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É Desporto

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28 de Fevereiro, 2020

Esgrima. À terceira foi de vez para Portugal

Especial Jogos Olímpicos (Amesterdão-1928)

Rui Pedro Silva

Equipa portuguesa em 1928

Jorge Paiva, Mário Noronha, Frederico Paredes, João Sassetti, Paulo d’Eça Leal e Henrique da Silveira conquistaram uma medalha de bronze para a comitiva portuguesa, a única nos Jogos Olímpicos de Amesterdão. Com o terceiro lugar na prova de espada por equipas na esgrima, garantiram a primeira medalha de sempre na modalidade. Depois de dois quartos lugares, foi a prova que à terceira é de vez.

A equipa portuguesa de esgrima, na variante de espada, estava a ameaçar. Tinha tido a excelente oportunidade de conquistar a primeira medalha para Portugal em Jogos Olímpicos em Antuérpia-1920 mas não foi além do quarto lugar. Quatro anos depois, em Paris, mais do mesmo, com o «castigo» de ver a tão ansiada medalha lusitana ganha na equitação.

Em 1928, em Amesterdão, uma equipa de seis atletas, todos militares, sentiu que era altura de pôr termo a esta história do quase. Bateram a Holanda e a Suécia na primeira fase, os EUA e a Noruega na segunda e atingiram as meias-finais.

Eram umas meias-finais diferentes. Havia dois grupos de quatro seleções e as primeiras duas de cada um garantiam o apuramento para uma derradeira fase. Portugal perdeu com a Itália – a futura campeã olímpica – mas os triunfos sobre Checoslováquia e Holanda garantiram, no mínimo, o quarto lugar.

Quando a fase decisiva chegou, Portugal venceu apenas um duelo: contra a Bélgica, e apenas na contabilidade de toques (21-20) depois de um 8-8 final. No todos contra todos, a Itália voltou a ser mais forte e a França também fez valer a sua tradição. Jorge Paiva, Mário Noronha, Frederico Paredes, João Sassetti, Paulo d’Eça Leal e Henrique da Silveira eram, ainda assim, homens felizes. Tinham conseguido finalmente a medalha que a modalidade tanto queria.

27 de Fevereiro, 2020

Bobby Pearce. Até houve tempo para «dar pão aos patos»

Especial Jogos Olímpicos (Amesterdão-1928)

Rui Pedro Silva

Bobby Pearce

Australiano dominou no remo em Amesterdão-1928 e a superioridade foi tão grande que se deu ao luxo de parar uma prova a meio para deixar passar uma família de patos. Vitórias em todas as eliminatórias e medalha de ouro olímpica no final nunca estiveram em risco.

Há «factos» muito difíceis de alcançar simplesmente por exigirem comparações que não são possíveis. A prova de single scull no remo, nos Jogos Olímpicos de 1928, merece, contudo, uma menção para este campeonato imaginário de demonstrações de supremacia gigantescas.

Esta é a história da medalha de ouro de um australiano chamado Henry Robert Pearce. Bobby Pearce para os amigos e para o mundo do desporto. Nascido em Nova Gales do Sul, chegou a Amesterdão em 1928 com um historial de muita qualidade nas provas de remo, e com apenas 22 anos.

O campeão olímpico em título, Jack Beresford Jr., não participou e julgou-se que a corrida à medalha de ouro poderia ser aberta. Puro engano. Na primeira corrida, Bobby Pearce derrotou Walter Flinsch com 12 comprimentos de vantagem (26 segundos), reduzindo depois para «apenas» oito comprimentos (19 segundos) sobre o dinamarquês Arnold Schwartz.

Os quartos de final foram, ainda assim, o evento que transformou o domínio de Pearce numa história imortal. A vantagem sobre o francês Vincent Saurin era tão grande que, quando uma família de patos se atravessou no seu caminho, o australiano decidiu parar, esperar que passassem em segurança e só depois retomar a sua prova. Apesar deste interregno, a vantagem final foi de uns impressionantes 29 segundos.

Com apenas quatro atletas ainda em prova, a competitividade aumentou mas Bobby Pearce manteve-se intocável. Garantiu uma medalha ao derrotar David Collet com sete segundos de vantagem e, na final com o norte-americano Ken Myers, «fechou» o ouro com praticamente dez segundos.

