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É Desporto

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17 de Fevereiro, 2020

Paavo Nurmi. A primeira grande lenda olímpica

Especial Jogos Olímpicos (Paris-1924)

Rui Pedro Silva

Paavo Nurmi

Venceu nove medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos e só não chegou à dezena por uma mistura de birra da federação finlandesa e preciosismo da federação internacional de atletismo. Em Paris-1924, elevou definitivamente o seu estatuto, consagrando-se como a primeira grande lenda olímpica, graças a cinco medalhas de ouro no atletismo.

O nome dispensa apresentações para muita gente. E mesmo quem não saiba o que fez, pode dizer com alguma propriedade que já ouviu essa referência uma ou outra vez na vida. É natural: Paavo Nurmi é um dos finlandeses voadores que marcaram uma geração no atletismo mundial e tornou-se uma figura indissociável dos Jogos Olímpicos graças aos feitos alcançados durante a década de 20 do século XX.

Nascido em Turku em 1897, ficou apaixonado pelo atletismo graças ao seu compatriota Hannes Kolehmainen, vencedor dos 5000 e dos 10 000 metros nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. A partir dessa altura, como tantos outros, Nurmi sonhou em ser como Kolehmainen. Mal sabia ele que, uns anos depois, e durante muito tempo, crianças de todo o mundo treinariam com os olhos postos nele.

Habituado a correr muitas vezes – e durante muito tempo -, Nurmi não era uma figura afável. Finlandês de corpo e alma, era mecânico, pouco dado a emoção e mantinha um ritmo frio e praticamente compassado a cada prova em que entrava. No batismo em Jogos Olímpicos, em Antuérpia-1920, garantiu três medalhas de ouro (10 000 metros, cross country individual e por equipas) e uma de prata (5000 metros).

Quatro anos depois, surgiu destinado a fazer história. A federação finlandesa não o deixou defender o título dos 10 000 metros, apostando antes em Ville Ritola, que viria a ganhar a medalha de ouro e bater o recorde mundial, mas Nurmi considerava ser implacável e capaz de vencer todas as provas em que entrasse. Tanto assim foi que um mês depois dos Jogos de Paris decidiu correr os 10 000 metros e dinamitar o recorde fixado por Ritola. Nurmi não só retirou 17 segundos à marca do seu compatriota como se manteve com a melhor marca mundial durante os 13 anos seguintes.

Voltando a Paris, porém, Paavo Nurmi foi verdadeiramente sensacional. Estava inscrito nas provas de 1500 metros, 5000 metros, cross country individual e por equipas, e 3000 metros por equipas. A agenda do atletismo era exigente – as duas primeiras finais disputavam-se no mesmo dia com um pequeno período de intervalo -, mas o finlandês voador não se incomodou com isso, planeando um «pequeno» treino na Finlândia. Resultado? Apesar de ter apenas uma hora de intervalo, Nurmi bateu o recorde mundial nas duas distâncias e percebeu que repetir o feito em França seria fácil.

E foi mesmo, por mais incrível que possa parecer. Nurmi não voltou a bater os recordes do mundo que tinha fixado, mas acumulou melhores marcas olímpicas. E somou mais três medalhas de ouro nas restantes provas. O domínio de Nurmi foi absolutamente avassalador e entrou na história. Por esta altura, não havia quem conseguisse bater Nurmi, que chegou mesmo a deter os recordes mundiais de todas as distâncias entre os 1500 e os 10 000 metros.

Quatro anos depois, em Amesterdão-1928, Nurmi podia já não ter a mesma capacidade mas lutava por um objetivo muito próprio: reconquistar a medalha de ouro dos 10 000 metros, uma distância que nunca tinha perdido em pista. O finlandês pode ter sido prata nos 5000 e nos 3000 metros obstáculos, mas no seu maior desejo não vacilou, conquistando o nono título olímpico.

O mediatismo das suas conquistas atraiu o interesse de pessoas por todo o mundo e valeu-lhe um convite para realizar uma digressão. Esse pequeno gesto impediu-o de voltar a competir nos Jogos Olímpicos de 1932, já com 35 anos. O objetivo era correr a maratona, despedindo-se da mesma forma que o herói Kolehmainen, mas estava reconhecido como profissional e foi forçado a ficar de fora.

