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É Desporto

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31 de Março, 2020

Alain Mimoun. Quando a sombra ganhou um lugar ao sol

Especial Jogos Olímpicos (Melbourne-1956)

Rui Pedro Silva

Alain Mimoun

Francês chegou aos Jogos Olímpicos de Melbourne, em 1956, com três medalhas de prata no atletismo nas edições anteriores. O que tinham estas três corridas em comum? Ficara sempre atrás de Emil Zatopek, a locomotiva humana. Na Austrália, finalmente, na prova da maratona, conseguiu ganhar um lugar ao sol e conquistar o tão ansiado título olímpico. Tinha quase 36 anos.

A história diz-nos que ninguém se lembra de quem ficou em segundo mas não é bem assim. Uma coisa é ficar em segundo uma vez, outra radicalmente diferente é quem faz escola em terminar repetidamente no primeiro lugar… dos últimos. Durante quatro anos essa foi a história do francês Alain Mimou nos Jogos Olímpicos. E sempre por causa do checoslovaco Emil Zatopek.

Tudo começou em Londres-1948, na prova dos 10 000 metros. Alain Mimoun garantiu uma medalha para a França mas terminou a final a 47,8 segundos do campeão. Sem hipótese. Quatro anos mais tarde, em Helsínquia, o gaulês de origem argelina surgiu com esperanças redobradas.

À semelhança da estreia, ia correr os 5000 e os 10 000. Mas, desta feita, sentia-se com capacidade para chegar ao pódio em ambas – em 1948 fora afastado nas eliminatórias de acesso à final dos 5000.

O reencontro com Zatopek deu-se precisamente nos 10 000 metros. O desfecho? O mesmo de sempre: recorde olímpico para o checoslovaco e Mimoun no segundo posto, a 15,8 segundos. Comparado com a edição anterior, onde terminara a mais de 300 metros do vencedor, era um enorme progresso. Mas insuficiente ainda assim.

Na prova mais curta, o ouro foi decidido até à última. Mimoun forçou Zatopek até ao último metro mas perdeu por oito décimas de segundo, num novo recorde olímpico para o adversário. O frente-a-frente era fatal para Mimoun: três duelos, três medalhas de prata.

Em 1956, na derradeira oportunidade, e já com 35 anos, Alain Mimoun juntou a maratona aos 10 000 metros. Na prova onde dera mais cartas, demonstrou que já não tinha a mesma capacidade, terminando em 12.º, a mais de um minuto e meio do vencedor, o soviético Vladimir Kuts. Na maratona, porém, a conversa foi diferente.

Havia Alain Mimoun. E havia Emil Zatopek. O checoslovaco era o campeão olímpico em titulo mas os problemas físicos não lhe permitiram alcançar melhor do que o sexto lugar, com duas horas, 29 minutos e 34 segundos. Ficou a mais de quatro minutos e meio da medalha de ouro, alcançada por… Alain Mimoun.

Com um tempo redondo de duas horas e 25 minutos, Mimoun despediu-se com a chave de ouro da sua carreira olímpica, conquistando a medalha que tentava há oito anos sem sucesso. O calor abrasador sobre o qual se disputou a prova pode ter servido de vantagem e Mimoun não se sentiu rogado.

A motivação estava nos píncaros. Tinha acabado de saber que nascera a sua filha e não conseguia ignorar o facto de esta ser a sua última oportunidade. A correr com o 13, um número que lhe dava sorte, fez uma prova irrepreensível e alcançou finalmente o desejado.

Os duelos com Zatopek foram tão memoráveis que Mimoun esperou que o seu adversário cruzasse a meta para lhe contar que também já era campeão olímpico. O checoslovaco, a recuperar de uma operação a uma hérnia, deu-lhe os parabéns e mostrou felicidade genuína. «Para mim, isso foi melhor do que uma medalha», recordou Mimoun.  

30 de Março, 2020

Murray Rose. O nadador que pôs o veganismo na moda

Especial Jogos Olímpicos (Melbourne-1956)

Rui Pedro Silva

Murray Rose

Nadador brilhou nos Jogos Olímpicos de Melbourne, em 1956, ao conquistar três medalhas de ouro. Era apenas um adolescente, com 17 anos, e a sua dieta, imposta pelos pais, tornou-se imediatamente famosa ao ponto de começar a ser imitada em massa pelos australianos.

Organizar uma edição dos Jogos Olímpicos dá sempre um alento especial aos atletas. Isso continua a acontecer no século XXI mas os resultados práticos em meados do século passado eram ainda mais esclarecedores.

Viajar pelo mundo para participar num evento desportivo era mais complicado e a tendência de o país anfitrião ter sempre mais atletas e registar um crescimento significativo nas medalhas eram constantes. Ao verificarmos a evolução da Austrália, um país literalmente longe de tudo, percebemos como a organização dos Jogos em 1956, em Melbourne, teve efeitos claros.

Com atletas nos Jogos desde 1896, a Austrália nunca tinha apresentado uma comitiva superior a 85 elementos. Em 1956, surgiu com 314 (!). Até então contava com um total de 19 medalhas de ouro, 14 de prata e 17 de bronze. Mas só em Melbourne conquistou 13 títulos, oito medalhas de prata e 14 de bronze.

Não há dúvida do impacto que os Jogos tiveram. Da mesma forma, é irrefutável dizer que a natação serviu de cabeça-de-cartaz da participação australiana, contribuindo com oito dos 13 títulos olímpicos.

No meio das águas de Melbourne, houve um adolescente de 17 anos a destacar-se: Murray Rose. Nascido em Inglaterra em 1939, mudou-se com os pais para a Austrália logo em 1940 para escapar à II Guerra Mundial. Longe dos conflitos, na medida do possível, cresceu com água por todos os lados e tornou-se um exímio nadador.

Em 1956, já com 17 anos, foi a coqueluche da comitiva australiana, conquistando a medalha de ouro nos 400 e 1500 metros livres, e ainda na estafeta dos 4x200 metros livres.

Ser famoso alertou os australianos para a sua vida e houve um pormenor que se destacou entre os demais: Murray Rose tinha uma dieta vegan, baseada em algas. Os pais tinham-lhe imposto esta alimentação alternativa desde pequeno e muitos acharam que este era o segredo para os seus resultados. Com a descoberta da fórmula mágica, foram muitos os australianos que decidiram enveredar pelo mesmo caminho, tentando alcançar resultados idênticos… sem sucesso.

Murray Rose tinha um potencial único e voltou a mostrá-lo em Roma-1960, com mais três medalhas – uma para cada lugar no pódio.

Depois da vida de atleta, Murray Rose teve uma vida muito ligada à representação e ao comentário desportivo, com destaque para os Jogos Olímpicos. Foi viver para os Estados Unidos, trabalhou também na área de marketing e… começou a comer carne.

27 de Março, 2020

Nina Romashkova. A primeira campeã olímpica soviética

Especial Jogos Olímpicos (Helsínquia-1952)

Rui Pedro Silva

Nina Romashkova

Lançadora do disco não fazia ideia mas a vencer a prova nos Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952, estava a escrever o primeiro capítulo brilhante de uma das maiores potências de sempre da prova.

A estatística é esmagadora. A União Soviética conquistou um total de 1006 medalhas em edições dos Jogos Olímpicos de Verão e 393 delas foram de ouro. Os atletas subiram ao lugar mais alto do pódio num total de 22 modalidades diferentes, da ginástica ao tiro com arco, mas foi no atletismo que se escreveu a primeira página. Por causa de Nina Romashkova.

Os Jogos Olímpicos de Helsínquia marcaram a primeira participação da União Soviética. A comitiva de 295 atletas prometia muitas medalhas. E cumpriu, com 22 de ouro, 30 de prata e 19 de bronze. O atletismo garantiu 17 medalhas mas apenas dois títulos, ambos no feminino, ambos em lançamentos.

Galina Zybina pode ter batido o recorde do mundo no lançamento do peso, com uma marca de 15,28 metros, mas foi Nina Romashkova que inaugurou as conquistas soviéticas no disco.

Interessada no atletismo desde 1947, encontrou no lançamento do disco a sua maior paixão. A progressão foi meteórica e tornou-se rapidamente a crónica campeã nacional. Quando participou nos Jogos Olímpicos, a medalha era uma expectativa forte mas estava longe de imaginar que iria figurar na história desta maneira.