O período de hegemonia manteve-se quatro anos depois e garantiu a revalidação da medalha de ouro em Los Angeles-1932, com corridas muito mais equilibradas e decididas por pormenores do que em 1928. A supremacia ajudou-o a torná-lo profissional e, como resultado, a abdicar da carreira olímpica.

26 de Fevereiro, 2020

Betty Robinson. Atingir a glória em duas vidas diferentes

Especial Jogos Olímpicos (Amesterdão-1928)

Rui Pedro Silva

Betty Robinson

Venceu uma medalha de ouro nos 100 metros em Amesterdão-1928 e outra na estafeta dos 4x100 metros em Berlim-1936. Pelo meio, teve um grave acidente de aviação onde chegou a ser declarada como morta. O período de recuperação foi longo e obrigou-a a falhar Los Angeles-1932, mas não impediu que fizesse história perante o olhar dos nazis.

Os Jogos Olímpicos na Holanda em 1928 ficaram marcados pela estreia do atletismo feminino. Na altura, Betty Robinson tinha apenas 16 anos e um passado muito curto de experiência no que a provas de velocidade diz respeito.

Descoberta por um professor do ensino secundário enquanto corria atrás de um comboio, Betty Robinson teve uma ascensão meteórica no mundo da velocidade. Na segunda vez que correu o hectómetro de forma oficial conseguiu igualar a melhor marca de sempre e lançou as sementes do que seria uma exibição esmagadora em Amesterdão.

É impressionante pensar que, antes de chegar aos Jogos Olímpicos, Betty Robinson tinha participado em apenas duas corridas. Ninguém sabia muito bem o que esperar dela e o favoritismo parecia recair num trio de canadianas. De facto, o pódio foi dominado pelo Canadá mas… a medalha de ouro foi para Robinson, com um tempo de 12,2 segundos, igual ao recorde mundial.

O desempenho de Betty Robinson continuou na estafeta dos 4x100 metros mas, aí sim, a superioridade das canadianas fez a diferença, relegando a equipa dos Estados Unidos para a medalha de prata.

Os dois pódios na estreia olímpica fizeram antever um futuro brilhante para Betty Robinson. Quatro anos depois, em Los Angeles, a velocista poderia fazer a diferença a correr perante o seu público, mas a sua vida caiu de um momento para o outro. Literalmente.

Um grave acidente de aviação em 1931 deixou-a muito maltratada e chegou a ser declarada como morta. O diagnóstico inicial estava errado mas o período de recuperação seria muito longo e era impossível prever se conseguiria voltar a andar, quanto mais competir contra as melhores do mundo.

Betty Robinson esteve sete semanas a lutar pela vida, passou os seis meses seguintes numa cadeira de rondas e foi obrigada a superar um período de dois anos até conseguir voltar a andar normalmente. Correr continuava a ser um objetivo distante, mas a norte-americana não desistiu e viajou até Berlim, em 1936, para fazer parte da estafeta dos 4x100 metros.

Foi o regresso perfeito. Beneficiadas pelo facto de a equipa da Alemanha Nazi ter deixado cair o testemunho no quarto e derradeiro percurso, as norte-americanas foram campeãs olímpicas com sete décimos de segundo de vantagem sobre a Grã-Bretanha. Para Betty Robinson, então com 24 anos, foi a segunda medalha de ouro olímpica. E a mais saborosa.

25 de Fevereiro, 2020

Mikio Oda. O primeiro campeão olímpico asiático

Especial Jogos Olímpicos (Amesterdão-1928)

Rui Pedro Silva

Mikio Oda

Foi do Japão à Holanda de comboio, com pouco dinheiro, sem comida e sem espaço para treinar, e entrou para a história como o primeiro asiático a conquistar um título olímpico, abrindo uma pequena tradição de japoneses no triplo salto.

Mikio Oda era um homem dos saltos. A nível nacional e continental, dominava no comprimento, no triplo e no salto em altura. Pulava como nenhum outro e tinha o sonho de se assumir como a maior potência asiática nos Jogos Olímpicos.

O primeiro ensaio foi em 1924, em Paris. Não conseguiu passar das eliminatórias no comprimento e no salto em altura, mas atingiu um honroso sexto lugar na final do triplo salto, com 14,35 metros. Quatro anos depois, em Amesterdão, estava na hora de voltar a aparecer.

Os tempos eram diferentes e não era fácil chegar do Japão à Holanda num abrir e piscar de olhos. O dinheiro não abundava e a única alternativa passava mesmo por atravessar toda a Rússia de comboio, sem comida e sem espaço para treinar. Depois de uma viagem tão longa, Oda não estava na plenitude das suas capacidades, mas a determinação fez a diferença.

O produto de Hiroshima, com 23 anos, voltou a ficar nas eliminatórias nas outras duas especialidades, mas dedicou-se com alma e coração ao triplo salto. Os 15,21 metros alcançados não chegariam sequer para atingir o pódio em 1924 mas em 1928, numa pista que ofereceu muitas dificuldades aos atletas, foi suficiente para o histórico ouro, com quatro centímetros de vantagem sobre o norte-americano Levi Casey.

Mikio Oda entrou na história mas não ficou para saborear o momento. Quando chegou a cerimónia de entrega de medalhas, já o nipónico estava a caminho de Paris para participar numa prova, acabando por ser um seu compatriota a receber a medalha.

Curiosamente, a prova do triplo salto contou com a participação de outro atleta japonês. Chuhei Nanbu foi quarto classificado com 15,01 metros e, tal como Oda, aproveitou a sua segunda oportunidade para fazer a diferença. Quatro anos mais tarde, em Los Angeles, com Oda como treinador, Nanbu prolongou aquela mini tradição e voltou a tornar o Japão campeão olímpico do triplo salto.

A história, essa, pertenceu sempre a Mikio Oda. Tanto assim foi que em 1964, quando os Jogos Olímpicos viajaram finalmente até ao continente asiático, em Tóquio, a bandeira olímpica ficou hasteada precisamente a 15,21 metros de altura, numa clara homenagem a Mikio Oda e ao seu feito de 1928.

24 de Fevereiro, 2020

Lina Radke. A estrela dos malditos 800 metros

Especial Jogos Olímpicos (Amesterdão-1928)

Rui Pedro Silva

Lina Radke

Atletismo esteve vedado à participação feminina até Pierre de Coubertin abandonar o cargo de presidente do Comité Olímpico Internacional. Na estreia, em 1928, a vitória de Lina Radke nos 800 metros trouxe mais dissabores do que alegrias e provocou um retrocesso que duraria mais de três décadas.

O desporto continua a ser muito machista mas está muito melhor do que era na primeira metade do século passado. Pierre de Coubertin pode ter sido muito importante na recuperação do espírito olímpico mas foi um dos maiores responsáveis para manter as mulheres a aplaudir nas bancadas, sobretudo no que dizia respeito ao atletismo.

Foi preciso esperar até 1928, nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, para haver provas femininas de atletismo. Curiosamente, foi a primeira edição depois de Coubertin ter abandonado o cargo de presidente do Comité Olímpico Internacional. As vozes divergentes continuavam a ser muitas mas qualquer progresso já seria significativo.

A edição de 1928 contou com cinco provas femininas: o salto em altura, o lançamento do disco, os 100 metros, a estafeta dos 4x100 metros e os 800 metros. Esta última prova foi aquela que maior burburinho provocou. Vivia-se numa época em que se achava que as mulheres tinham um lugar muito específico na sociedade… e não era a fazer desporto. E, mesmo neste campo, acreditava-se que havia limites para o esforço que podia ser feito.

A final olímpica nos 800 metros foi, infelizmente, um trunfo para os detratores. De nada serviu que Lina Radke, alemã que treinava para a distância há muito tempo, tenha batido o recorde mundial com um tempo de 2:16.9. O que ficou na memória de todos foi a forma como outras participantes foram obrigadas a desistir ou chegaram completamente exaustas à meta.

Há uma explicação simples. Eram poucas aquelas que tinham experiência nesta distância. Toda a edição dos Jogos Olímpicos fora um pouco experimental, no que ao atletismo feminino diz respeito, e este fenómeno nos 800 metros só deu mais força a quem acreditava que não havia espaço para as provas femininas.

Com a pressão a aumentar de tom, os responsáveis olímpicos acharam que não tinham outra solução a não ser excluir qualquer prova acima dos 200 metros no atletismo feminino. E assim continuou até 1960, em Roma, quando a soviética Lyudmila Lysenko sucedeu a Lina Radke com um tempo mais de 12 segundos mais rápido.

A evolução continuou a ser lenta, porém. Em 1960 a distância dos 800 metros foi a mais longa – e não havia prova de 400 metros. Foi preciso esperar até 1984 para haver pela primeira vez uma maratona feminina. O espírito olímpico propagou-se com uma velocidade muito maior do que a igualdade.

21 de Fevereiro, 2020

Hipismo-1924. A estreia de Portugal no medalheiro

Especial Jogos Olímpicos (Paris-1924)

Rui Pedro Silva

Aníbal Borges de Almeida

Antes de Telma Monteiro, Nelson Évora, Fernanda Ribeiro ou Carlos Lopes, houve Aníbal Borges D’Almeida, Hélder de Sousa Martins e José Mouzinho de Albuquerque. Os três portugueses faziam parte da equipa lusa que conquistou uma medalha (bronze) no Prémio das Nações por equipas na equitação. Foi o primeiro pódio de sempre de Portugal.

Aconteceu 12 anos depois da estreia. A morte de Francisco Lázaro, o primeiro atleta a representar Portugal numa edição dos Jogos Olímpicos, não foi um bom prenúncio mas em 1924, em Paris, o país conseguiu finalmente a sua estreia no medalheiro.

Os três atletas eram oficiais de cavalaria e faziam parte da comitiva mais numerosa de Portugal em Jogos Olímpicos até então: 28. Na prova de obstáculos, os três combinaram para uma penalização de 53 pontos, ficando apenas atrás dos 50 da Suíça e dos 42,5 da Suécia, que ganhou a medalha de ouro sem grande dificuldade.

«Embora se reunisse o melhor que frequenta as nossas pistas, eles estavam longe, bem longe mesmo, da categoria dos seus adversários e a nossa vitória mais se deve à alma dos nossos cavaleiros, à sua coragem inexcedível, à confiança absoluta em cumprir a sua missão, do que ao valor dos seus cavalos que, porque não dizê-lo, eram olhados com desprezo», escreveu Manuel Latino, o tenente-coronel que liderava a equipa, no relatório da participação nacional, citado pelo Diário de Notícias.

21 de Fevereiro, 2020

A dupla inesquecível de «Momentos de Glória»

Especial Jogos Olímpicos (Paris-1924)

Rui Pedro Silva

Harold Abrahams

Harold Abrahams e Eric Liddell compuseram uma dupla que ficou imortalizada no filme que retrata os caminhos que levaram aos Jogos Olímpicos de 1924, em Paris. Britânicos regressaram a casa com os títulos nos 100 e nos 400 metros e com uma medalha de bronze nos 200 metros.

O objetivo de Harold Abrahams era claro: tornar-se campeão olímpico dos 100 metros em Paris. Para isso, tinha um plano e fez o possível para não fugir um único centímetro à estratégia. Depois do fracasso nos Jogos Olímpicos de 1920, em Antuérpia, recorreu a Sam Mussabini com a intenção de precisar cada detalhe que seria necessário durante o hectómetro.

O arranque, a passada, a velocidade, tudo era importante na missão de Abrahams rumo ao ouro olímpico mas, por pouco, o inglês não teve oportunidade de expor todo o seu trabalho em pista: os resultados alcançados no salto em comprimento fizeram com que a seleção começasse por retirá-lo das provas de velocidade e destacá-lo na outra especialidade.

Abrahams fez finca-pé… em boa hora. Insistiu que queria correr os 100 metros e chegou a escrever, de forma anónima, uma queixa a um jornal britânico. O burburinho causado provocou a reviravolta na decisão e, à hora marcada, em Paris, lá estava Abrahams preparado para o hectómetro.

O esforço de meses surtiu efeito, com Harold a igualar o recorde olímpico de 10,6 segundos e a destronar a armada norte-americana rumo à medalha de ouro. Os britânicos poderiam ter contado com outro atleta na distância – o escocês Eric Liddell -, mas o facto de a final se disputar a um domingo provocou uma mudança de planos no devoto cristão.

Reorientando os objetivos para os 200 e 400 metros, Liddell regressou à Grã-Bretanha com duas medalhas: o título olímpico na distância maior e o bronze no duplo hectómetro. Abrahams não se deixou ficar e também acumulou a medalha de prata na estafeta dos 4x100 metros.

Praticamente seis décadas depois, a dupla – já morta – voltou a estar nas bocas do mundo graças ao filme «Momentos de Glória», que retrata tudo o que levou à participação nos Jogos Olímpicos de 1924. A película foi um sucesso de bilheteira – e entre a crítica – e ganhou um total de quatro Óscares – inclusive o de Melhor Filme - em seis nomeações.

O filme estreou três anos depois da morte de Harold Abrahams. Eric Liddell tinha morrido num campo de concentração japonês em 1945.

20 de Fevereiro, 2020

Harold Osborn. Quando o decatlo não é suficiente

Especial Jogos Olímpicos (Paris-1924)

Rui Pedro Silva

Harold Osborn

Com uma deficiência visual grave, poucos seriam aqueles que lhe augurariam um grande futuro. Mas Harold Osborn, um norte-americano de uma família de agricultores, não se deixou intimidar pelos problemas e fez história nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924. Foi o primeiro – e único até ao momento – a vencer o decatlo… e uma prova individual ao mesmo tempo (salto em altura).

Cresceu numa quinta e, como qualquer criança, passava horas a brincar com os irmãos no meio da natureza. Saltava e corria como se a vida dependesse disso e, na hora de começar a praticar desporto, a propensão para um ecletismo singular não surpreendeu ninguém.

O acidente que lhe tinha retirado uma enorme percentagem de visão num dos olhos poderia ter sido um enorme obstáculo – deixou de conseguir calcular profundidade com precisão – mas Osborn tornou-se um especialista na abordagem a cada evento, a cada prova. Desenvolveu métodos alternativos e apoiou-se neles para fazer diferença e potenciar o seu talento atlético.

Quando chegou aos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924, ninguém duvidava da sua capacidade. E nem a visão era discutida como uma desvantagem. Osborn, então com 25 anos, estava mais do que adaptado depois do acidente sofrido durante a adolescência e queria fazer história.

Paris tornou-se uma cidade talismã. Se o decatlo é, desde sempre, conhecido como a prova que coroa o atleta mais completo do mundo, conseguir juntar outro título a essa especialidade é inaudito. Ou era, até Harold Osborn provar que era possível.

No salto em altura, com um estilo que desenvolvera logo desde a infância, saltou 1,98 metros e estabeleceu um novo recorde olímpico, mas ficou aquém do máximo mundial que lhe pertencia (2,03 metros). No decatlo, o triunfo foi esmagador.

Ganhou as provas dos 100 metros, 110 metros barreiras e salto em altura, ficou em segundo no salto em comprimento e no salto com vara, sétimo no lançamento do disco, oitavo no lançamento do peso, no lançamento do dardo e nos 400 metros, e nono nos 1500 metros.

As contas finais não deram margem para dúvidas: venceu com 7710 pontos e o segundo classificado, o também norte-americano Emerson Norton, não foi além dos 7350.

19 de Fevereiro, 2020

Johnny Weissmuller. Dos títulos olímpicos ao papel de Tarzan

Especial Jogos Olímpicos (Paris-1924)

Rui Pedro Silva

Johnny Weissmuller

Foi a maior figura da natação em 1924 ao conquistar três medalhas de ouro, para não falar de uma de bronze no polo aquático. Ganhou fama, manteve o proveito e quatro anos depois, com mais dois títulos olímpicos, deu o salto para Hollywood. Ainda hoje é conhecido como o Tarzan mais famoso da história.

A carreira desportiva de Johnny Weissmuller é verdadeiramente impressionante. Conquistou um total de seis medalhas nos Jogos Olímpicos, tornou-se o primeiro homem a nadar os 100 metros em menos de um minuto, acumulou 52 campeonatos nacionais nos Estados Unidos e fixou um total de 67 recordes mundiais. Ninguém era capaz de lhe ganhar dentro de água mas, curiosamente, foi na película que se tornou imortal.

O nadador de origem europeia, que nasceu no império Austro-Húngaro em 1904, era humilde o suficiente para não encarar cada prova como algo garantido. Tanto assim foi que, na sua primeira grande final olímpica, a dos 100 metros livres em Paris-1924, estava uma pilha de nervos por ter de defrontar o mítico havaiano Duke Kahanamoku. O recorde mundial já lhe pertencia, mas a figura do compatriota intimidava-o. Foi nessa altura que o adversário decidiu acalmá-lo com umas simples palavras: «Não te preocupes. O que importa é que o pódio seja todo dos Estados Unidos».

E assim foi. Weissmuller nadou sem rodeios e garantiu a medalha de ouro com um novo recorde olímpico (59 segundos exatos), deixando os irmãos Kahanamoku a mais de dois segundos. Com os nervos controlados e a adrenalina direcionada no sentido certo, Weissmuller, na altura com apenas vinte anos, partiu para um desempenho irrepreensível.

O balanço final foi claro: juntou as medalhas de ouro nos 400 metros livres e na estafeta dos 4x200 metros livres e ainda contribuiu de forma importante, jogando como avançado, na medalha de bronze da equipa de polo aquático.  

Quatro anos depois, já depois de ter nadado as 100 jardas (91,44 metros) nuns impressionantes 51 segundos, voltou a demonstrar que era um talento inigualável, repetindo as medalhas de ouro nos 100 metros e na estafeta. Cada vez mais famoso nos Estados Unidos, aproveitou a sua imagem para iniciar uma nova carreira, mais ligada à representação e a papéis de modelo.

Em 1932, foi Tarzan pela primeira vez e marcou uma geração inteira. Hoje, praticamente um século depois, continua a ser o mais famoso nesse papel e deixou um legado – sobretudo no estilo do «grito de Tarzan» - que é replicado vezes sem conta… dentro e fora do cinema.

Curiosamente, o convite para uma audição só foi aceite depois de lhe terem dito que podia conhecer estrelas como Clark Gable e Greta Garbo. Weissmuller decidiu ir ao casting e, depois de ser escolhido, teve um diálogo com o produtor surreal. O seu nome era um problema, não por parecer estrangeiro nem nada que se pareça, mas por ser o mesmo de uma das figuras mais importantes das edições anteriores dos Jogos Olímpicos.

Durante alguns minutos, Weissmuller precisou de convencer que era, de facto, o mítico nadador. Aquele cujo recorde de cinco medalhas de ouro na natação se manteve um recorde até chegar outra figura lendária, Mark Spitz, em 1972.

18 de Fevereiro, 2020

Richard Norris Williams. Sobreviver ao naufrágio do Titanic e ser campeão

Especial Jogos Olímpicos (Paris-1924)

Rui Pedro Silva

Richard Norris Williams

Norte-americano fazia a famosa viagem inaugural do Titanic entre Southampton e Nova Iorque e esteve perto de ver as duas pernas amputadas na sequência do naufrágio. O tenista recuperou e, de regresso à Europa, 12 anos depois, venceu a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris.

Quando a morte espreita, há quem consiga escapar. Quem decida que ainda não é hora e que ainda há muito para fazer antes do derradeiro suspiro. Na madrugada de 15 de abril de 1912, nas águas gélidas do Atlântico, Richard Norris Williams tornou-se uma dessas pessoas.

Aos 21 anos, era um dos passageiros da histórica viagem inaugural do Titanic entre Southampton e Nova Iorque. Nascido na Suíça, estava a caminho de Cambridge para estudar em Harvard. Viajava com o pai em primeira classe – embarcaram ambos apenas em França, em Cherbourg-Octeville - e estava longe de imaginar o que se ia passar.

Norris Williams viveu horas de terror. Viu o pai morrer e foi obrigado a resistir durante horas numa pequena embarcação com água até aos joelhos. Quando foi finalmente resgatado e visto por um médico, a dupla amputação surgiu como a alternativa mais viável. Mas Richard recusou.

Optou por um período de difícil reabilitação que o obrigava a andar duas horas todos os dias e a recompensa chegou mesmo em agosto, quando se sagrou campeão do US Open na variante de pares mistos. O ténis tornou-se parte do seu quotidiano e só foi interrompido durante o período em que combateu pelos Estados Unidos na Grande Guerra.

Doze anos depois do naufrágio, no regresso à Europa, Richard Norris Williams tentou ser campeão olímpico em Paris. Participou na variante de pares mistos, fazendo dupla com Hazel Wightman – detentora de um total de 15 grand slams -, e ganhou a medalha de ouro. Pelo caminho, beneficiou da desistência de um par francês composto por Henri Cochet e… Suzanne Lenglen.

Ricard Norris Williams acabou a carreira com seis vitórias em grand slams (duas no US Open em singulares) e um título olímpico. E com as pernas intactas.

17 de Fevereiro, 2020

Paavo Nurmi. A primeira grande lenda olímpica

Especial Jogos Olímpicos (Paris-1924)

Rui Pedro Silva

Paavo Nurmi

Venceu nove medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos e só não chegou à dezena por uma mistura de birra da federação finlandesa e preciosismo da federação internacional de atletismo. Em Paris-1924, elevou definitivamente o seu estatuto, consagrando-se como a primeira grande lenda olímpica, graças a cinco medalhas de ouro no atletismo.

O nome dispensa apresentações para muita gente. E mesmo quem não saiba o que fez, pode dizer com alguma propriedade que já ouviu essa referência uma ou outra vez na vida. É natural: Paavo Nurmi é um dos finlandeses voadores que marcaram uma geração no atletismo mundial e tornou-se uma figura indissociável dos Jogos Olímpicos graças aos feitos alcançados durante a década de 20 do século XX.

Nascido em Turku em 1897, ficou apaixonado pelo atletismo graças ao seu compatriota Hannes Kolehmainen, vencedor dos 5000 e dos 10 000 metros nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. A partir dessa altura, como tantos outros, Nurmi sonhou em ser como Kolehmainen. Mal sabia ele que, uns anos depois, e durante muito tempo, crianças de todo o mundo treinariam com os olhos postos nele.

Habituado a correr muitas vezes – e durante muito tempo -, Nurmi não era uma figura afável. Finlandês de corpo e alma, era mecânico, pouco dado a emoção e mantinha um ritmo frio e praticamente compassado a cada prova em que entrava. No batismo em Jogos Olímpicos, em Antuérpia-1920, garantiu três medalhas de ouro (10 000 metros, cross country individual e por equipas) e uma de prata (5000 metros).

Quatro anos depois, surgiu destinado a fazer história. A federação finlandesa não o deixou defender o título dos 10 000 metros, apostando antes em Ville Ritola, que viria a ganhar a medalha de ouro e bater o recorde mundial, mas Nurmi considerava ser implacável e capaz de vencer todas as provas em que entrasse. Tanto assim foi que um mês depois dos Jogos de Paris decidiu correr os 10 000 metros e dinamitar o recorde fixado por Ritola. Nurmi não só retirou 17 segundos à marca do seu compatriota como se manteve com a melhor marca mundial durante os 13 anos seguintes.

Voltando a Paris, porém, Paavo Nurmi foi verdadeiramente sensacional. Estava inscrito nas provas de 1500 metros, 5000 metros, cross country individual e por equipas, e 3000 metros por equipas. A agenda do atletismo era exigente – as duas primeiras finais disputavam-se no mesmo dia com um pequeno período de intervalo -, mas o finlandês voador não se incomodou com isso, planeando um «pequeno» treino na Finlândia. Resultado? Apesar de ter apenas uma hora de intervalo, Nurmi bateu o recorde mundial nas duas distâncias e percebeu que repetir o feito em França seria fácil.

E foi mesmo, por mais incrível que possa parecer. Nurmi não voltou a bater os recordes do mundo que tinha fixado, mas acumulou melhores marcas olímpicas. E somou mais três medalhas de ouro nas restantes provas. O domínio de Nurmi foi absolutamente avassalador e entrou na história. Por esta altura, não havia quem conseguisse bater Nurmi, que chegou mesmo a deter os recordes mundiais de todas as distâncias entre os 1500 e os 10 000 metros.

Quatro anos depois, em Amesterdão-1928, Nurmi podia já não ter a mesma capacidade mas lutava por um objetivo muito próprio: reconquistar a medalha de ouro dos 10 000 metros, uma distância que nunca tinha perdido em pista. O finlandês pode ter sido prata nos 5000 e nos 3000 metros obstáculos, mas no seu maior desejo não vacilou, conquistando o nono título olímpico.

O mediatismo das suas conquistas atraiu o interesse de pessoas por todo o mundo e valeu-lhe um convite para realizar uma digressão. Esse pequeno gesto impediu-o de voltar a competir nos Jogos Olímpicos de 1932, já com 35 anos. O objetivo era correr a maratona, despedindo-se da mesma forma que o herói Kolehmainen, mas estava reconhecido como profissional e foi forçado a ficar de fora.

O estatuto de Paavo Nurmi não foi afetado e o reconhecimento chegou em força nos Jogos Olímpicos de 1952, quando foi chamado a acender a pira olímpica em Helsínquia. Tinham passado mais de 20 anos desde a sua despedida, mas o seu nome continuava a deixar marca. O checoslovaco Emil Zatopek, grande figura do atletismo nessa edição, tornou-se o seu fiel sucessor. Da mesma forma que Nurmi quis seguir os passos de Kolehmainen, Zatopek costumava treinar com a mente fixada no finlandês. Foi a passagem de testemunho perfeita.

17 de Fevereiro, 2020

Somos um país de racistas (mas não gostamos que nos lembrem disso)

Rui Pedro Silva

Marega

O que se passou em Guimarães com Marega não foi nem mais nem menos grave do que aquilo que se tem passado durante décadas no futebol em Portugal. Na Europa. E um pouco por todo o mundo. Olhando para trás, não é difícil nem é preciso fazer um esforço grande para percebermos que o racismo estrutural é uma das maiores falhas da sociedade portuguesa.

Marega atingiu um ponto de rotura. Aconteceu ali, naquele minuto, naquele momento, como poderia ter sido num outro jogo qualquer. Fosse com Marega ou com outro jogador. Nós, por cá, habituámo-nos a criticar o que se passa em Itália. A achar que os italianos são o povo latino mais racista da Europa e episódios em que os jogadores sentem que chegou a altura de dizer basta são mais um capítulo na vergonha de um campeonato que outrora foi grande e agora não é mais do que um tremido reflexo.

Nós, por cá, habituámo-nos a achar que o problema está nos outros. Está em Inglaterra. Na Alemanha, daqueles nazis. Na Itália. Até em França, dos Le Pen. Nós, por cá, somos diferentes. O racismo cá é diferente. Se existe, é muito pontual. Não, nós não somos contra «pretos». Não, nós não os tratamos mal. Nós até temos amigos que o são. Até partilhámos balneários com eles. Histórias. Brincadeiras. Piadas.

Não, nós por cá, sempre fomos diferentes. Somos capazes de entrar numa sala de cinema e sentir nojo quando vemos filmes que retratam a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. E, ao mesmo tempo, incapazes de perceber que Portugal está longe de ser um paraíso. Nós, por cá, deixámo-nos, durante demasiado tempo, contagiar por um racismo estrutural que muitos continuam a apregoar ter desaparecido. Ou simplesmente nunca ter existido.

Violência policial? Sim, é giro falar sobre isso quando Colin Kaepernick se ajoelha. Cânticos animais nas bancadas? Coitado do Balotelli. Por cá, não há nada disso. Ou pelo menos assim foi sendo construída a mentira, num castelo de areia frágil perante a ameaça de um tsunami.

Houve quem tenha falado em hipocrisia. Fê-lo pelos motivos errados, mas acertou na palavra. No sentimento. Qualquer exercício de memória sem grande dificuldade é capaz de nos trazer episódios idênticos ou ainda mais graves ao de Marega em Guimarães. A diferença? Marega foi o único a dizer basta e, por isso, o único a garantir que havia ondas de solidariedade.

Este é, há muito, o problema do racismo em Portugal. Habituámo-nos a achar algo tão natural que eles próprios, os abusados, começaram a sentir que era aceitável. