores: 66-35 com a Checoslováquia, 81-55 com a Austrália, 67-48 com Cuba, 61-54 com o Brasil, 96-31 com o Egipto, 72-56 com a Espanha, 99-33 com o Japão e 68-38 com a Itália.

A tensão com a União Soviética era grande. O rival também tinha passeado na fase de grupos e na meia-final, e a componente política não podia ser ignorada, uma vez que se vivia em plena Guerra Fria. Os soviéticos estavam cansados de correr por fora no basquetebol e viam na prova de Munique a oportunidade perfeita, até porque o grupo norte-americano era ainda mais inexperiente do que o habitual.

O jogo esteve sempre equilibrado e os soviéticos foram para o intervalo a vencer 26-21. No segundo tempo, apesar das escaramuças que levaram às expulsões de Dwight Jones e Mikheil Korkia, os norte-americanos recuperaram e foram-se aproximando da liderança, já depois de terem estado em desvantagem por dez pontos. De repente, cresceu a ideia de que poderia acontecer uma surpresa, com os soviéticos a venceram 49-48 e com a bola a sete segundos do fim.

Doug Collins tentou salvar o dia, roubou um passe mal medido e, depois de sofrer uma falta dura, foi para a linha de lance livre com três segundos para jogar e converteu os dois lances livres: o segundo já depois de, inadvertidamente, a campainha ter soado.

O que se seguiu foi uma balbúrdia no Oeste… germânico. O problema com o cronómetro levou a sucessivos protestos de um lado e do outro, permitindo que os soviéticos explorassem a situação perante uma equipa de arbitragem sem saber bem o que fazer.

O primeiro argumento explorava que a equipa tinha pedido um desconto de tempo ainda antes do segundo lance livre, pelo que o relógio não devia ter continuado. Enquanto a mesa dos árbitros era invadida por protestos, os soviéticos tentaram uma jogada desesperada mas o jogo foi interrompido com um segundo por jogar.

Depois de inúmeros argumentos de um lado e do outro, sobre se o desconto de tempo tinha sido efetivamente pedido ou não, os árbitros declararam nula essa requisição. No meio da confusão, decidiram anular por completo a jogada que tinha acontecido depois do segundo lance livre, regressando aos três segundos e dando uma segunda oportunidade aos soviéticos.

No segundo take, e com uma substituição feita à qual os soviéticos não teriam acesso, a confusão prolongou-se. A equipa não conseguiu executar a jogada pensada e ficou sem tempo para lançar ao cesto. Uma vez mais, a campainha soou, só que desta vez toda a gente pensou – jogadores e adeptos – que o jogo teria terminado. O court foi invadido e os norte-americanos começaram a festejar mais um título. Só que… não. Haveria um terceiro take.

Qual foi o argumento desta vez? O cronómetro estava com problemas – assinalava 50 segundos no início da jogada – e era preciso nova tentativa. Mesmo com as ameaças de abandono por parte da equipa técnica dos Estados Unidos, o jogo teve mesmo um terceiro lance nas mesmas circunstâncias. Desta vez, porém, os soviéticos conseguiram fazer a diferença: um passe longo de Edeshko para Alexander Belov, que agarrou a bola perante a oposição de dois adversários e, já sem ninguém a importuná-lo, fez os dois pontos que decidiram o encontro.

O fim do jogo – desta vez mesmo definitivo – gerou mais uma onda de protestos, com o inconformismo norte-americano. Enquanto os soviéticos festejavam, os jogadores e treinadores dos Estados Unidos tentavam argumentar sobre a falsidade de todo o processo, sem sucesso.

A União Soviética conseguiu furar mesmo a hegemonia rival e subiu ao lugar mais alto do pódio. Os protestos oficiais dos Estados Unidos também não valeram de nada, sobretudo perante um painel com maioria de nacionalidades aliadas ao bloco oriental, e abriram caminho para uma derradeira forma de protesto norte-americana. Apenas quatro anos depois de Tommy Smith e John Carlos terem sido criticados por utilizarem a cerimónia dos hinos para expressar descontentamento com os direitos humanos e sociais nos Estados Unidos, a equipa decidiu nem sequer subir ao pódio e, mais do que isso, recusou receber as medalhas de prata mais tarde.

O jogo continua a ser recordado de forma infame entre os norte-americanos. Para os soviéticos, foi mais uma vitória desportiva para vincar uma alegada superioridade política.

29 de Abril, 2020

Olga Korbut. Revolucionar a ginástica de coração partido

Especial Jogos Olímpicos (Munique-1972)

Rui Pedro Silva

Olga Korbut

Nunca a União Soviética tinha mostrado uma atleta com emoções tão fortes nos Jogos Olímpicos. Em Munique, em 1972, Olga Korbut chorou compulsivamente depois de uma sucessão de erros amadores nas barras paralelas assimétricas que a atiraram para fora do pódio. Mas depois, numa segunda vida, regressou para conquistar o mundo e revolucionar a modalidade.

Tinha 17 anos mas continuava a parecer a mesma rapariga de oito anos que começara a praticar ginástica na república soviética da Bielorrússia. Com metro e meio e cerca de 40 quilos, Korbut era como um boneco de peluche que os fãs da ginástica queriam ter em casa. E mais: tinha capacidade para fazer coisas até então impensáveis.

Candidata ao pódio no concurso completo, Korbut já tinha ajudado a União Soviética a chegar ao ouro na prova coletiva, mas estava destinada a… fracassar. No exercício das barras paralelas assimétricas, onde tinha dado tão bem conta de si na véspera, começou por falhar logo no primeiro elemento. «Foi o maior erro da minha vida. Não senti nada, estava em choque. Era um elemento que toda a gente conseguia fazer mas eu não me lembrava de nada. Quando terminei, pensei que tudo não tinha passado de um sonho».

Mas era real. Bastante real. E essa realidade foi como uma bofetada na cara quando chegou a pontuações dos juízes: 7,5 pontos e a perda imediata de qualquer hipótese de conquistar uma medalha. Korbut não foi a típica atleta soviética. E, ainda a poucos metros do aparelho, chorou. Chorou compulsivamente, com uma toalha a tapar a cara e confortada pela treinadora. Estava em choque. Tal como as adversárias e… o resto do mundo.

As pessoas sentiram a dor de Korbut e, acima de tudo, ficaram impressionadas com o facto de finalmente uma atlética soviética estar a demonstrar ter emoções. E foi assim, com o coração partido e a vontade de retribuir o carinho, que a ginasta recuperou e conquistou três medalhas individuais (ouro na trave e no solo e prata nas barras paralelas assimétricas).

Mais do que conquistar medalhas, Korbut demonstrou uma graciosidade única («Senti que tinha sete anos e estava a dançar no jardim») e uma tendência para romper com a rotina e introduzir elementos para os quais a modalidade ainda não estava preparada. «Alguém tinha de fazer uma revolução para mudar a ginástica. E eu quebrei o sistema», garantiu.

28 de Abril, 2020

Mark Spitz. Os sete ouros do homem do bigode

Especial Jogos Olímpicos (Munique-1972)

Rui Pedro Silva

Mark Spitz

Não havia preocupações com aerodinâmica. Não se reduzia o atrito até ao pormenor absurdo. Mark Spitz tinha bigode… e orgulho nisso. E nem sequer imaginava fatos feitos com pele de tubarão. Mas isso não o impediu de nadar para a história nos Jogos Olímpicos de Munique com um registo impressionante de sete medalhas de ouro… e sete recordes mundiais.

Mark Spitz chegou à República Federal da Alemanha em 1972 depois de ter apanhado um banho de realidade em 1968, na Cidade do México. Confiante, tinha anunciado que iria vencer seis medalhas de ouro mas… esteve longe, muito longe disso. Era um jovem de 18 anos, com sangue na guelra, mas só conseguiu dois títulos – em provas de estafetas –, uma medalha de prata (100 metros mariposa) e uma de bronze (100 metros livres).

Na Alemanha, Spitz voltou a ser notícia ainda antes de competir pela primeira vez. Agora por causa do bigode. Durante as qualificações para os Jogos, o norte-americano que cresceu a nadar entre as praias do Havai e da Califórnia percebeu que esse era um tema que provocava grande debate.

«Havia tanta gente a falar disso que decidi mantê-lo. Nunca tinham visto isso de um atleta de elite. E não acho que fosse algo que me atrasasse, de nenhuma forma. Aliás, até ajudava a distrair os meus adversários», recordou, em declarações ao site dos Jogos Olímpicos.

Quando chegou a Munique, mais do mesmo. E, desta vez, Spitz demonstrou ainda mais que era um mestre dos jogos mentais. Depois de pedir autorização para nadar numa pista quando a piscina estava reservada pelos soviéticos, o nadador apercebeu-se que tinha deixado de haver gente a ver. Ou melhor, tinham apenas mudado de sítio, para uma espécie de janelas que havia no fundo da piscina.

«Enquanto nadava de um lado para o outro, percebi que havia umas janelas debaixo de água e flashes que disparavam sempre que eu passava. Por isso decidi fazer uns metros de costas e reparei que metade dos técnicos soviéticos tinham desaparecido: estavam todos lá em baixo. Foi nessa altura que comecei a fazer a braçada mais desajeitada que me lembrei», contou.

Mark Spitz era um caso de estudo para os soviéticos e, findo o treino, dispararam perguntas ao mesmo ritmo que tinham disparado os flashes. Queriam saber se aquela braçada era mesmo a dele, se ia rapar o bigode e se isso não o afetava. Foi nesta altura que Spitz inventou uma história sobre como o bigode ajudava a afastar a água da boca, melhorando as pausas para respiração, entre muitas outras… balelas. Os treinadores caíram que nem patinhos e, conta a lenda, grande parte dos nadadores da União Soviética apareceram com bigodes nas competições do ano seguinte.

Dentro de água, Mark Spitz foi impressionante. Manteve os jogos mentais, fingindo problemas físicos e desgaste enquanto as medalhas se iam acumulando, e até chegou mesmo a passar a ideia de que poderia abdicar de competir na sétima e derradeira prova, mas esteve sempre ao mais alto nível.

Ia nadar para a história… e sabia-o. Se em 1968 tinha sido demasiado presunçoso, em 1972 tinha razão para tal. E muito mais. Além de fazer história com sete medalhas de ouro (quatro provas individuais e três de estafetas), garantiu ainda recordes do mundo em cada uma delas.

Mark Spitz tornou-se uma lenda dos Jogos Olímpicos e inspirou gerações inteiras de nadadores. Só em 2008 o seu recorde caiu finalmente, pelas braçadas de um tal Michael Phelps.

27 de Abril, 2020

Hart/Robinson. Ver a falta de comparência pela televisão

Especial Jogos Olímpicos (Munique-1972)

Rui Pedro Silva

Eddie Hart

Eddie Hart e Rey Robinson partilhavam o recorde do mundo e eram os dois principais favoritos à conquista da medalha de ouro na prova dos 100 metros nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Mas um horário errado transmitido pelo treinador fez com que não chegassem a tempo às séries dos quartos-de-final e abrissem caminho para que um soviético se tornasse o primeiro não-americano a ganhar a distância.

Falar dos 100 metros era falar de velocistas norte-americanos. Ao longo da história, os Estados Unidos tinham dominado a prova do hectómetro e Munique-1972 parecia ir a caminho do mesmo. Durante as qualificações dos Estados Unidos para a prova, Eddie Hart e Rey Robinson tinham levado a disputa muito a sério e estabelecido um novo recorde do mundo partilhado, de 9,9 segundos.

Na República Federal da Alemanha, juntamente com Robert Taylor, eram fortes candidatos a um pleno no pódio. Mas, por culpa do treinador Stan Wright, a história foi muito diferente.

Quinta-feira, 31 de agosto. De manhã, os norte-americanos tinham passado pelas eliminatórias com mestria. Rey Robinson venceu a sexta série com 10,56 segundos, Eddie Hart cruzou a meta na primeira posição na 11.ª série com 10,47 e Robert Taylor venceu a última com um tempo de 10,32. Metade do trabalho para aquela jornada estava feito.

O trio foi descansar e recebeu uma notificação do treinador: as séries dos quartos-de-final iam começar às sete da tarde. Com tempo para tudo, os atletas só pensaram em regressar ao estádio minutos antes das cinco. Mal sabiam ainda, nessa altura, que o treinador os tinha enganado e as provas iam começar às 16h45.

Enquanto esperavam pelo autocarro que os iria transportar para o estádio, repararam que a transmissão televisiva estava a preparar-se para dar provas de 100 metros. Julgavam que seria a repetição do programa de manhã, mas sentiram que lhes tinha caído o inferno em cima quando alguém lhes respondeu que não, que aquilo era em direto, que iam começar os quartos-de-final.

O estádio não ficava muito longe mas Eddie Hart e Rey Robinson estavam agendados para as duas primeiras rondas: era demasiado tarde. Robert Taylor, inscrito na terceira série, chegou à justa: teve apenas tempo para se equipar, correr para os blocos e… correr para a meta, terminando no segundo lugar, atrás do soviético Valeriy Borzov.

O episódio insólito dominou as atenções. Como é que uma comitiva tão experiente como a norte-americana podia ter cometido um erro tão flagrante? Em defesa do treinador, estava a guiar-se por um horário provisório que, entretanto, tinha sido alterado. Robinson e Hart protestaram, com o auxílio da federação, mas não tiveram qualquer benesse e ficaram mesmo de fora da luta pelas medalhas.

No dia seguinte, já na final, Robert Taylor tentou salvar a honra norte-americana mas não fez melhor do que a segunda posição. O soviético Valeriy Borzov estava lançado, correu a prova em 10,14 segundos e tornou-se o primeiro não-americano a conquistar a medalha de ouro da distância em Jogos Olímpicos. O jamaicano Lennox Miller repetiu o pódio alcançado em 1968 (prata) e garantiu o bronze.

A fraca consolação de Eddie Hart chegou mais de uma semana depois, na final da estafeta dos 4x100 metros, com uma medalha de ouro e um novo recorde mundial (38,19 segundos). Rey Robinson nem isso conseguiu.

27 de Abril, 2020

Dan Gable. O campeão intocável

Especial Jogos Olímpicos (Munique-1972)

Rui Pedro Silva

Dan Gable

A história está cheia de títulos olímpicos que não merecem qualquer contestação mas a forma como o norte-americano Dan Gable chegou à medalha de ouro na luta livre nos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, desafia qualquer concorrência: não permitiu um único ponto aos adversários em seis combates.

Há histórias olímpicas profundas, cheias de detalhe e pormenores insólitos e rocambolescos. Há outras que têm pouco para acrescentar, limitando-se a entrar no livro das estatísticas como primeiro, segundo e terceiros classificados. E depois há a história de Dan Gable.

A forma como o norte-americano venceu a medalha de ouro na prova de pesos ligeiros na luta livre em 1972 não merece grande memória hoje em dia. Não é um nome que apareça ao lado de Olga Korbut ou Mark Spitz, mas durante aquele verão, Gable talvez tenha sido o campeão menos contestado na história do desporto.

Nascido em Waterloo, no Iowa, a 25 de outubro de 1948, Dan Gable chegou aos Jogos Olímpicos de Munique com 23 anos e uma história trágica. Apenas oito anos antes tinha lidado com a morte da irmã, quatro anos mais velha, que foi violada e assassinada por um vizinho.

Gable, longe de ser uma figura imponente, com 1,75 metros e 68 quilos, não se deixou afetar e centrou a sua determinação no desporto. Quando chegou à República Federal da Alemanha, era campeão continental e mundial em título e… não deu hipótese a ninguém.

Na caminhada para a medalha de ouro, Dan Gable derrotou Safer Sali da Jugoslávia, Klaus Rost da RFA, Stefanos Ioannidis da Grécia, Kikuo Wada do Japão, Wlodzimierz Cieslak da Polónia e, finalmente, Ruslan Ashuraliyev da União Soviética. Em todos os duelos, um denominador comum: os adversários não conseguiram fazer qualquer ponto.

24 de Abril, 2020

Tommie Smith e John Carlos. O protesto olímpico mais famoso

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

O pódio polémico

Norte-americanos conquistaram as medalhas de ouro e de bronze nos 200 metros dos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, mas foi o protesto contra a segregação racial nos Estados Unidos durante a cerimónia protocolar que foi imortalizado. Australiano Peter Norman, medalha de prata, também participou, ainda que de forma mais discreta.

É uma das imagens mais famosas de sempre. Não mostra um atleta a cruzar a meta, não é um grande momento de fair-play ou desportivismo, nem evidencia uma emoção forte, de alegria ou tristeza, provocado pela tensão do desporto. Ao invés, acontece durante a cerimónia protocolar, enquanto tocava o hino dos Estados Unidos. É a única cerimónia dos hinos que conseguiu ofuscar o que se passou em pista.

A página online dos Jogos Olímpicos recorda a final dos 200 metros de 1968 com algumas reticências. Depois de o título e a entrada falarem sobre o que aconteceu, apenas no último parágrafo há uma referência real ao protesto: «O brilhantismo dos três atletas foi ofuscado pelo protesto no pódio, ao qual Norman se juntou. Foi a única edição dos Jogos em que cada um deles participou».

A frase tem razão de ser, ainda assim, uma vez que a prova dos 200 metros foi verdadeiramente emocionante e com um patamar de qualidade muito elevado. Tommie Smith foi o primeiro a dar nas vistas a estabelecer um novo recorde olímpico (20,37 segundos) na segunda série das eliminatórias, mas Peter Norman roubou-lhe duas décimas instantes depois, melhorando a marca para 20,17 segundos. Nas meias-finais as marcas voltaram a cair, com John Carlos a fixar o recorde em 20,12 segundos, e aumentaram o suspense para a final.

John Carlos saiu mais rápido e liderava no final dos primeiros 100 metros, mas não conseguiu manter o ritmo e foi ultrapassado pelos dois colegas de pódio: Tommie Smith continuou disparado até fixar um novo recorde mundial, tornando-se o primeiro de sempre a baixar da marca dos 20 segundos (19,83), enquanto o australiano Peter Norman fez uma prova de trás para a frente, saltando da sexta posição para a medalha de prata (20,06).

Um recorde do mundo tinha caído – e duraria 11 anos -, mas a grande surpresa da dupla norte-americana estava reservada para o momento do hino dos Estados Unidos. Os dois atletas curvaram a cabeça e ergueram um braço com o punho cerrado, replicando aquilo que muitos encararam como sendo a saudação dos Black Power.

Mas há muitos pormenores por trás daquela imagem imortal. Os dois atletas estavam descalços, utilizando meias pretas para simbolizar a pobreza dos negros. Smith tinha um cachecol para representar o orgulho negro e Carlos tinha o fecho do casaco para baixo em solidariedade com os trabalhadores de colarinho azul dos Estados Unidos. Há mais: Carlos tinha um colar em memória de «todos os indivíduos que foram linchados ou mortos e pelos quais ninguém disse uma oração, ou enforcados e torturados».

Mesmo a parte mais famosa, dos punhos cerrados com os braços erguidos, tem um esquecimento por trás. O objetivo seria calçar luvas pretas mas John Carlos esqueceu-se das suas na Aldeia Olímpica. Foi aqui que Norman entrou em cena e sugeriu que o medalha de bronze pudesse usar a luva esquerda de Tommie Smith. É por isso que, na imagem, um atleta surge com o braço direito levantado – fiel à saudação Black Power – e John Carlos improvisa com o braço esquerdo.

Tommie Smith e John Carlos, aqui acompanhados por Peter Norman, envergaram também um selo de direitos humanos nos seus casacos. O australiano também já se tinha manifestado contra a discriminação racial na Austrália.

O protesto teve repercussões gigantescas. O Comité Olímpico Internacional exigiu que os atletas norte-americanos abandonassem a Aldeia Olímpica e só tiveram sucesso depois de ameaçar banir toda a equipa de atletismo. Tommie Smith fez questão de evidenciar a hipocrisia que se vivia nos Estados Unidos, um pouco à imagem do que Jesse Owens já tinha feito décadas antes. No original, e em inglês, para evitar problemas na singularidade da tradução e dos termos utilizados, o campeão olímpico disse: «If I win, I am American, not a black American. But if I did something bad, then they would say I am a Negro. We are black and we are proud of being black. Black America will understand what we did tonight».

Os três atletas sofreram na pele as consequências dos seus protestos quando regressaram a casa. Mesmo na Austrália, o governo fez questão de pressionar Peter Norman pelo sucedido. Dos três, Tommie Smith foi o único que continuou de forma relevante no mundo do desporto, ao representar os Cincinnati Bengals na NFL.

Norman pode ter ficado mais esquecido na importância deste protesto, orquestrado pela dupla norte-americana, mas Tommie Smith e John Carlos fizeram questão de viajar até à Austrália para o funeral do seu colega de protesto, em 2006. Afinal, tinham protagonizado juntos um dos protestos mais mediáticos na história – desportiva e não só – do século XX.

23 de Abril, 2020

Bob Beamon. Um salto para a história

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

Bob Beamon

Prova do comprimento nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, recuperava os três atletas que tinham terminado no pódio em Tóquio-1964 mas o grande favorito era um norte-americano que vinha a dominar todas as provas em que participava. Tinha 24 anos, chamava-se Bob Beamon e dinamitou o recorde mundial.

Esta é a história de um salto que esteve perto de não acontecer. Bob Beamon vencera 22 das 23 provas anteriores mas mantinha uma deficiência delicada: a propensão para realizar saltos nulos. Durante a qualificação para a final, o norte-americano começou por errar nos dois primeiros ensaios e, tal como Jesse Owens em 1936, viu a final ficar mais longe. E, tal como em 1936, houve um rival a ajudar. O compatriota Ralph Boston vestiu a pele do alemão Luz Long e ofereceu o mesmo conselho: fazer a chamada antes do habitual.

O resultado foi o que toda a gente esperava: um salto modesto de 8,19 metros mas ainda assim mais do que suficiente para ser o segundo melhor da qualificação. A final estava a caminho e a concorrência prometia ser dura.

O pódio de Tóquio-1964 repetia presença na final: o britânico Lynn Davies, o norte-americano Ralph Boston e o soviético Igor Ter-Ovanesyan. Além disso, havia ainda Klaus Beer, a ameaça da Alemanha Oriental.

Naquele dia, 18 de outubro, o tempo estava nublado e Bob Beamon era o quarto a saltar. Os três primeiros adversários fizeram ensaios nulos e aumentaram o nervosismo do grande favorito. Se até os outros o estavam a fazer, por que não o faria ele também, sobretudo alguém famoso por fazer mais nulos do que a média?

O que aconteceu foi chocante. Beamon não só não fez nulo como realizou uma sucessão de movimentos perfeitos: a corrida, a chamada, o salto e a aterragem. Resultado? O recorde mundial que estava nos 8,35 metros foi dinamitado por… 55 centímetros.

Ninguém queria acreditar. E Bob Beamon nem percebeu o que se passava, sobretudo por estar habituado a ver as marcas em pés e não em metros. De repente, a verdade caiu-lhe sobre os ombros e desfez-se em lágrimas, emocionando com «o» salto da história desportiva.

Os 8,90 metros entraram imediatamente no imaginário do salto em comprimento. Desde 1901, quando as marcas começaram a ser registadas, o recorde mundial nunca tinha sido batido por mais de 13 centímetros. Agora, de repente, Bob Beamon aumentava mais de meio metro. Seria impensável, mas aconteceu. A altitude da Cidade do México pode ter ajudado, mas o salto nunca deixaria de ser gigantesco.

Bob Beamon deixou-se levar pelo momento e, apesar de ter saltado mais uma vez, acabou por abdicar dos quatro últimos saltos a que tinha direito. Feitas as contas, conquistou a medalha de ouro com uns impressionantes 71 centímetros de vantagem sobre Klaus Beer.

A carreira olímpica de Beamon acabou ali e, apesar de ter chegado a ser escolhido no draft da NBA, pelos Phoenix Suns, nunca chegou a ser utilizado num jogo. O atletismo pode ter ficado para trás, mas a sua marca resistiu à passagem do tempo e foi preciso esperar por 30 de agosto de 1991, nos Mundiais de Atletismo em Tóquio, para que alguém conseguisse finalmente superar o registo: Mike Powell saltou 8,95 metros, naquela que ainda hoje é a melhor marca de sempre.

O salto de Bob Beamon mantém-se como segundo salto mais distante na história do comprimento. Pode não ter sido o maior mas, tendo em conta as proporções, ainda é recordado como «o» salto. Ninguém acreditou que pudesse acontecer, poucos perceberam quando de facto foi feito e todos recordam hoje onde estavam e como o viveram.

22 de Abril, 2020

Dick Fosbury. O homem que reinventou o salto em altura

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

Dick Fosbury

Pode não ter sido o primeiro mas foi aquele que mostrou a nova técnica de ultrapassar uma fasquia ao mundo. Nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, Fosbury virou as costas ao colchão, saltou triunfalmente até aos 2,24 metros, estabeleceu um novo recorde olímpico e viu a técnica ser batizada de «Fosbury Flop».

Dick Fosbury não é visto como um dos melhores atletas olímpicos da história. Nem podia ser. Conquistou uma medalha de ouro no salto em altura em 1968, é certo, mas foi a sua primeira e única presença. Era jovem, tinha uma carreira longa pela frente mas nem sequer conseguiu garantir o apuramento para Munique-1972, dedicando-se à engenharia civil.

Olimpicamente falando, Fosbury foi um epifenómeno. Mas na história da evolução do atletismo tem um dos papéis mais importantes. Não foi o criador, é certo, uma vez que há relatos de outros atletas, mais discretos, terem tentado fazer o mesmo antes, mas ninguém como ele conseguiu mostrar ao mundo como uma nova técnica no salto em altura podia ser tão mais vantajosa.

Até 1968, os atletas tentavam superar a fasquia com uma perna de cada vez, com o salto em tesoura ou com rolamento ventral. Depois, tudo mudou. Fosbury corria diagonalmente na direção da fasquia, fazia a chamada com o pé mais distante, virava as costas ao colchão e superava a fasquia primeiro com a cabeça e só depois com o resto do corpo. Hoje é uma técnica banal, mas na altura surpreendeu o mundo.

O desempenho de Dick Fosbury foi sensacional. Saltou sempre à primeira tentativa até aos 2,20 metros, numa altura em que já tinha o pódio assegurado. O primeiro derrube aconteceu aos 2,24 mas, mesmo aí, conseguiu ultrapassar a fasquia, fixando um novo recorde olímpico. Com a medalha de ouro no bolso ainda tentou o recorde mundial, a 2,29 metros, mas caiu com três nulos.

Mais do que um grande campeão olímpico, Fosbury foi um medalhado revolucionário. Mostrar a nova técnica com um sucesso estrondoso numa prova global mudou a forma como os atletas se preparavam e, um pouco por todo o mundo, as novas fornadas de saltadores já cresciam a utilizar o Fosbury Flop.

Com uma carreira tão meteórica – não venceu mais nada de grande valor – é legítimo dizer que o norte-americano deu muito mais ao desporto do que recebeu. Foi o responsável pelo momento de transformação mais radical na história do atletismo. Isso ninguém mudará.

22 de Abril, 2020

Vera Caslavska. Sedução mexicana com casamento à mistura

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

Vera Caslavska

Ginasta checoslovaca já não tinha nada a provar mas a saída de cena de Larisa Latynina abriu espaço para que pudesse ser a maior sensação da ginástica artística. Caslavska conseguiu seduzir o público mexicano, conquistou um total de seis medalhas e… casou ainda na Cidade do México, perante cerca de dez mil pessoas.

Vera Caslavska já tinha sido a ginasta mais espetacular nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964, mas teve de lidar com o facto de continuar a ser a sombra de Larisa Latynina, a soviética que atingiu o recorde total de 18 medalhas.

Quatro anos mais tarde, na Cidade do México, com a rival retirada, Caslavska não teve qualquer dificuldade ao repetir exibições de sonho e afirmar-se em definitivo como a melhor ginasta do mundo. Se em 1964 conquistara três títulos olímpicos e uma medalha de prata, em 1968 elevou a fasquia e saiu da edição mexicana com quatro medalhas de ouro e duas de prata. E o registo teria sido ainda melhor se… não houvesse uma pressão tão grande por parte da comitiva soviética.

Para não variar, os Jogos Olímpicos tiveram uma forte dinâmica política a interferir nos eventos. Os festejos de braço elevado e punho cerrado de Tommy Smith e John Carlos marcaram a edição e tornaram-se os mais memoráveis, mas a situação de tensão entre Checoslováquia e União Soviética teve muitas repercussões no outro lado do Atlântico.

Caslavska fez o possível. Foi obrigada a dividir a medalha de ouro com Larisa Petrik na prova de solo – depois de os juízes terem sentido pressão da comitiva soviética para melhorar a nota da ginasta – e foi suficientemente subtil na cerimónia protocolar para demonstrar o desagrado com a presença estrangeira em Praga, olhando para baixo e para o lado enquanto tocava o hino soviético.

O público tomou o lado de Caslavska. A ginasta seduziu os mexicanos dentro e fora do pavilhão. Com a sua graciosidade, confirmou tudo o que se esperava dela e até nas pequenas coisas fazia questão de agradar ao público, como quando escolheu uma música nacional para uma das suas rotinas.

Vera podia dar-se ao luxo disso… e muito mais. A sua supremacia no panorama mundial da ginástica era tão grande que conseguiu tornar-se a primeira – e única – atleta da história a revalidar o título olímpico do concurso completo num momento em que também era campeã mundial e campeã europeia.

Quando se despediu dos Jogos Olímpicos – naquela que foi a sua última edição -, com um total de sete títulos olímpicos e quatro medalhas de prata, Vera Caslavska aproveitou o carinho dos adeptos para casar ainda na Cidade do México. O noivo? O também atleta Josef Odlozil. A assistência? Cerca de dez mil pessoas que não quiseram deixar passar a oportunidade de marcar presença no matrimónio de uma das coqueluches do evento.

A carreira de Vera Caslavska terminou ali e o pior ainda estava para vir. De regresso à Checoslováquia, foi vítima das suas próprias ações. Os soviéticos controlavam o país e fizeram questão de demonstrar que tinham ficado desagradados com as brincadeiras da checoslovaca durante os Jogos Olímpicos. Obrigaram-na a ficar desempregada e controlaram os seus movimentos.

Só muito mais tarde, após a Revolução de Veludo, Vera Caslavska voltou a ser verdadeiramente livre. E reconhecida no próprio país.

21 de Abril, 2020

Kip Keino. Aquecer para o ouro a fugir ao trânsito

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

Kip Keino

Corredor queniano saiu tarde para o Estádio Olímpico e corria o risco de falhar a final dos 1500 metros. Abandonou o autocarro, percorreu o caminho que faltava e não mostrou qualquer tipo de desgaste rumo ao primeiro título olímpico da sua carreira.

A história de Kipchoge Keino nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, está longe de ser um mar de rosas. Aliás, se o queniano tivesse seguido à risca as recomendações médicas, possivelmente nem sequer teria feito a viagem transcontinental para competir no México.

O problema? Pedras na vesícula biliar. O desgaste acumulado poderia ser fatal para Keino e, mesmo que não tivesse marcas graves na sua saúde, seria sempre obrigado a sofrer mais do que o costume, sobretudo se pensarmos que tinha previsto competir nas provas dos 10 000, 5000 e 1500 metros.

A estreia confirmou as piores previsões médicas. Keino liderava a prova mas, a poucas voltas do fim, sofreu dores lancinantes e cambaleou até cair, já fora de pista. O queniano foi assistido e, apesar de saber que seria desqualificado, voltou ao tartan e insistiu em completar a distância.

Mais tarde, nos 5000 metros, chegou à medalha de prata. Recuperado das dores e sem dificuldades aparentes, o corredor disputou o título até à última com o tunisino Mohammed Gammoudi e foi derrotado por apenas 15 centésimos de segundo.

A terceira e última oportunidade para chegar ao lugar mais alto no pódio chegaria nos 1500 metros. Keino era um dos grandes favoritos mas… deixou-se dormir. Literalmente. Quando percebeu o erro cometido, apanhou o primeiro autocarro para o Estádio Olímpico que conseguiu encontrar mas o trânsito caótico da capital mexicana não ajudou. Ao ver a vida a andar para trás, percebeu que situações desesperadas exigem medidas desesperadas. Ou seja, sair do autocarro e ir a correr até ao estádio, que na altura estava ainda a cerca de três quilómetros, era a única solução.

Keino chegou a tempo – a escassos 20 minutos do arranque da prova – mas estava naturalmente mais desgastado do que a concorrência. Por outro lado, tinha feito o aquecimento perfeito. E foi precisamente isso que demonstrou na pista, dominando a corrida do início ao fim, terminando no primeiro lugar com um tempo de 3:34.91 – com quase três segundos de vantagem sobre o principal favorito Jim Ryun – e estabelecendo um novo recorde olímpico.

Cidade do México mostrou ser uma edição com muitas pedras no caminho – e não só -, mas Kip Keino apanhou-as todas e trocou-as por duas medalhas: uma de ouro e outra de prata. Estávamos apenas no início da hegemonia queniana.

21 de Abril, 2020

Irmãos Pettersson. A equipa de quatro que foi prata no contrarrelógio

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

Gösta Petterson à direita

Gösta, Sture, Erik e Tomas eram quatro irmãos a representar a Suécia e brilharam na prova de contrarrelógio por equipas, em ciclismo de estrada, nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, ficando apenas atrás da equipa holandesa liderada por Joop Zoetemelk. Depois, Gösta tomou-lhe o… gosto e garantiu o bronze na prova de estrada.

Gösta Artur Roland Pettersson nasceu a 23 de outubro de 1940. Sture Helge Vilhelm Pettersson nasceu a 30 de setembro de 1942. Erik Hakan Pettersson nasceu a 4 de abril de 1944. Finalmente, Rune Tomas Pettersson nasceu a 15 de maio de 1947.

Os quatro irmãos cresceram juntos, partilhavam uma paixão comum pelo ciclismo e os Jogos Olímpicos da Cidade do México foram a oportunidade perfeita para mostrarem ao mundo a sua qualidade… coletiva. O mais velho tinha 28 anos, o mais novo 21. Dificilmente poderiam voltar a ter um intervalo tão bom para fazer a diferença, por isso fizeram questão de pedalar para o estrelato.

Quatro anos antes, em Tóquio, os três irmãos mais velhos já tinham conquistado uma medalha de bronze na prova de contrarrelógio por equipas, com o «estranho» Sven Hamrin a surgir na posição de Tomas, na altura ainda com 17 anos.

Depois, em 1968, a 15 de outubro, na mesma prova, os quatro irmãos formaram exclusivamente a equipa sueca e garantiram a medalha de prata, concluindo os 104 quilómetros da prova em duas horas, nove minutos e 26 segundos. Podem ter ficado a quase um minuto e meio da Holanda, mas fizeram história… familiar e olímpica.

Os irmãos Pettersson não eram desconhecidos. Campeões do mundo em 1967 e 1968, sabiam perfeitamente as forças e fraquezas de cada um e desempenhavam as suas funções na perfeição. Tinham talentos diferentes e capacidades individuais muito distintas mas ali eram apenas um nome em prova: Pettersson.

Uma semana depois, na prova individual de estrada, Gösta voltou a demonstrar a razão para ser considerado o irmão mais talentoso e garantiu a medalha de bronze, atrás do dinamarquês Leif Mortensen e do italiano Pierfranco Vianelli.

A vida pós-olímpica mudou muito cada um deles. Depois de um terceiro e derradeiro título mundial em 1969, Gösta foi o único que conseguiu dar um verdadeiro salto para o profissionalismo, notabilizando-se nas grandes voltas: foi terceiro no Tour em 1970 e venceu o Giro em 1971.

20 de Abril, 2020

Hans-Gunnar Liljenwall. Quando a cerveja fez história olímpica no doping

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

Hans-Gunnar Liljenwall

Sueco estava nervoso e queria ajudar a equipa a garantir uma medalha no pentatlo moderno. As cervejas que bebeu para acalmar antes de participar na prova de tiro foram… um tiro pela culatra e Liljenwall foi o responsável por a equipa ser forçada a devolver o bronze olímpico.

Chama-se Hans-Gunnar Liljenwall e entrou na história dos Jogos Olímpicos pelos piores motivos, na Cidade do México, em 1968, apenas um ano depois de o Comité Olímpico Internacional ter introduzido um regulamento sobre substâncias proibidas.

Liljenwall, sueco de nascimento, disputava as provas de pentatlo moderno e já tinha competido quatro anos antes, em Tóquio. Na competição individual esteve muito apagado mas na coletiva, ao lado do campeão individual, Björn Ferm, e de Hans Jacobsen, o pódio era uma possibilidade muito forte.

A sua participação no tiro tinha tudo para ser decisiva mas o sueco deixou-se dominar pelo nervosismo. Para acalmar o estado de espírito, decidiu beber duas cervejas (a quantidade é a confissão do próprio) momentos antes de começar a disparar.

O tiro saiu-lhe pela culatra. A equipa sueca, que garantira o terceiro lugar e a respetiva medalha de bronze, foi desqualificada depois de o controlo antidoping ter verificado que Liljenwall acusara uma quantidade de álcool acima do permitido.

O caso parece caricato mas marcou o início de uma nova era nos Jogos Olímpicos. Depois de mais de meio século em que os atletas recorriam a todo o tipo de artimanhas e misturas explosivas de produtos para ganhar uma vantagem teórica, a criação de uma lista negra ajudou, gradualmente, a limpar a competição.

Os casos continuaram a ocorrer – e continuarão no futuro – e ajudaram a manchar o nome de grandes figuras como Ben Johnson e Marion Jones, mas é indesmentível que o controlo é hoje muito maior, acompanhando o crescente profissionalismo que os Jogos Olímpicos têm vindo a exigir dos seus atletas, sobretudo para uma ideia que começou por ser exclusiva a atletas amadores.

20 de Abril, 2020

John Stephen Akhwari. O homem que tinha de terminar a maratona

Especial Jogos Olímpicos (México-1968)

Rui Pedro Silva

John Stephen Akhwari

Atleta da Tanzânia foi uma das figuras da maratona nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, não por ter vencido ou terminado no pódio, mas sim pelo exemplo de coragem e determinação que deu ao insistir que queria terminar a prova apesar dos problemas físicos.

«O meu país não me enviou numa viagem de cinco mil milhas para começar uma corrida, enviou-me para terminar», afirmou um muito debilitado John Stephen Akhwari a 20 de outubro, numa altura em que o estádio estava praticamente deserto e já ninguém esperava por corredores da maratona.

Os resultados que entraram para a história foram outros. O etíope Mamo Wolde garantiu a medalha de ouro com um tempo de duas horas, 20 minutos e 26 segundos, com mais de três minutos de vantagem sobre o segundo classificado, mas foi outro africano a dominar a atenção mediática.

O tanzaniano John Stephen Akhwari foi o 57.º e último atleta a terminar a prova da maratona. Podia ter feito como Abebe Bikila, na altura bicampeão olímpico, e desistir, mas o orgulho não o deixou. Terminou a mais de 21 minutos do penúltimo classificado mas havia uma explicação para tudo.

Akhwari estava lesionado. Gravemente lesionado. Depois de já ter sofrido cãibras numa primeira fase da prova, acabou por ir ao chão numa confusão entre corredores à procura do melhor espaço. Resultado? Ficou com o ombro muito mal tratado e… deslocou o joelho. O resto da corrida foi uma provação: a um ritmo mais lento, com um esgar de dor insuportável e um único pensamento na cabeça: terminar, terminar, terminar.

O atleta da Tanzânia não seria candidato ao pódio mas estava longe de ser alguém sem créditos. Naquele dia não estava destinado. Foi assistido pela equipa médica mas insistiu em regressar à estrada. E assim continuou até, já de noite, cruzar a meta. Aí, sim, o objetivo principal estava alcançado. Terminar.

17 de Abril, 2020

Larisa Latynina. O último capítulo de uma lenda olímpica

Especial Jogos Olímpicos (Tóquio-1964)

Rui Pedro Silva

Larisa Latynina

De meia dúzia em meia dúzia. Foi assim que a lendária ginasta da União Soviética ultrapassou patamares até atingir as 18 medalhas olímpicas nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. Na terceira presença, com 29 anos, voltou a bater recordes. Uns demoraram décadas a ser batidos, outros continuam de pedra e cal.

A história da vida de Larisa Latynina tem uma faceta demasiado capitalista para quem nasceu e cresceu na União Soviética. A ginasta chegou onde chegou por ser vítima da constante balança entre oferta e procura.

Nascida na Ucrânia, em 1934, tinha o sonho de ser bailarina. E foi esse objetivo que acalentou até aos 11 anos, altura em que o salão onde praticava fechou. Sem uma oferta idêntica na cidade, foi obrigada a procurar uma alternativa que lhe permitisse alcançar o mesmo prazer e, já agora, pudesse pôr em prática as suas características inatas e adquiridas enquanto praticou ballet.

A ginástica foi uma escolha natural. Não era o grande sonho da sua vida, mas acabou por ser o seu futuro. De uma forma que ninguém podia imaginar. Passo após passo, Latynina tornou-se uma das ginastas mais talentosas em toda a União Soviética e, quando chegou aos Jogos Olímpicos de Melbourne, em 1956, já era uma forte ameaça às medalhas.

Foi precisamente isso que aconteceu. Tinha 21 anos, o mundo pela frente, e não desiludiu, conquistando um total de seis medalhas, com destaque para quatro títulos olímpicos (prova por equipas, concurso completo, cavalo e solo). Em Roma, em 1960, repetiu a façanha, desta vez com três medalhas de ouro, duas de prata e uma de bronze.

Quando chegou ao Japão, em 1964, Latynina era já uma das melhores atletas olímpicas da história. Extravasava a ginástica artística e era reconhecida pelo seu talento e resultados impressionantes, fosse em Jogos Olímpicos ou em Mundiais da modalidade. Em Tóquio, Latynina estava já na fase descendente da carreira – não voltou a ganhar um título em Jogos, Mundiais ou Europeus depois disso – e teve de defrontar a checoslovaca Vera Caslavska, a nova sensação da modalidade.

A concorrência era grande mas o balanço final trouxe novamente seis medalhas, apesar de ser a participação mais «modesta» da ginasta: duas medalhas de ouro (com destaque para nova revalidação no solo), duas de prata e dois de bronze.

O balanço final não deixou dúvidas. Atingiu as 18 medalhas em Jogos Olímpicos, um feito que só viria a ser ultrapassado por Michael Phelps em Londres-2012, e elevou para 14 o número de medalhas em provas individuais. Quem a bateu? Lá está, Phelps, no Rio de Janeiro-2016.

Hoje, aos 84 anos, Latynina continua a ser a mulher mais medalhada na história dos Jogos Olímpicos e a ginasta – mulher ou homem – com mais pódios. E tudo isto em apenas três edições. Era um talento nato, encontrado graças ao fim do salão de ballet. Há males que vêm por bem.

16 de Abril, 2020

Bob Hayes. Da supremacia olímpica à Super Bowl

Especial Jogos Olímpicos (Tóquio-1964)

Rui Pedro Silva

Bob Hayes

A medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964 representou a 49.ª vitória consecutiva em corridas dos 100 metros. Depois de alcançar tudo o que havia para conquistar, mudou de ares e dedicou-se ao futebol americano. Na NFL, fez grande parte da carreira ao serviço dos Dallas Cowboys e conquistou uma Super Bowl.

«Senhor Presidente, ele é um jogador de futebol americano. É uma coincidência que seja também o homem mais rápido do mundo.» Foi desta forma que Jake Gaither, treinador da equipa de futebol americano da Universidade Florida A&M respondeu ao presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson, quando este lhe pediu para guardar Bob Hayes para os Jogos Olímpicos de Tóquio.

Hayes tinha um talento especial e desde cedo na sua vida que evidenciou uma capacidade estupenda para fazer a diferença no futebol americano e no atletismo. A rapidez era o denominador comum e, ainda hoje, a característica que o imortalizou.

Por muito que Gaither não quisesse, Bob Hayes ia disputar os Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964. Tinha apenas 21 anos e um historial de triunfos impressionante. Fosse qual fosse a distância de velocidade, o norte-americano de Jacksonville brilhava ao mais alto nível e não dava hipóteses à concorrência.

Foi o que aconteceu no Japão, durante todas as etapas da prova dos 100 metros. Venceu a oitava série das eliminatórias com um tempo de 10,4 segundos, baixou para 10,3 segundos na segunda ronda e registou um fantástico tempo de 9,9 segundos na meia-final. A marca seria um novo recorde mundial se não tivesse sido anulada por causa do vento. Na final, porém, fez um tempo redondo oficial de 10 segundos e igualou a melhor marca mundial.

Vencer, vencer, vencer. Era a única coisa que Hayes sabia fazer. Naquele dia, a 15 de outubro, Bob Hayes garantiu a 49.º vitória consecutiva numa prova dos 100 metros. Mas a história ainda não tinha acabado. Na estafeta dos 4x100 metros, apesar de a equipa norte-americana não ser… grande coisa, juntou mais um ouro depois de ter recebido o testemunho na quinta posição e ter registado o tempo mais rápido alguma vez registado na distância: 8,60 segundos. Em comparação, também em 100 metros lançados numa estafeta, Usain Bolt nunca passou dos 8,65 segundos.

A glória olímpica resumiu-se ao Japão. Fiel ao argumento de Gaither, Bob Hayes dedicou-se de corpo e alma ao futebol americano e foi escolhido pelos Dallas Cowboys na sétima ronda do draft da NFL em 1964. Hayes representou a equipa do Texas entre 1965 e 1974 e a 16 de janeiro de 1972 tornou-se o primeiro – e único – homem da história a juntar o título da Super Bowl ao ouro olímpico. No jogo decisivo, o wide receiver somou uma corrida de 16 jardas e duas receções, a passe do lendário Roger Staubach, que acumularam 23 jardas.

15 de Abril, 2020

Dawn Fraser. Da tragédia familiar à glória olímpica

Especial Jogos Olímpicos (Tóquio-1964)

Rui Pedro Silva

Dawn Fraser

Australiana faz parte de uma elite exclusiva da natação que venceu a mesma prova individual em três edições diferentes dos Jogos Olímpicos. Mas antes de fazer história em Tóquio, em 1964, teve de superar o trauma de ter contribuído para a morte da mãe na sequência de um acidente de viação.

Dawn Fraser não era uma nadadora qualquer e o currículo fala por si. Venceu três medalhas em Melbourne-1956, três em Roma-1960 e duas em Tóquio-1964. Com um total de quatro títulos olímpicos e quatro pódios em provas individuais, a australiana nascida em setembro de 1937 estava talhada para fazer história.

A australiana era a rainha dos 100 metros livres. Foi essa prova que venceu, individualmente, nas três edições dos Jogos Olímpicos em que participou. Hoje, mais de 50 anos depois, o feito de revalidar duas vezes o mesmo título só foi igualado por duas pessoas: a húngara Krisztina Egerszegi nos 200 metros costas, entre Seul-1988 e Atlanta-1996 e, claro, Michael Phelps nos 100 metros mariposa, entre Atenas-2004 e Londres-2012.

Os feitos de Dawn Fraser não ficam por aqui. Foi a primeira nadadora a cumprir os 100 metros em menos de um minuto e deteve o recorde mundial da distância entre 1956 e 1972. Mas a participação em Tóquio esteve envolta em muito drama.

Primeiro, o pessoal. Em março, despistou-se ao volante de um automóvel onde também seguiam a mãe, a irmã e um primo e acabou por assistir à morte da mãe. A recuperação emocional foi longa mas não a impediu de marcar presença nas provas do Japão.

Aí, o drama foi substituído pela polémica, ao ser acusada de roubar a bandeira olímpica do Palácio do Imperador, já depois da sua participação. Negando sempre o sucedido, até por garantir que nunca na vida mergulharia nas águas sujas da fortificação, foi libertada sem acusação por parte dos japoneses. Em sentido contrário, começou por ser suspensa por dez anos pela federação australiana.

A carreira, para ela, terminou ali. Quando a verdade veio à tona e foi totalmente ilibada, já o mal estava feito e não tinha tempo para preparar a participação olímpica nos Jogos Olímpicos da Cidade do México em 1968, no ano em que completaria 31 primaveras.

A vida de Dawn Fraser evoluiu para a política, onde teve uma representação curta na Assembleia Legislativa, e mais recentemente foi notícia pelas suas declarações xenófobas, sugerindo aos tenistas Nick Kyrgios e Bernard Tomic que regressassem para os países dos pais.

«Sempre disse a verdade. Sempre me levaram a ser honesta e a dizer a verdade.» Palavra de Dawn Fraser, filha de pai nascido na Escócia.

14 de Abril, 2020

Anton Geesink. O holandês que se intrometeu no judo

Especial Jogos Olímpicos (Tóquio-1964)

Rui Pedro Silva

Anton Geesink

Holandês era campeão do mundo mas os japoneses acreditavam que o seu império não seria contestado nos Jogos Olímpicos que estavam a organizar, em Tóquio. Geesink foi igual a si mesmo e garantiu a medalha de ouro na categoria mais importante da modalidade que se estreava no evento. Foi o único título que escapou ao anfitrião.

Takehide Nakatani venceu na categoria de 68 quilos, Isao Okano na de 80 quilos e Isao Inokuma na de mais de 80 quilos. Este tri nipónico tinha tudo para ser suficientemente importante para que os japoneses vissem na estreia do judo em Jogos Olímpicos um sucesso, mas foi insuficiente.

O orgulho estava em jogo na «categoria aberta», onde eram permitidos atletas de todos os pesos e na qual o holandês Anton Geesink se assumia como uma das principais ameaças à tradição japonesa. Por esta altura, o holandês já era uma figura bem conhecida. Tinha sido campeão mundial em Paris, em 1961, derrotando Koji Sone, e dispensava apresentações.

Vivia-se um período diferente. O judo não tinha a atenção mundial e o título em França tinha servido de pouco mais do que um aviso aos japoneses. Nada mais interessava do que o maior palco do desporto mundial, os Jogos Olímpicos. O facto de serem organizados em Tóquio levou a que o Comité Olímpico Internacional abrisse espaço para a estreia da modalidade e, catapultados pelo entusiasmo, os japoneses estavam à espera de fazer o pleno.

Não conseguiram. O primeiro aviso surgiu logo na ronda de qualificação, quando Anton Geesink derrotou a principal esperança dos nipónicos: Akio Kaminaga. A partir daí, os dois atletas seguiram caminhos diferentes mas reencontraram-se na final, a 23 de outubro. O pavilhão aguardou ansiosamente pelo triunfo de Kaminaga mas Geesink mostrou ser mais forte e venceu depois de nove minutos e 33 segundos de combate.

Foi um choque. Ali, no maior palco mundial, a supremacia japonesa tinha sido debilitada pela capacidade, talento e mérito de um holandês. A surpresa, transmitida em todo o mundo, é vista, ainda hoje, como o momento que lançou o judo para a ribalta e permitiu o sucesso da modalidade a nível global.

Deixou de ser um nicho nacional no Japão e a supremacia começou a ser contestada, com frequência, por outros países. Nos mais recentes Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro, o Japão manteve a supremacia, com três títulos mundiais num total de 12 medalhas, mas também houve espaço para França, Rússia, Itália, Estados Unidos, Brasil, Eslovénia, Argentina, República Checa e Kosovo conquistarem medalhas de ouro

Sendo um dos desportos nacionais do Japão, o judo continua ser um bastião nipónico, mas Geesink começou a mostrar ao mundo que havia algo a fazer. Foi um verdadeiro pioneiro e uma pedra no sapato da mentalidade nipónica. Depois do Mundial de 1961, Geesink foi levado para o Japão por um treinador para combater com inúmeros judocas japoneses à espera de que um o pudesse derrotar. Nenhum conseguiu. Nem ali, nem nos Jogos Olímpicos.

Anton Geesink ia ter um lugar especial na história. E conquistou-o por mérito próprio.

13 de Abril, 2020

Ann Packer. Sorte de principiante deu recorde mundial

Especial Jogos Olímpicos (Tóquio-1964)

Rui Pedro Silva

Ann Packer

Chegar, ver e… fazer história. A britânica Ann Packer não tinha grande experiência nos 800 metros mas chegou a Tóquio, aventurou-se e... saiu do Japão com um novo recorde mundial. O atletismo feminino estava a dar os primeiros passos nas distâncias mais longas mas o feito continua a estar numa dimensão inacreditável.

O nome Lina Radke diz-lhe alguma coisa? A atleta alemã conquistou a medalha de ouro na prova dos 800 metros nos Jogos Olímpicos de 1928, em Amesterdão, na edição em que o Comité Olímpico Internacional começou a abrir finalmente as provas de atletismo às mulheres, mas o resultado foi desastroso.

A maior parte das atletas nunca tinha corrido a distância na vida e acabou num estado de exaustão tal que validou as reticências que a sociedade desportiva machista tinha sobre esta inovação. Havia portas que não se podiam voltar a fechar, mas a competição dos 800 metros femininos nuns Jogos Olímpicos só voltou a acontecer em 1960.

Quatro anos depois, em Tóquio-1964, vivia-se ainda uma fase muito prematura desta distância na variante feminina mas, ao contrário de grande parte das atletas de 1928, Ann Packer não se deixou vencer pelo esforço.

Nascida a 8 de março de 1942, em plena II Guerra Mundial, Packer mostrou, ao longo dos anos, valências em provas de velocidade, barreiras e saltos. Os 800 metros nunca estiveram na sua mira mas em 1964, em plenos Jogos Olímpicos, decidiu arriscar. O grande culpado? A desilusão da medalha de prata nos 400 metros.

Ann Packer chegou a pensar em abdicar de correr os 800 metros mas, impulsionada pelo seu noivo, voltou atrás e entrou na competição. Para Packer, correr esta distância nunca tinha sido uma prioridade. Nas provas em que tinha entrado na Grã-Bretanha, o objetivo tinha sido sempre ganhar resistência para se sentir mais à vontade nos 400 metros. Era uma iniciativa nobre e, ao mesmo tempo ingénua: «Não sabia nada sobre esta distância, mas este desconhecimento foi, provavelmente, uma vantagem. Não tinha limitações na cabeça sobre o que podia ou não fazer. A ignorância foi uma virtude».

A corrida de Ann Packer foi de trás para a frente mas incluiu um ataque letal a 150 metros da meta. A velocidade que conseguiu manter nos últimos metros valeu-lhe um tempo de 2:01.1 e significou um novo recorde mundial, com uma décima de vantagem sobre a marca registada pela australiana Dixie Willis, dois anos antes.

10 de Abril, 2020

Abebe Bikila. Descalço pela determinação e heroísmo

Especial Jogos Olímpicos (Roma-1960)

Rui Pedro Silva

Abebe Bikila

Chegou aos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, por acaso e saiu saudado como um herói. Ofereceu a primeira medalha de ouro à Etiópia e à África Negra e fê-lo descalço, garantindo uma vitória épica na prova da maratona.

«Foram necessários um milhão de soldados italianos para invadir a Etiópia, mas apenas um soldado etíope para conquistar Roma.» A expressão, imortalizada desde a vitória de Abebe Bikila nos Jogos Olímpicos em 1960, é pertinente. Naquele início de noite, na capital italiana, um etíope saiu da sombra para mostrar ao mundo o início de uma tradição que ia marcar o fundo e o meio-fundo do atletismo internacional.

Abebe Bikila vinha de uma família de pastores e servia como guarda-costas do imperador da Etiópia. Gostava de correr e deu nas vistas precisamente por isso, mas não o suficiente para ter lugar garantido na comitiva etíope em Roma. As dificuldades financeiras eram grandes e os responsáveis tinham de fazer escolhas difíceis, pelo que só depois de um compatriota seu, Wami Biratu, ter torcido o tornozelo a jogar… futebol, conseguiu o passaporte.

O suplente fez a viagem improvisada e sem… ténis apropriados. Durante a preparação, chegou a ser presenteado por uma marca de calçado desportivo mas, naquilo que hoje seria uma excelente manobra de marketing pelos rivais, os ténis não eram suficientemente confortáveis. Não tinham o tamanho certo e Bikila chegou à conclusão que estaria muito melhor a correr descalço do que com aquelas guilhotinas podológicas.

O desempenho de Bikila durante aqueles mais de 42 quilómetros foram tão suaves que nem sequer deu pela falta de calçado. Correndo praticamente sempre ao lado do marroquino Rhadi Bem Abdesselam, tinha decidido, em conferência com o treinador, que o sítio certo e simbólico para atacar seria na passagem final pelo obelisco de Axum, que tinha sido retirado da Etiópia por tropas italianas em 1935.

A mudança de ritmo foi fatal para o marroquino. Faltava pouco mais de um quilómetro e meio para a meta, junto ao Arco de Constantino, e Bikila transformou-se numa flecha até terminar a prova, com um novo recorde do mundo (2:15:16.2) e com mais de 25 de segundos de vantagem sobre o principal adversário. O neozelandês, Barry Magee, só chegou dois minutos depois.

«Queria que o mundo visse que o meu país, a Etiópia, sempre ganhou com determinação e heroísmo», disse, justificando a vontade de correr descalço.

Abebe Bikika tornou-se um herói africano e quatro anos depois, em Tóquio, foi o primeiro maratonista a revalidar o título olímpico, igualado apenas pelo alemão oriental Waldemar Cierpinski em 1980.

09 de Abril, 2020

Cassius Clay. A inocência de um campeão adolescente

Especial Jogos Olímpicos (Roma-1960)

Rui Pedro Silva

Cassius Clay

Tinha apenas 18 anos mas chegou aos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, com 100 vitórias em 108 combates. Não era o favorito à vitória – grande parte da imprensa nem sequer o conhecia – mas o seu carisma e personalidade chegaram ao pódio ainda antes do seu talento. Foi o ponto de partida para uma das figuras desportivas mais importantes do século XX.

Os Estados Unidos viviam um período conturbado, com a segregação racial a ser cada vez mais contestada dia após dia, mas Cassius Clay ainda não era Muhammad Ali. Era apenas um adolescente, acabado de sair do secundário, e sem opiniões muito vincadas sobre o tema. Era inocente, com medo das pequenas coisas – conta a lenda que fez a viagem de avião até Roma com um para-quedas montado – e interessado apenas em mostrar ao mundo quem era.

A personalidade era cativante. Podia não ter o mesmo nível de conforto que lhe associamos mais tarde, mas não precisou de muito para se tornar uma espécie de coqueluche da Aldeia Olímpica. Os atletas gostavam dele e os jornalistas sonhavam com um grande resultado que lhes permitisse escrever mais e mais sobre aquele afro-americano que tinha tanta coisa para contar.

Mas Cassius Clay não era favorito. Com 18 anos, e apesar das 100 vitórias em 108 combates na carreira, tinha bastante menos experiência do que os adversários. Porém, assalto após assalto, ronda após ronda, demonstrou ser um diamante em formação.

Yvon Becaus foi o primeiro adversário. Clay só precisou de dois assaltos para eliminar o belga mas não fugiu aos elogios: «É o homem mais forte que já conheci». E assim continuou: o soviético Gennady Shatkov foi afastado nos quartos de final depois de uma decisão unânime e o australiano Tony Madigan teve um fim idêntico na meia-final.

O derradeiro adversário rumo ao ouro olímpico – o momento que marca o início do fenómeno Cassius Clay/Muhammad Ali – foi Zbigniew Pietrzykowski. O polaco demonstrou por que era considerado o principal favorito no início do evento e golpeou Clay como nunca até então, mas o norte-americano, fiel a si mesmo, recuperou, partiu para cima do europeu e garantiu a medalha de ouro em mais uma decisão unânime dos cinco juízes.

Foi neste momento que Cassius Clay foi apanhado pela primeira vez no meio de uma guerra política, quando um jornalista soviético o questionou sobre os espaços vedados a negros nos Estados Unidos. Num tom radicalmente oposto ao que viria a ser a sua imagem de marca, Clay encostou a polémica às cordas e relembrou que por cada sítio onde não podia comer, havia outro que podia frequentar.

O orgulho de ser campeão olímpico valeu-lhe de pouco no regresso a casa. Cassius Clay começou a sentir na pele a essência da pergunta do jornalista soviético e desenvolveu progressivamente um sentimento de revolta contra a escravatura, a segregação racial e os direitos civis. Tornou-se um crítico da Guerra do Vietname, recusando combater, e pôs em risco a sua carreira como pugilista profissional.

Cassius Clay deu origem a Muhammad Ali, quatro anos depois, e o boxe viu também nascer e crescer um dos melhores pugilistas da história. A personalidade e o carisma estavam lá, a experiência e o dom da oratória surgiram com o tempo. Ano após ano, tornou-se cada vez mais uma lenda do desporto e a homenagem nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, na cidade que viu nascer e crescer Martin Luther King Jr., foi tão natural como a sua sede… por triunfos.

Podia não ser o mesmo homem. Podia estar afetado pela doença de Parkinson. Mas naquela noite, ao acender a pira olímpica no estádio, Muhammad Ali recuperou a chama. No evento que o tinha apresentado ao mundo. Foi poético.

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