Na qualificação, lançou 45,05 metros e ultrapassou com muita facilidade o mínimo de 36 exigido para atingir a final. Depois, com medalhas em jogo, a soviética brilhou numa competição… fratricida. O pódio foi todo para atletas da União Soviética: Nina Dumbadze foi bronze com 46,29 metros, Yelisaveta Bagriantseva assegurou a prata com 47,08 metros e Nina Romashkova estabeleceu um novo recorde olímpico de 51,42 metros para garantir o ansiado ouro.

«Só depois de ter sentido aquele círculo dourado pesado na minha mão é que me apercebi do que se tinha passado. Sou a primeira campeã olímpica soviética. A primeira recordista da 15.ª olimpíada. As lágrimas caíam pelos meus olhos, estava tão feliz», recordou mais tarde.

A carreira olímpica de Romashkova prosseguiu nas duas edições seguintes, conquistando o bronze em Melbourne-1956 e o ouro em Roma-1960. Pelo meio, em Londres, a caminho de um meeting, foi apanhada a roubar chapéus num estabelecimento comercial e chamada a julgamento.

De um dia para o outro, e com a conivência da embaixada soviética, Romashkova desapareceu e esteve seis semanas sem dar notícias. O conflito diplomático entre os dois países alastrou-se a uma bailarina do teatro Bolshoi, que se recusou a visitar Londres com medo de ser perseguida, e o Kremlin chamou o embaixador britânico para uma reunião. Do outro lado, os ingleses emitiram um mandado de detenção para Romashkova.

Quando finalmente apareceu, percebeu-se que tinha passado todas aquelas semanas na embaixada soviética. A atleta compareceu no tribunal, como estava previsto, mas foi libertada após pagamento de uma multa.

26 de Março, 2020

Lis Hartel. A vítima de poliomielite que foi pioneira na dressage

Especial Jogos Olímpicos (Helsínquia-1952)

Rui Pedro Silva

Lis Hartel

Os  Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952, foram os primeiros a permitir a participação de não-militares e mulheres nas provas de equestre. A dinamarquesa Lis Hartel aproveitou para se tornar a primeira mulher a ganhar uma medalha em direta competição com homens. O mais impressionante? Estava paralisada dos joelhos para baixo.

Um surto de poliomielite na Dinamarca deixou a vida de Lis Hartel em risco. Tinha 23 anos, estava grávida e, numa questão de dias, ficou com o corpo paralisado. Podia ser campeã nacional de dressage e ter uma filha para nascer mas, naquele momento, tudo tinha ficado em risco.

A vontade férrea de Lis ajudou. Através de um determinado processo de reabilitação, começou a recuperar sensibilidade em algumas partes do corpo, deu à luz uma filha saudável e fez questão de voltar a montar um cavalo. Os membros superiores tinham sido afetados e não estavam a 100% mas o pior surgiu nos inferiores: tinha ficado irremediavelmente paralisada dos joelhos para baixo.

A logística para voltar a montar era complicada. Precisava sempre de auxílio para subir ao cavalo e os desequilíbrios eram constantes, abrindo caminho para quedas feias que podiam ter consequências mais graves.

Lis Hartel escolheu a égua da família, Jubilee, e a ligação entre as duas foi crescendo até alcançar um patamar quase telepático. Incapaz de orientar a parceira através de pequenos toques com os pés, foi obrigada a desenvolver um sistema tão subtil como variações de peso, inclinações de costas e outras pequenas referências. Jubilee era, verdadeiramente, a extensão do corpo de Hartel.

Os resultados voltaram a aparecer e os Jogos Olímpicos de 1952 foram a oportunidade perfeita. Ao contrário das edições anteriores, o acesso estava não tinha condicionantes. Pela primeira vez numa prova, homens e mulheres estariam a competir pelas mesmas medalhas. E Lis Hartel, apesar de todas as dificuldades, não vacilou rumo a um lugar especial na história olímpica.

O par Hartel/Jubilee somou 541,5 pontos e garantiu a medalha de prata, ficando apenas atrás, por 15 pontos, do sueco Henri Saint Cyr e do Master Rufus. Mais do que a barreira física, Hartel derrubou a barreira dos sexos.

Lis Hartel tomou-lhe o gosto e repetiu a façanha quatro anos depois, nos Jogos Olímpicos de Melbourne… embora as provas de equestre se tenham realizado em Estocolmo devido às proibições de transporte de cavalos.

Com duas medalhas de prata, Lis Hartel abandonou a carreira desportiva e tornou-se uma importante voz de sensibilização para os problemas da poliomielite e para as vantagens da terapêutica adequada. Era o exemplo perfeito.

25 de Março, 2020

Emil Zatopek. O fiel sucessor de Paavo Nurmi

Especial Jogos Olímpicos (Helsínquia-1952)

Rui Pedro Silva

Emil Zatopek

Checoslovaco conseguiu um feito inédito nos Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952, ao conquistar a medalha de ouro nas provas dos 5000, dos 10000 metros e da maratona (na primeira vez que correu a prova). Motivado para garantir uma vitória confortável na competição oficiosa com a mulher, homenageou o seu ídolo da melhor maneira.

É praticamente impossível chegar à elite do desporto mundial sem ter referências. Há sempre alguém que ocupa o papel de modelo, de ídolo, de desempenho a imitar. Para Emil Zatopek, nascido na Checoslováquia a 19 de setembro de 1922, essa figura foi Paavo Nurmi. O finlandês tinha conquistado 12 medalhas olímpicas (nove de ouro) durante a década de 20 e era visto como o melhor correr da história.

«Quero ser como Paavo Nurmi! Quero ser como Paavo Nurmi! Quero ser como Paavo Nurmi!». A ideia não saía da mente de Zatopek quando começou a correr. Os feitos lendários do finlandês em Antuérpia, Paris e Amesterdão correram mundo e era ele o exemplo a seguir. E Zatopek demonstrou ter uma perseverança notável. Na estreia olímpica, em Londres-1948, ganhou os 10 000 metros e foi medalha de prata nos 5000. Quatro anos depois, ia reescrever história.

O palco era perfeito e convidava à passagem de testemunho. Em Helsínquia, com Paavo Nurmi a participar na cerimónia de abertura, Emil Zatopek inspirou-se para fazer o que nunca ninguém havia feito até então. E ninguém repetiu – e provavelmente nunca ninguém repetirá – até agora. Ganhar os 5000, os 10 000 e a maratona.

A aventura de Zatopek em terras de Nurmi divide-se, naturalmente, em três atos. Começou pelos 10 000 metros, onde era o crónico favorito, e estabeleceu um recorde olímpico (29:17.0), ganhando com mais de 15 segundos de vantagem sobre o francês Alain Mimoun. O início era perfeito, mas a história estava apenas a começar.

A final dos 5000 metros, disputada quatro dias depois, trouxe o primeiro momento de sofrimento a Zatopek. A concorrência era encabeçada, uma vez mais, por Mimoun, e quatro anos antes o checoslovaco tinha sido incapaz de cruzar a meta na primeira posição. À entrada para a última volta, Zatopek ocupava a quarta posição mas com um parcial de 57 segundos e meio em 400 metros, garantiu nova medalha de ouro e o segundo recorde olímpico (14:06.6).

Tudo apontava que o desempenho de Zatopek tivesse terminado ali. E tinha sido uma semana fantástica para a família. Também a sua mulher, Dana Zatopkova, tinha alcançado a medalha de ouro, precisamente no dia da final dos 5000 metros, mas na prova do lançamento do dardo. O 2-1 não era suficiente. Zatopek queria uma «vitória» mais confortável. «Esta diferença é muito apertada. Para repor o meu prestígio, vou procurar ampliá-la… na maratona», disse a Locomotiva Humana, que nunca tinha corrido a distância na vida.

A prova estava marcada para dia 27 de julho e nessa semana o atleta já tinha corrido vinte quilómetros. Talvez tenha sido o treino perfeito mas uma maratona é sempre uma prova muito específica. Sem saber muito o que fazer, Zatopek decidiu acompanhar o ritmo do britânico Jim Peters, principal candidato à vitória.

O que se seguiu foi um misto de bullying com ingenuidade. «O que achas do ritmo?», perguntou-lhe. Peters disse-lhe que seria para correr mais devagar. Zatopek insistiu, uns quilómetros depois, e voltou à carga, questionando-se se não podiam ir mais depressa.

Exausto, o britânico desistiu. Mas Zatopek manteve a sua passada triunfal rumo ao estádio olímpico, terminando com 2:23:03, com mais de dois minutos de vantagem sobre o argentino Reinaldo Gorno.

Foi o derradeiro momento de glória na carreira olímpica de Emil Zatopek. Um dos melhores de sempre.

24 de Março, 2020

Jugoslávia-União Soviética. Quando Tito e Estaline entraram em campo

Especial Jogos Olímpicos (Helsínquia-1952)

Rui Pedro Silva

Jugoslávia-União Soviética

Jogo da segunda ronda do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos em 1952, em Helsínquia, foi muito mais do que uma simples partida. Numa eliminatória espetacular, com 14 golos a contar com o desempate dois dias depois, ninguém ignorou a tensão política que existia entre os dois países.

Não foi a primeira vez, não seria também a última. A história dos Jogos Olímpicos tem-nos ensinado que, edição após edição, há sempre episódios a transbordar de tensão política, onde os conflitos se conseguem imiscuir no espírito olímpico idealizado por Pierre de Coubertin.

Da ausência de convites aos países agressores na Grande Guerra à Alemanha de Hitler, passando pelos conflitos entre as duas Chinas, a primeira metade da história olímpica da era moderna foi rica em situações de tensão. Mas nenhuma, até então, foi levada tão a sério como o jogo de futebol entre a Jugoslávia e a União Soviética, na segunda ronda da prova.

Numa perspetiva redutora, pode dizer-se que foi uma zanga de amigos. Tito e a Jugoslávia eram aliados do bloco oriental, liderado pela União Soviética de Estaline. A falta de apoio dos soviéticos e a tendência para a rebeldia dos jugoslavos ajudaram a subir o ponto de fricção até uma situação irreversível.

A Jugoslávia tornou-se um parente indesejado do bloco oriental, com a União Soviética a incentivar os vizinhos a pôr de lado qualquer ligação mais próxima com o governo de Tito e a prepararem a sua força militar para o caso de uma possível guerra.

Em 1952, os antigos aliados estavam de costas voltadas já há quatro anos e qualquer pequena situação era encarada como fulcral para a afirmação política. O duelo reservado para a segunda ronda do torneio masculino de futebol olímpico tornou-se um assunto de estado e os dois líderes fizeram questão de enviar telegramas para a Finlândia a acentuar a importância de um triunfo.

Em Tampere, no sul do país, cerca de 17 mil pessoas assistiram a um jogo verdadeiramente espetacular. A Jugoslávia pareceu ser bastante melhor e, com uma hora de jogo disputada, goleava por 5-1. Mas os soviéticos sabiam os riscos de uma derrota e marcaram aos 75, 77, 87 e 89 minutos até garantir o empate e forçar um prolongamento sem golos.

Foi preciso marcar uma desforra para dois dias depois. No mesmo estádio, com o mesmo árbitro – o britânico Artur Ellis – e praticamente a mesma lotação. Desta feita, a União Soviética fez questão de entrar melhor, com um golo de Bobrov aos seis minutos, mas não conseguiu manter a vantagem. Ao intervalo os jugoslavos já venciam por 2-1 e seguiram em frente após uma vitória por 3-1. No final, saíram de Helsínquia com a medalha de prata – perdendo apenas para a Hungria de Puskas – e provocaram uma pequena crise na estrutura soviética.

O CSKA Moscovo, que compunha a espinha dorsal da seleção, foi severamente castigado, e o selecionador, o mítico Boris Arkadiev, perdeu a distinção de Mestre do Desporto da União Soviética.

23 de Março, 2020

Wu Chuanyu. Um chinês com pontualidade britânica

Especial Jogos Olímpicos (Helsínquia-1952)

Rui Pedro Silva

Wu Chuanyu

República Popular da China estreou-se em Jogos Olímpicos em 1952 mas a edição ficou marcada pela polémica e pelo insólito. Um conflito diplomático com Taiwan atrasou as decisões do Comité Olímpico Internacional e da comitiva de 40 chineses que eram esperados em Helsínquia, apenas um, o nadador Wu Chuanyu, chegou a tempo de participar.

Os pormenores importam. A República da China estreou-se nos Jogos Olímpicos de 1932, em Los Angeles, com apenas um atleta e assim se manteve até Londres-1948. As comitivas podem ter aumentado, para 54 em Berlim-1936 e 31 em Londres-1948, mas os pódios não apareceram.

O que apareceu no final da década de 40 foi uma mudança radical na China. O governo do Partido Nacionalista da China (Kuomintang) foi deposto e muitos dos seus responsáveis refugiaram-se em Taiwan, juntamente com grande parte do comité olímpico nacional. A tensão interna atingiu níveis elevados e o conflito diplomático foi arrastado para os Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952.

A República da China considerou-se a verdadeira escolha para representar a China nos Jogos Olímpicos e exigiu, sem sucesso, que a República Popular da China fosse impedida de participar. O imbróglio burocrático atrasou todas as decisões. Numa primeira fase, o Comité Olímpico Internacional recusou convidar qualquer um dos dois lados mas a 17 de julho, apenas dois dias antes, votou uma resolução que permitia a participação de ambas as comitivas.

O problema? Os transportes. De Pequim a Helsínquia o caminho era longo e demorado, estava dependente de demasiados pormenores, e foi impossível chegar a Helsínquia a tempo da cerimónia de abertura e, em muitos casos, da participação efetiva. Era esperada uma comitiva de 40 chineses – entre atletas e delegados oficiais – mas apenas um, o nadador Wu Chuanyu, conseguiu chegar a tempo, entrando assim na história como o primeiro atleta da República Popular da China a competir nos Jogos Olímpicos.

O cenário olímpico não era novo para Chuanyu. Afinal, quatro anos antes tinha representado a República da China em Londres, na prova de 100 metros livres na natação. Em 1952, o simbolismo foi radicalmente diferente.

Não se esperava muito e… o chinês de origem indonésia correspondeu às expetativas, voltando a terminar a sua eliminatória dos 100 metros, agora no estilo costas, na quinta posição e com o 28.º tempo mais rápido entre os participantes.

Wu Chuanyu não teve muito tempo para celebrar o seu feito. A vida continuou… mas não por muito tempo. Em outubro de 1954, quando regressava a Budapeste – onde treinava – depois de ter participado no primeiro congresso nacional em Pequim, foi uma das nove vítimas mortais de um acidente de aviação.

20 de Março, 2020

Karoly Takacs. Aprender a disparar com a mão que restava

Especial Jogos Olímpicos (Londres-1948)

Rui Pedro Silva

Karoly Takacs

A história do campeão dos 25 metros no tiro em Londres-1948 transpira resistência. O húngaro feriu-se com gravidade na mão direita em 1938, ainda antes da II Guerra Mundial, mas aprendeu rapidamente a disparar com a mão contrária e surgiu em Inglaterra preparado para ganhar, surpreendendo toda a gente.

Os acidentes acontecem mas há uns piores que outros. Para Karoly Takacs, a década de 30 pareceu toda um enorme acidente. A participação nos Jogos Olímpicos em Berlim-1936 foi barrada por desempenhar um cargo demasiado elevado no exército húngaro e, quando as regras mudaram e tudo parecia apontar para a sua participação em 1940, o conflito mundial trocou-lhe as voltas.

Esse não foi o único problema. Em 1938, durante uma sessão de treino no exército, sofreu um acidente com uma granada e feriu a mão direita, a sua mão dominante, com gravidade. A carreira como atirador ficou seriamente em risco mas Takacs resistiu. Afinal, continuava a haver uma mão esquerda perfeitamente funcional.

Durante meses, sem que ninguém soubesse, foi treinando a estabilidade do braço e a precisão dos disparos para aparecer numa prova como se estivesse preparado para aquilo a vida inteira. Naturalmente, ganhou.

As suas vitórias na Hungria não correram mundo e Takacs surgiu em Londres-1948 praticamente como um figurante. Ninguém pensava que ele pudesse participar depois do seu acidente e, se participasse, dificilmente conseguiria fazer a diferença.

«Estou aqui para aprender», terá dito ao seu rival argentino, o principal candidato à vitória. E, de facto, houve uma lição. Carlos Valiente terminou com 571 pontos e não conseguiu melhor do que a medalha de prata, já que ficou atrás dos 580 de Takacs. Quatro anos depois, em Helsínquia, o húngaro manteve o domínio e revalidou a medalha de ouro, novamente à frente do sul-americano, que desta vez, apesar de ficar a apenas dois pontos, foi atirado para fora do pódio (4.º lugar).

A perseverança de Karoly Takacs foi um exemplo olímpico para muitos. O húngaro ainda tentou fazer o tri em 1956, em Melbourne, mas não foi além da oitava posição. Seja como for, a história já estava escrita. Contra todos os obstáculos - logísticos, mundiais e funcionais -, Takacs não desistiu e saiu por cima. Continuar a tentar foi o tiro mais certeiro de todos.

19 de Março, 2020

Micheline Ostermeyer. A pianista que lançava discos… para longe

Especial Jogos Olímpicos (Londres-1948)

Rui Pedro Silva

Micheline Ostermeyer

Aprendeu a tocar piano aos quatro anos e tornou-se uma artista conceituada no círculo das famílias francesas aristocratas e da alta burguesia. Enquanto vivia na Tunísia, durante a II Guerra Mundial, começou a praticar desporto e abriu caminho para fazer história nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948.

Há quem diga que o sonho de um músico é lançar um disco. A pianista Micheline Ostermeyer parece ter levado a expressão demasiado à letra nos Jogos Olímpicos em 1948 e saiu de Londres com três medalhas no atletismo: bronze no salto em altura, e ouro nos lançamentos do peso e do… disco.

Era da família de Victor Hugo e sempre se tratou bem. Tinha acesso a todas as mordomias e, por vontade da mãe, começou a tocar piano com quatro anos. Era um pequeno prodígio e não demorou muito até estudar no Conservatório de Paris. Nascida em 1922, viu a vida afetada pela II Guerra Mundial e foi obrigada a regressar à Tunísia, onde tinha vivido os primeiros anos, para ficar longe do conflito.

Foi neste regresso que se cruzou com o desporto. Não praticava durante muito tempo mas fez um pouco de tudo. E, em 1948, quando os Jogos Olímpicos voltaram a ser realizados, já era uma figura com algumas credenciais, tanto nos campeonatos nacionais como nos Europeus.

O desempenho de Ostermeyer em Londres foi magnifico e tornou-se a primeira francesa a ganhar três medalhas numa edição. No salto em altura, conquistou a medalha de bronze com um salto de 1,61 metros; no lançamento do peso fez quase mais meio metro do que a concorrência, com 13,14 metros; finalmente, no disco, numa disciplina praticamente nova para ela, chegou ao lugar mais alto do pódio com uma marca de 41,92 metros.

Ostermeyer nunca fugiu ao seu papel e misturava na perfeição a graciosidade ao piano com a força, potência e gestos técnicos nos lançamentos. No dia do triunfo do lançamento do peso, por exemplo, acabou a noite a tocar Beethoven para os seus colegas, e ainda atuou no Royal Albert Hall.

Londres-1948 foi a única participação olímpica de Micheline. A carreira desportiva terminou nos Europeus de 1950, onde mostrou que também era capaz de atingir o pódio nos 80 metros barreiras (bronze), mas a de pianista prolongou-se nos anos, tocando alguns dos principais nomes da música clássica.

18 de Março, 2020

Arthur Wint. A semente que deu frutos como Usain Bolt

Especial Jogos Olímpicos (Londres-1948)

Rui Pedro Silva

Arthur Wint

Não há jamaicano como Bolt. Entre 2008 e 2016 dominou o cenário da velocidade nos Jogos Olímpicos e despediu-se como um dos melhores de sempre. Mas em 1948, 38 anos antes de nascer, houve Arthur Wint. Foi ele o primeiro jamaicano a ser campeão olímpico numa prova de velocidade (400 metros).

Foi uma estreia de sonho. A Jamaica participou numa edição dos Jogos Olímpicos pela primeira vez e o atletismo, como sempre desde então, prometia medalhas para a comitiva caribenha. Os especialistas encaravam Herb McKenley como o candidato mais forte a fazer história para a Jamaica, na final dos 400 metros, mas foi Arthur Wint quem surpreendeu… quase toda a gente.

McKenley terá sido dos poucos a afirmar que a aposta mais segura para a medalha de ouro na prova era Wint, um velocista de 28 anos, filho de uma escocesa e que estudara em Inglaterra, já depois de ter combatido como piloto na II Guerra Mundial.

Wint e McKenley foram superando eliminatórias dos 400 metros sem dificuldades até ficaram frente-a-frente na final. A vitória chegou com um recorde olímpico igualado (46,2 segundos) e numa corrida feita em recuperação, já que McKenley era famoso pelas suas partidas muito fortes.

De um momento para o outro, a Jamaica entrou no medalheiro olímpico com duas medalhas. Mas não se ficou por ali. Wint acumulou também uma medalha de prata nos 800 metros e queria, juntamente com McKenley, Leslie Laing e George Rhoden, somar novo título na estafeta dos 4x400 metros. Infelizmente, uma lesão muscular impediu-o de terminar o seu percurso e a Jamaica não completou a prova.

As sementes do sucesso jamaicano nos Jogos Olímpicos estavam plantadas e as edições que se seguiram confirmaram a tendência para as medalhas no atletismo. Logo em 1952, Wint contribuiu com mais duas (ouro na estafeta e nova prata nos 800 metros). Hoje, as contas são esmagadoras: a Jamaica tem 78 medalhas olímpicas e apenas uma não foi nessa modalidade: David Weller aproveitou o boicote ocidental aos Jogos de Moscovo em 1980 para vencer uma medalha de bronze no ciclismo de pista, na prova de um quilómetro.

17 de Março, 2020

Harold Sakata. O medalhado olímpico que queria matar James Bond

Especial Jogos Olímpicos (Londres-1948)

Rui Pedro Silva

Harold Sakata

Representou os Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948, e voltou com uma medalha de prata no halterofilismo. Mas foi a presença no cinema que o imortalizou: representou o papel de Oddjob no filme Goldfinger em 1964 e as cenas em que atacava Sean Connery com o chapéu de aba alta tornaram-se inesquecíveis.

É uma figura pequena, compacta, com muito poucas falas (basicamente só diz “Ah” e derivados) e serve de guarda-costas ao vilão Auric Goldfinger no filme do 007 de 1964, com Sean Connery no papel de James Bond.

Oddjob tem uma arma letal. Capaz de pancadas e golpes imparáveis com as mãos e os pés, é com o seu chapéu de aba alta que ganha fama. Numa das cenas entre Auric Goldfinger e James Bond, o vilão pede ao seu fiel escudeiro uma demonstração para intimidar o espião britânico. Oddjob, representado por Harold Sakata, tira o chapéu da cabeça e lança-o na direção de uma estátua. O chapéu rodopia freneticamente e decapita a estrutura de mármore. Era uma verdadeira guilhotina voadora.

O que não está no filme – nem faria sentido estar – é a referência ao passado olímpico de Harold Sakata. A julgar pelo gesto, talvez fizesse sentido que tivesse participado em provas como o lançamento do disco, mas não. O norte-americano do Havai, de origem japonesa, brilhou no halterofilismo nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948. E conquistou uma medalha de prata.

A propensão para levantar pesos chegou no final da adolescência e a participação em Londres, já com 28 anos, foi uma consequência natural. Na segunda categoria mais pesada, levantou um total de 380 quilos e ficou apenas atrás do seu compatriota Stanley Stanczyk (417,5 quilos).

O sucesso abriu caminho para novas carreiras. Primeiro na luta livre, sob o nome Tosh Togo; depois, ao cair no goto dos produtores de 007, no cinema. A construção da personagem encaixou na perfeição no estilo de Sakata. Um homem com um corpo esquisito, de poucas falas e capaz de decidir entre a vida e a morte num instante.

O sucesso da personagem no filme Goldfinger, onde acaba por morrer, garantiu a sua imortalidade. Outros filmes, como um da série Austin Powers, faz uma sátira do seu arremesso de chapéu – utilizando um sapato -, e há inúmeras outras referências a Oddjob. O próprio Harold Sakata beneficiou desse papel e partiu para a representação em sucessivos filmes até morrer, vítima de um cancro do fígado, em 1982.

Harold Sakata pode não ter tido uma carreira tão longa e de sucesso no cinema como Johnny Weissmuller, outro atleta olímpico que fez a transição, mas continua a ser recordado por aquele famoso gesto.

16 de Março, 2020

Fanny Blankers-Koen. Uma dona de casa… voadora

Especial Jogos Olímpicos (Londres-1948)

Rui Pedro Silva

Fanny Blankers-Koen

Do autógrafo memorável de Jesse Owens na primeira participação em Berlim-1936 aos quatro títulos olímpicos em Londres-1948, Fanny transformou-se. Deixou de ser uma simples adolescente e, já com dois filhos, provou que a família não impede que se faça história no palco mais elevado do desporto mundial.

A entrada das mulheres no mundo das competições desportivas estava longe do auge. Ainda havia muita resistência e as provas de atletismo de corrida, por exemplo, continuavam limitadas às distâncias mais curtas. As atletas que superavam este desdém costumavam ser, na sua maioria, jovens, mas em 1948 houve uma holandesa, Fanny Blankers-Koen, que decidiu dinamitar o estereótipo.

Quando chegou a Londres, com 30 anos, Fanny já tinha dois filhos e não se mostrava minimamente incomodada com isso. A imprensa achou piada ao contexto desta participação e, depois de confirmar o domínio em pista, batizou-a com a alcunha de «Dona de Casa Voadora».

A paixão olímpica tinha nascido em Berlim, doze anos antes. Fanny era apenas uma jovem e sem grandes ambições para fazer a diferença. Participou no salto em altura e na estafeta dos 4x100 metros, motivada pelo futuro marido Jan Blankers – também ele um atleta olímpico -, mas não conseguiu qualquer pódio. Por outro lado, voltou para a Holanda com uma recordação especial: um autógrafo de Jesse Owens

Em 1948, a história foi diferente: ela é que acabou a dar autógrafos. A exposição ao desporto durante toda a sua vida era impossível de esconder. O pai fora atleta nos lançamentos do peso e do disco, o marido tinha experiência olímpica e ela, desde muito jovem, tinha praticado inúmeros desportos com sucesso, desde o ténis à corrida, passando pela natação, esgrima, patinagem e ginástica.

Foi no atletismo que se concentrou… e com boas razões para isso. O domínio a nível nacional e europeu começava a manifestar-se mas talvez ninguém conseguisse prever com exatidão a história que Fanny Blankers-Koen ia escrever em Londres.

Ganhou a medalha de ouro nos 100 metros para começar e tornou-se a primeira holandesa a ser campeã olímpica no atletismo. Mas não ficou satisfeita, juntando os títulos dos 200 metros, 80 metros barreiras e da estafeta dos 4x100 metros.

O «autografado» passou a «autogrofador». Doze anos depois de Jesse Owens ter vencido quatro provas no atletismo, Fanny Blankers-Koen imitou-o e alcançou um feito inédito, ainda hoje, na história da competição feminina na modalidade.

Considerada a atleta feminina do século em 1999, Blankers-Koen perdeu a oportunidade de conseguir uma proeza ainda mais irrepetível. A holandesa queria ter participado também no salto em altura e no salto em comprimento – as suas melhores marcas eram superiores às que valeram as medalhas de ouro – mas o calendário apertado não permitiu.

13 de Março, 2020

Jesse Owens. O homem que destruiu o plano de Hitler

Especial Jogos Olímpicos (Berlim-1936)

Rui Pedro Silva

Jesse Owens

Atingiu a glória olímpica e 1936 e nunca será esquecido. Pode já ter sido igualado por Carl Lewis, em 1984, mas a forma como ganhou quatro medalhas olímpicas no coração do nazismo será para sempre recordada na história dos Jogos.

Cleveland, Cleveland, Cleveland. Quando se pensa neste nome, o mais comum é recorrer à cidade do Ohio que foi batizada em honra do general Moses Cleaveland (mesmo assim, escrito de forma diferente). Para os apaixonados pela história dos Estados Unidos, há ainda Grover Cleveland, familiar de Moses. Grover foi o único presidente dos EUA a ser eleito para dois mandatos não consecutivos, o que faz dele o 22.º e o 24.º presidente do país. Ou seja, apesar de atualmente Donald Trump ser considerado o 44.º, é apenas o 43.º homem a assumir o cargo.

O Cleveland que fecha a trilogia nasceu em 1913 no Alabama e apresentava-se como JC – de James Cleveland Owens. No entanto, quis a história que fosse famoso para sempre como Jesse Owens, o atleta norte-americano que provou ser mentira a ideologia da existência de uma raça ariana defendida por Adolf Hitler.

Mas já lá vamos. Quando tinha nove anos, JC mudou-se para Cleveland e, na primeira aula, a professora, ludibriada pelo sotaque sulista do Alabama, julgou que o novo aluno se chamasse Jesse. O novo batismo pegou e James Cleveland começou a ser tratado por Jesse Owens.

No Ohio, descobriu a paixão pelo atletismo e tornou-se o recordista mundial de liceu das 100 jardas, das 220 jardas e do salto em comprimento. Ainda assim, o primeiro grande momento da carreira estava guardado para 1935 nos campeonatos universitários. Em apenas 45 minutos, Jesse Owens bateu três recordes mundiais (salto em comprimento, 220 jardas e 220 jardas barreiras) e igualou a marca das 100 jardas. Para muitos especialistas, foi o maior feito de sempre do desporto, mas o grande desafio estava guardado para os Jogos Olímpicos de Berlim, um ano depois.

Adolf Hitler tencionava fazer da prova um sinal da supremacia da raça ariana, mas Jesse Owens chocou os germânicos ao conquistar quatro medalhas de ouro (100 metros, 200 metros, 4x100 metros e salto em comprimento), feito que só Carl Lewis conseguiu igualar, em 1984, em Los Angeles.

Owens tornou-se rapidamente num dos heróis americanos e passou a percorrer o país de costa a costa para falar sobre a sua experiência de forma a inspirar os jovens. O governo aproveitou a fama de Jesse Owens para criar provas extraordinárias para que o campeão olímpico pudesse demonstrar a rapidez que o fez famoso. Numa primeira fase começou por competir contra adolescentes que partiam com uma vantagem de 15 metros. Depois o desafio ficou maior e teve de correr contra cavalos de corrida. Jesse Owens não gostava de o fazer, mas sabia que era inevitável: «Sei que é degradante correr contra cavalos, mas o que estão à espera que eu faça? Tenho de ganhar a vida. Ganhei quatro medalhas de ouro, mas não as posso comer».

O problema era esse mesmo. «Está toda a gente interessada no Jesse Owens que ganhou as medalhas mas ninguém lhe quer dar trabalho», queixava-se, fazendo também, alegadamente, uma menção em como tinha sido mais bem tratado pela Alemanha Nazi de Hitler do que nuns Estados Unidos em pleno turbilhão, onde nem sequer na parte da frente do autocarro se podia sentar.

A campanha de Jesse Owens em Berlim foi também imortalizada pela amizade improvável com Luz Long, o alemão, adversário, que teve uma importância determinante na conquista da medalha de ouro no salto em comprimento.

13 de Março, 2020

Mack Robinson. A maldição de viver sempre na sombra

Especial Jogos Olímpicos (Berlim-1936)

Rui Pedro Silva

Mack Robinson ao lado de Jesse Owens

Era um dos atletas mais conceituados na comitiva dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, e conquistou a medalha de prata nos 200 metros… atrás de Jesse Owens. E foi o grande orgulho da família até o irmão mais novo, Jackie, se tornar uma figura lendária do desporto ao tornar-se o primeiro negro a jogar na Major League Baseball.

A seleção de atletismo dos Estados Unidos foi uma das grandes sensações nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Numa edição marcada pela vontade de fazer uma afirmação política e social, os nazis foram obrigados a suportar sucessivas humilhações na pista.

Jesse Owens, campeão olímpico dos 100 metros, 200 metros, 4x100 metros e salto em comprimento, tornou-se imortal mas… Mack Robinson também esteve lá. Por pouco, mas esteve. E tem uma história para contar que, em poucas palavras, se resume à tendência para ser sempre ofuscado pelos outros, por muito bom que fosse.

Matthew Robinson nasceu no seio de uma família pobre, com muitos irmãos, e com uma mãe que foi obrigada a tomar conta de todos sozinha desde muito cedo. Mudaram-se de malas e bagagens para Pasadena, na Califórnia, e Matthew – que era cada vez mais conhecido apenas por Mack – aproveitou para mostrar o talento para provas de velocidade.

Na preparação para os Jogos Olímpicos de Berlim já era um dos homens mais rápidos do país – tinha 21 anos – mas ir prestar provas para a seleção de atletismo a Nova Iorque era uma tarefa demasiado onerosa. Sem dinheiro, beneficiou de uma campanha de angariação promovida por empresários locais. Os 150 dólares foram mais do que suficientes e Mack Robinson garantiu o passaporte para a Alemanha de Hitler para competir nos 200 metros.

Jesse Owens era o cabeça de cartaz da seleção mas Mack Robinson tinha legítimas aspirações no duplo hectómetro. No dia da final, os dois norte-americanos eram os maiores favoritos e os tempos das eliminatórias anteriores ajudavam a perceber isso. Owens tinha igualado o recorde olímpico por duas vezes com 21,1 segundos, mas Mack não se deixou ficar e registou essa marca na meia-final… e na final.

O problema? Owens decidiu elevar a fasquia e bateu a sua própria melhor marca, conquistando um dos quatro títulos olímpicos com uma marca de 20,7 segundos, que representava um novo recorde mundial. «O meu pai sempre achou que se tivesse sapatilhas melhores, ou algum treinador decente, poderia ter batido Jesse. Ou, pelo menos, ter ficado ainda mais perto», contou, recentemente, uma das filhas ao New York Times.

Mack Robinson era um dos homens mais rápidos do mundo mas ninguém se lembra de quem chega em segundo. E Jesse Owens era uma estrela especial. De regresso aos Estados Unidos, Mack passou por muitas dificuldades. «Se alguém tinha orgulho em mim em Pasadena, tirando a minha família e amigos, nunca me disseram nem mostraram. A única vez que notei alguma coisa foi quando me perguntaram se estaria disponível para correr contra um cavalo», disse uma vez.

A tendência para viver na sombra dos feitos dos outros, mesmo sendo especial, alargou-se à família. Em 1947, onze anos depois da medalha olímpica, um dos irmãos mais novos, Jackie, fez história e tornou-se o primeiro atleta negro a ser utilizado na Major League Baseball. O benjamim quebrou barreiras, combateu a segregação e até no seio da família Robinson fez com que Mack se tornasse uma nota de rodapé.

Pobre, Mack varria as ruas como empregado municipal. Mas, quando foi despedido, juntamente com todos os outros negros numa vingança da câmara contra a decisão de um juiz, não teve outra opção a não ser aproveitar os conhecimentos do irmão para começar a trabalhar nos Dodgers.

Um dos maiores reconhecimentos que teve chegou apenas em 1984, quando Los Angeles acolheu os Jogos Olímpicos pela segunda vez. Mack foi escolhido para ser um dos antigos atletas a carregar uma enorme bandeira dos Estados Unidos durante a cerimónia de abertura.

12 de Março, 2020

Khadr El-Touni. O halterofilista que seduziu Hitler

Especial Jogos Olímpicos (Berlim-1936)

Rui Pedro Silva

Khadr El-Touni

Prova de pesos médios do halterofilismo devia ter sido dominada pelos alemães Rudolf Ismayr e Adolf Wagner. Pelo menos era essa a informação que os nazis tinham dado, com grande confiança, a Adolf Hitler. Ninguém esperava que um egípcio chamado Khadr El-Touni se tornasse uma das maiores figuras dos Jogos Olímpicos de Berlim.

Nasceu em 1913 e chegou a Berlim, em 1936, envolto em mistério. El-Touni ganhava provas desde os 19 anos – e assim continuou até aos 36 – mas alguns dos seus resultados geraram muita desconfiança na federação internacional. Achavam ser impossível que alguém que não conheciam estivesse a bater recordes mundiais e recusaram-se a homologá-los.

Mas este egípcio não era um homem qualquer. Como criança, destacou-se ao ser o único dos seus amigos a conseguir levantar um pau de madeira com dois pesos de 40 quilos nas extremidades. Como adulto, envergonhou a oposição nos Jogos Olímpicos… tanto na sua categoria como na imediatamente acima.

Rudolf Ismayr e Adolf Wagner eram os grandes favoritos. O primeiro era o campeão em título, tinha vários recordes mundiais e tinha sido premiado ao ser selecionado para fazer o juramento olímpico na cerimónia de abertura; o segundo tinha crescido na sombra mas era encarado como o símbolo da nova geração.

Adolf Hitler assistiu à prova, achando estar perante mais uma prova de supremacia ariana, mas El-Touni trocou-lhe as voltas. Com um levantamento acumulado de 387,5 quilos, o egípcio estabeleceu um novo recorde olímpico e deixou os adversários alemães a uns impressionantes 35 quilos.

A competir na categoria entre os 67,5 e os 75 quilos, o resultado de El-Touni foi tão esmagador que teria sido suficiente para ganhar no escalão imediatamente acima, entre os 75 e os 82,5 quilos. Aí, o francês Louis Hostin conquistou a medalha de ouro com um peso acumulado de 372,5 quilos.

O heroísmo de El-Touni foi celebrado por todos… inclusivamente Hitler. O ditador alemão fez questão de o cumprimentar após a prova e, além dos elogios, terá dado ordens para que fosse batizada uma rua em Berlim com o nome do novo campeão olímpico.

O homem conhecido por Gigante Egípcio ou Besta Egípcia regressou a casa com a sensação de dever cumprido depois de um trabalho árduo que incluiu treinos diários de quatro horas. Era, naturalmente, um ídolo nacional. «Quando descia a rua com a minha mãe, toda a gente dizia que aquela era a mulher do El-Touni. A maior parte dos estabelecimentos tinham fotografias dele», contou Shoukry, um dos filhos.

De certa forma, foi o próprio Hitler a tirar-lhe a possibilidade de repetir a glória. A II Guerra Mundial interrompeu os ciclos olímpicos e El-Touni só pôde voltar a participar em 1948, em Londres, mais velho e sem a mesma capacidade. Ficou fora das medalhas e não viveu muito mais.

A 22 de setembro de 1956, enquanto fazia reparações num prédio, puxou um cabo e morreu eletrocutado. «Eu vi-o», recorda Shoukry. «Estava deitado no chão, com os lábios e o corpo a tremer. Eu estava convencido de que o meu pai não ia morrer, não podia morrer. Deus não nos ia deixar nesta situação. El-Touni não podia morrer, era mais forte do que a morte.»

A glória de El-Touni prolongou-se no tempo e até 1996, ano em que foi «destronado» por Naim Suleymanoglu, foi consensualmente considerado como o melhor halterofilista de todos os tempos.

11 de Março, 2020

Toni Merkens. O alemão que foi beneficiado pelos nazis

Especial Jogos Olímpicos (Berlim-1936)

Rui Pedro Silva

Toni Merkens

Ganhou a medalha de ouro no ciclismo de pista e deixou milhares de alemães em apoteose. O problema? Tinha obstruído ilegalmente a trajetória do seu maior rival, um holandês, e provocou um protesto oficial da comitiva adversária. A organização concedeu a ilegalidade mas… manteve a classificação.

Chamava-se Nikolaus Anton Merkens mas era conhecido por Toni Merkens. Alemão de corpo, alma e sangue, tinha 24 anos quando competiu nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Era um dos candidatos ao triunfo na prova de sprint no ciclismo de pista mas contou com várias ajudas.

Depois de várias eliminatórias em que o domínio não esteve em causa, Toni Merkens e o holandês Arie van Vliet atingiram a final. O formato era simples: havia três corridas e a medalha de ouro iria para o ciclista que vencesse duas. Merkens fechou a contenda rapidamente, com vitórias nas duas primeiras, mas a comitiva holandesa protestou que o alemão tinha cometido uma ilegalidade durante um dos triunfos, atravessando a sua bicicleta à frente da do adversário com o objetivo de ganhar uma vantagem indevida.

A organização analisou o protesto e tinha várias hipóteses em aberto: podia declarar aquela vitória nula e provocar uma terceira corrida, podia simplesmente ordenar a repetição da manga ou, em último caso, poderia até considerar que não tinha havido qualquer infração.

A decisão foi surpreendente. Chegaram à conclusão que tinha havido, de facto, uma infração, mas a ação correspondente foi irrisória. A vitória de Merkens manteve-se (e com ela a medalha de ouro), mas houve espaço para uma multa de 100 marcos.

A sorte de Merkens não durou para sempre. Depois de Berlim-1936, tornou-se profissional mas a carreira foi interrompida pela II Guerra Mundial. A combater pela Alemanha nazi na frente oriental, foi ferido com gravidade pelo exército soviético e acabou por morrer, vítima de meningite, na véspera de celebrar o 32.º aniversário.

10 de Março, 2020

Helene Mayer. A medalha ganha pela judia que Hitler foi obrigado a apoiar

Especial Jogos Olímpicos (Berlim-1936)

Rui Pedro Silva

Helene Mayer

Quarta-feira, 5 de agosto de 1936, prova de florete individual na competição feminina de esgrima. A Alemanha ganha uma das suas 89 medalhas. Mas esta foi especial: foi a única conquistada por uma judia. 

Samuel Balter, basquetebol. Miklos Sarkany, polo aquático. Karoly Karpati, lutas amadoras. Robert Fein, halterofilismo. Helene Mayer, esgrima. O que têm em comum estes cinco nomes? Todos são judeus que conquistaram medalhas nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. Mas só Helene Mayer o fez a representar a Alemanha de Adolf Hitler.

O ditador alemão queria fazer do evento uma manifestação da supremacia ariana mas foi pressionado pelo Comité Olímpico Internacional a demonstrar um sinal de boa fé. Perante as ameaças de boicote dos Estados Unidos, a Alemanha nazi encontrou em Mayer o caso perfeito para garantir que os judeus tinham exatamente os mesmos direitos e oportunidades.

Era mentira, todos o sabiam. Inclusivamente a esgrimista de 25 anos. Campeã olímpica em Amesterdão-1928, com apenas 17 anos, e hexacampeã germânica de florete até 1930, Helene Mayer não resistiu ao convite.

A atleta tinha abandonado a Alemanha em 1933 porque era descendente de um judeu. A viver nos Estados Unidos, onde estudava na Califórnia, continuou a competir e a ganhar troféus. Em 1936, chegou a proposta para voltar.

 

Sede olímpica

Com o passar dos anos, vários historiadores dedicaram-se a tentar compreender a razão que tinha levado Helene Mayer a aceitar o convite. Num primeiro ponto de partida, é consensual que a atleta não se sentisse verdadeiramente judia. O pai era judeu mas nem ela nem os irmãos, Eugen e Ludwig, receberam uma educação religiosa em casa.

A vontade de regressar, de ver a família e a sede olímpica surgem numa segunda linha. «Ela queria competir, queria ser famosa novamente», declarou a cunhada de Helene ao realizador Semyon Pinkhasov, quando este preparava um documentário sobre a vida de Mayer.

O russo, um antigo esgrimista, reconhece a qualidade da alemã: «Tinha um enorme talento. Era fenomenal. Se fosse viva e tivesse entre 20 e 30 anos, ganharia os Jogos Olímpicos. Era tão talentosa. É difícil acreditar quão sensível a sua mão era. A técnica dela era espetacular. O trabalho de pés era precisamente igual ao que ensinam».

Helene Mayer sentia que tinha algo a provar. Quatro anos antes, em Los Angeles, não foi além do quinto lugar depois de uma série de eventos trágicos. Em 1931, o pai tinha sido vítima de um ataque cardíaco fatal e, apenas duas horas antes dos confrontos decisivos, soube que o namorado tinha morrido numa sessão militar na Alemanha. Agora, a doença da mãe também a preocupava e serviu de motivo ainda mais forte para regressar. 

A atleta competiu pela Alemanha mas o aparelho nazi tinha instruções claras dadas por Goebbels: o passado da esgrimista, sobretudo as origens familiares, eram um tema proibido. Quem soubesse, sabia; quem não soubesse, não deveria sequer desconfiar. 

Mayer tentou passar ao lado de toda esta novela e concentrou-se apenas em competir e... na família que lhe restava, ainda na Alemanha, em campos de trabalho. Na prova de florete individual, Mayer foi ultrapassando oponentes até chegar à final, perdida para a húngara Ilona Elek. Na cerimónia do pódio, após receber a medalha de prata, a judia fez a saudação nazi.

Sentira-se obrigada a isso. Pelo seu bem e pela vida dos seus familiares.  

[Publicado originalmente no É Desporto a 5 de agosto de 2016]

09 de Março, 2020

Luz Long. O alemão que desafiou Hitler por causa de Jesse Owens

Especial Jogos Olímpicos (Berlim-1936)

Rui Pedro Silva

Luz Long com Jesse Owens

Percebeu que tinha um conselho que podia ajudar Owens a ultrapassar a qualificação no salto em comprimento e arriscou. Não foi além da medalha de prata mas ficou imortalizado pela história de desportivismo e pela medalha Pierre de Coubertin. Morreu a combater pela Alemanha Nazi durante a invasão dos Aliados na Sicília, em 1943. 

Esta não é a história de Jesse Owens. É a de Luz Long, um advogado alemão nascido em 1913 que era visto como a grande esperança da Alemanha Nazi de Adolf Hitler para conquistar a prova de salto em comprimento nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936.

A concorrência de Jesse Owens, então detentor do recorde mundial, era dura, mas Long tinha a seu favor os sucessivos títulos de campeão nacional e a medalha de bronze nos Europeus disputados dois anos antes.

A história não tem suspense: Jesse Owens ganhou tudo o que havia para ganhar. Inclusive um amigo improvável. Exatamente, Luz Long.

 

Conselho decisivo

Disputava-se a qualificação para a final da prova e o objetivo era superar os 7,15 metros. Luz Long já tinha alcançado a meta, com direito a recorde olímpico, mas Owens tremia. Depois de um primeiro ensaio curto, o segundo foi nulo.

O que aconteceu a seguir é contado por Jesse Owens a Kai Long, filho de Luz, quando o norte-americano regressou a Berlim em 1964: «O teu pai veio em meu auxílio. Ajudou-me a medir um pé de distância para a tábua e o mesmo no sítio em que costumo correr. Consegui acertar mesmo no meio entre as duas marcas e foi assim que consegui a qualificação».

Foi o ponto de partida para a amizade entre Long e Owens. Pelo meio, um duelo espetacular na final. O norte-americano saltou para a liderança à segunda tentativa, com 7,87 metros, mas o alemão, impulsionado por 110 mil espetadores na bancada, com destaque para Hitler, não desistiu e levou o público ao rubro quando igualou a marca na quinta e penúltima tentativa.

A liderança partilhada foi curta. Logo a seguir, Jesse Owens aumentou o salto em sete centímetros e voltou a colocar a pressão sobre Long. Aí, o atleta de 21 anos, vacilou e fez um salto nulo.

«A vitória é mais doce quando se ganha pelo teu mérito do que por quando o adversário erra», lamentou Jesse Owens, quase 30 anos depois. Ainda assim, o norte-americano queria sair em grande e passou dos oito metros na derradeira tentativa (8,06).

 

A atitude de Luz Long

Jesse Owens ainda não tinha tido praticamente tempo para sair da caixa de areia quando Luz Long o abraçou, felicitando-o pelo triunfo: «Não consegui evitar. Corri na direção dele e fui o primeiro a dar os parabéns. Respondeu-me dizendo que o tinha forçado a dar o seu melhor».

«Foi preciso uma grande coragem para se aproximar de mim à frente de Hitler. Podem derreter-se todas as medalhas e troféus que não serão suficientes para a amizade de 24 quilates que sinto por ele neste momento», reagiu Jesse Owens.

De facto, a atitude de Luz Long não caiu bem entre os líderes do partido nazi. Segundo a mãe de Luz, o secretário especial de Hitler, Rudolf Hess, avisou Luz para «nunca mais voltar a abraçar um preto».

 

Duas vidas separadas

Luz Long e Jesse Owens não voltaram a estar juntos depois dos Jogos Olímpicos. Nos Estados Unidos, o campeão olímpico era ovacionado por todos mas a segregação racial continuava a ser um problema. «Está toda a gente interessada no Jesse Owens que ganhou as medalhas mas ninguém lhe quer dar trabalho», queixava-se.

Do outro lado do oceano, Luz Long preparava-se para combater pela Alemanha na II Guerra Mundial. Serviu na Wehrmacht e foi destacado para a Sicília em 1942. Entretanto, garantem vários relatos, continuava a trocar cartas com Jesse Owens.

Numa delas, já em 1942, não escondia o pessimismo: «O meu coração diz-me que esta será possivelmente a última carta da minha vida. Se for assim, imploro-te uma coisa: quando a guerra terminar, por favor viaja até à Alemanha, encontra o meu filho e conta-lhe sobre o pai. Conta-lhe da altura em que a guerra não nos separava e conta-lhe que as coisas podem ser diferentes entre as pessoas neste mundo».

 

Desejo cumprido

Luz Long morreu a 14 de julho de 1943 com 30 anos, na Sicília.

Conta Robert Stadler, um soldado nazi: «Tentámos fugir e corremos pelas nossas vidas, a fugir dos Aliados. Numa vinha próxima, encontrámos o Luz Long, que estava ali deitado e a sangrar abundantemente da coxa. Tentámos rapidamente fazer-lhe um torniquete, mas não ajudou muito».

Em 1964, Jesse Owens voltou a Berlim para falar com Kai. E, no mesmo relvado em que praticamente trinta anos antes tinha encantado o mundo, contou o que se tinha passado nos Jogos Olímpicos e falou sobre o homem que viria a receber a medalha Pierre de Coubertin, que premeia os atletas que melhor representam o espírito olímpico.

Mais de 70 anos depois, nos Mundiais de Atletismo de 2009 em Berlim, as duas famílias reencontraram-se. As netas de Long e Owens foram as convidadas de honra na cerimónia de entrega das medalhas do salto em comprimento.

A medalha de ouro foi para um norte-americano, Dwight Phillips, que saltou 8,54 – mais 48 centímetros do que Jesse Owens. O melhor alemão, Sebastian Bayer, não foi além dos 7,98 metros, apenas mais onze centímetros do que a marca de Long… 73 anos antes. 

[publicado originalmente no É Desporto a 4 de agosto de 2016]

06 de Março, 2020

Volmari Iso-Hollo. Ganhar os 3000 metros obstáculos… no prolongamento

Especial Jogos Olímpicos (Los Angeles-1932)

Rui Pedro Silva

Volmari Iso-Hollo

Finlandês acabou a carreira com quatro medalhas olímpicas, divididas entre Los Angeles-1932 e Berlim-1936. Se nos 10 000 metros não conseguiu chegar ao lugar mais alto do pódio (prata e bronze), nos 3000 metros obstáculos nunca encontrou concorrência à altura. O triunfo de 1932 é, ainda assim, parte de uma das histórias mais insólitas e rocambolescas da vida olímpica.

Los Angeles, estádio olímpico, 1 de agosto de 1932. Há 15 atletas com aspirações de vencer a prova dos 300 metros mas só dez terão acesso à final. Na primeira série, o britânico Tom Evenson estabeleceu um nove recorde olímpico com o tempo de 9:18.8. Dos sete inscritos, o argentino Luis Oliva não termina a prova e o sexto classificado, o francês Roger Vigneron, é eliminado com um tempo de 9:57.0.

A segunda série tem o futuro campeão, o finlandês Volmari Iso-Hollo. Com um tempo de 9:14.6, garante que o recorde olímpico volta a ser batido e leva mais quatro participantes para a final consigo. O irlandês Sonny Murphy e o canadiano Harold Gallop desistem durante a prova e o italiano Alfredo Furia não apareceu furioso o suficiente e foi eliminado depois de registar 10:11.0.

O domínio do finlandês, que ganhou a segunda série com apenas dois décimos de vantagem, subiu de tom na final, disputada no dia seguinte. Por outro lado, ganhou a medalha de ouro com um tempo de 10:33.4. Feitas as contas, até Furia teria conseguido vencer o título com o tempo da véspera.

O que se passou? O que pode sequer ter justificado este tempo, para que a vitória fosse conseguida com praticamente mais 80 segundos do que na véspera? Desgaste? Mau tempo? A resposta é insólita e difícil de acreditar mas foi uma corrida com… prolongamento.

Reza a história que o responsável por fazer tocar a campainha de última volta à pista estava desatento ao ver as provas do decatlo, pelo que Iso-Hollo e companhia foram obrigados a fazer mais do que os regulamentares 3000 metros obstáculos. Quando se aperceberam era demasiado tarde e o finlandês só cortou a meta depois de percorrer… 3460 metros.

A vitória de Iso-Hollo nunca estaria em causa – a vantagem era demasiado grande – mas o recorde mundial poderia ter sido batido. Por outro lado, Joe McCluskey passou a marca dos 3000 metros na segunda posição e acabou por ganhar apenas a medalha de bronze depois de ter sido ultrapassado pelo britânico Tom Evenson no… prolongamento.

Quatro anos depois, sem fugas ao apertado guião nazi, Iso-Holla revalidou o título olímpico com «apenas» 3000 metros corridos. Registou um tempo de 9:03.8 e estabeleceu um novo recorde mundial. Veio tarde, mas chegou.

06 de Março, 2020

Kusuo Kitamura. O jovem imberbe que nadou até fazer história

Especial Jogos Olímpicos (Los Angeles-1932)

Rui Pedro Silva

Kusuo Kitamura

A seleção de natação do Japão que apareceu em Los Angeles, nos Jogos Olímpicos de 1932, estava preparada para fazer história. O balanço final não deixa dúvidas: 12 das 18 medalhas conquistadas no evento foram nessa modalidade. Entre os campeões, houve um que se destacou – Kusuo Kitamura ganhou os 1500 metros com apenas 14 anos e 309 dias.

O Japão ficou no topo do medalheiro da natação em Los Angeles-1932, com cinco medalhas de ouro, cinco de prata e duas de bronze, num total de 12. Os Estados Unidos, crentes na sua superioridade hereditária, alcançaram o mesmo número de títulos mas ficaram aquém no total acumulado de pódios (10).

O fracasso norte-americano levou a algumas declarações surreais para tentar justificar a simples superioridade nipónica nesta edição. As palavras são do treinador olímpico dos Estados Unidos, Bob Kiphuth, no ano seguinte: «Eles [japoneses] são de uma nação sem cadeiras. Seja para comer ou para se sentarem, agacham-se desde os primeiros dias da vida, com as pernas por baixo do colo. As pernas são sempre flexíveis, sempre fortes como o aço».

A justificação não explica verdadeiramente o fator-surpresa daquela edição. E menos ainda o impacto que Kusuo Kitamura provocou ao vencer os 1500 metros livres com menos de 15 anos (14 anos e 309 dias). O nipónico tornou-se o campeão olímpico individual de natação mais novo da história e assim se manteve até ser batido pela húngara Krisztina Egerszegi em 1988. Hoje, 88 anos depois do título, Kitamura continua a ser o campeão olímpico individual de uma prova de natação masculina mais novo. E as regras já nem permitem que a marca seja batida.

O jovem imberbe que nadava sem se cansar precisou de 19:12.04 para cumprir a distância dos 1500 metros. Não foi o suficiente para bater o recorde do mundo mas fixou um novo máximo olímpico e terminou com praticamente dois segundos de vantagem sobre… um japonês – Shozo Makino. O melhor norte-americano, Jim Cristy, fechou o acesso às medalhas mas precisou de mais 27 segundos do que Kitamura.

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