O estatuto de Paavo Nurmi não foi afetado e o reconhecimento chegou em força nos Jogos Olímpicos de 1952, quando foi chamado a acender a pira olímpica em Helsínquia. Tinham passado mais de 20 anos desde a sua despedida, mas o seu nome continuava a deixar marca. O checoslovaco Emil Zatopek, grande figura do atletismo nessa edição, tornou-se o seu fiel sucessor. Da mesma forma que Nurmi quis seguir os passos de Kolehmainen, Zatopek costumava treinar com a mente fixada no finlandês. Foi a passagem de testemunho perfeita.

17 de Fevereiro, 2020

Somos um país de racistas (mas não gostamos que nos lembrem disso)

Rui Pedro Silva

Marega

O que se passou em Guimarães com Marega não foi nem mais nem menos grave do que aquilo que se tem passado durante décadas no futebol em Portugal. Na Europa. E um pouco por todo o mundo. Olhando para trás, não é difícil nem é preciso fazer um esforço grande para percebermos que o racismo estrutural é uma das maiores falhas da sociedade portuguesa.

Marega atingiu um ponto de rotura. Aconteceu ali, naquele minuto, naquele momento, como poderia ter sido num outro jogo qualquer. Fosse com Marega ou com outro jogador. Nós, por cá, habituámo-nos a criticar o que se passa em Itália. A achar que os italianos são o povo latino mais racista da Europa e episódios em que os jogadores sentem que chegou a altura de dizer basta são mais um capítulo na vergonha de um campeonato que outrora foi grande e agora não é mais do que um tremido reflexo.

Nós, por cá, habituámo-nos a achar que o problema está nos outros. Está em Inglaterra. Na Alemanha, daqueles nazis. Na Itália. Até em França, dos Le Pen. Nós, por cá, somos diferentes. O racismo cá é diferente. Se existe, é muito pontual. Não, nós não somos contra «pretos». Não, nós não os tratamos mal. Nós até temos amigos que o são. Até partilhámos balneários com eles. Histórias. Brincadeiras. Piadas.

Não, nós por cá, sempre fomos diferentes. Somos capazes de entrar numa sala de cinema e sentir nojo quando vemos filmes que retratam a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. E, ao mesmo tempo, incapazes de perceber que Portugal está longe de ser um paraíso. Nós, por cá, deixámo-nos, durante demasiado tempo, contagiar por um racismo estrutural que muitos continuam a apregoar ter desaparecido. Ou simplesmente nunca ter existido.

Violência policial? Sim, é giro falar sobre isso quando Colin Kaepernick se ajoelha. Cânticos animais nas bancadas? Coitado do Balotelli. Por cá, não há nada disso. Ou pelo menos assim foi sendo construída a mentira, num castelo de areia frágil perante a ameaça de um tsunami.

Houve quem tenha falado em hipocrisia. Fê-lo pelos motivos errados, mas acertou na palavra. No sentimento. Qualquer exercício de memória sem grande dificuldade é capaz de nos trazer episódios idênticos ou ainda mais graves ao de Marega em Guimarães. A diferença? Marega foi o único a dizer basta e, por isso, o único a garantir que havia ondas de solidariedade.

Este é, há muito, o problema do racismo em Portugal. Habituámo-nos a achar algo tão natural que eles próprios, os abusados, começaram a sentir que era aceitável. Que fazia parte da realidade. Que era impossível escapar, dizer basta, mostrar ao mundo que estava errado.

Contra mim falo. Olhando hoje para trás, sinto vergonha. Sinto repulsa. Sinto que fui praticamente obrigado a falhar por esta realidade paralela que nada trouxe de bom. Joguei futebol federado onze anos. Joguei com africanos ou filhos de africanos desde sempre. Nos primeiros anos, chegou até a haver treinos em que na minha equipa eu era o único branco. Brincávamos com isso. Eu podia ser o único mas eles sempre foram a minoria.

O racismo existia – e muito – nos escalões de formação. Numa altura em que a internet não existia, pouco se sabia sobre as equipas adversárias. O primeiro contacto visual com a chegada da carrinha adversária provocava sempre as mesmas curiosidades. Primeiro, se eram grandes. Depois, quantos «pretos» tinham.

Quem jogou no final da década de 90 na Associação de Futebol de Lisboa, poderá reconhecer alguns nomes. Toda a gente falava do Papa, o «preto» do Belenenses que tinha idade para ser papá dos outros todos. Ou pelo menos assim se dizia. E o Oeiras tinha o Upari (que se lia Apari) e que era, conhecendo-o anos mais tarde, uma pessoa genuinamente correta e impossível de não gostar. Mas ali, num primeiro momento, todos eram os «pretos» grandes, os «pretos» em destaque.

Mais tarde, lembro-me do Abílio. Dentro do balneário, fizemos praticamente do Abílio a nossa mascote. O Abílio falava de maneira estranha. A voz tremia, ecoava de forma muito peculiar. E imitávamo-lo, brincando com ele, perante os seus sorrisos. Ele nunca levou a mal. Ele seria incapaz de levar a mal. Ou pelo menos assim achávamos.

Hoje, olhando para trás, sinto sobretudo que ele talvez nunca tenha pensado sequer que poderia levar a mal. Muito possivelmente, para ele, aquela seria a única realidade que conhecia. Poderia nem sequer saber que aquilo era errado. Podia não ter o conforto necessário para levantar a voz, impor-se, e dizer basta. Afinal, o Abílio nem sequer estava inscrito. Que peso poderia ter ele num balneário?

Esta semana, em mais um genial episódio do podcast O Brinco do Baptista, falou-se sobre o problema de minorias em balneários. Dos perigos da mentalidade de matilha. Da toxicidade que alguns comportamentos podem ter. Sinceramente, olho para trás, e acho que sempre respeitei, tanto quanto conseguia, qualquer colega que tive. Mas, ao mesmo tempo, sou incapaz de ignorar que tive momentos, tanto no futebol como na escola, reprováveis.

Tenho memória suficiente para me lembrar do que fiz bem e do que fiz mal, do que poderia ter feito diferente. Fosse com negros, raparigas ou vítimas de bullying. Afinal, nestes casos, parecia sempre mais fácil deixar andar. Ficar calado. Felizmente, nunca fui instigador. Mas isso não me iliba de ter contribuído para ambientes negativos. De racismo, de machismo. De muito mais.

O que Marega fez em Guimarães foi acordar-nos em definitivo para uma realidade que nos deixa desconfortáveis. Marega não foi a primeira vítima. Marega foi, isso sim, o primeiro exemplo mediático a ser capaz de dizer basta. A trazer o elefante para o centro da sala. A garantir que seria impossível continuar a ignorar que Portugal é racista. Que há exemplos destes nos quatro cantos do país.

Hoje, é impossível dizer que só acontece lá fora. Podíamos dizer que estamos a importar o pior do que se passa lá fora. Estaríamos a ser hipócritas. Este racismo esteve sempre do lado de cá da fronteira. Só demorámos mais tempo a ter um escândalo com esta magnitude.

E, quando finalmente aconteceu, poucos foram aqueles que passaram com distinção. Tem havido muita hipocrisia, sim. Tem havido tiros ao lado. E houve, sobretudo, uma falta de compaixão e compreensão enorme por quem partilha a profissão e estava naquele relvado com Marega.

Foi o espelho perfeito do racismo em Portugal. Uma vez mais, esperou-se que Marega comesse e calasse. Que percebesse que faz parte. Que é assim mesmo. Que tem de se habituar. Ser profissional, ignorar e continuar a fazer aquilo para o qual é pago dentro de campo. Por outras palavras, houve quem lhe tenha pedido que ajudasse a propagar e eternizar a aceitação do racismo.

Marega recusou-se. Não o fez. E ao não o fazer deu um exemplo valioso para milhares de jovens em Portugal. Porque às vezes é mais importante manter as costas direitas do que ceder à vénia. Porque às vezes é preciso dizer basta. Porque às vezes só conseguimos avançar quando paramos. Para pensar e para mudar a mentalidade. Para mostrar ao mundo – e ao país – o que está errado.

Marega não foi a primeira vítima em Portugal. Mas foi o primeiro a conseguir provocar uma onda de solidariedade a nível interno e internacional. E só o fez, só garantiu que o tema viesse claramente para a luz do dia por ter tomado a atitude que tomou. Se tivesse continuado em campo e criticado os acontecimentos no final, o racismo teria ficado esquecido na espuma do dia. Assim, é impossível.

Temos, todos, de agradecer a Marega por isso. Fez-nos pensar. Olhar para trás. Perceber o que se fez de errado. O que continua errado. E o que tem mesmo de se fazer para que, ao olhar para a frente, se possa encarar o futuro com otimismo.

Porque Portugal sempre foi racista. E continua a sê-lo em 2020. Mas depende de todos nós ajudar a promover a mudança. O que Marega fez foi valioso. Mas será uma gota de água no deserto se não conseguirmos honrar verdadeiramente o que um gesto aparentemente tão simples mas cheio de coragem pode significar.

Marega relembrou-nos, com clareza, algo que não gostamos.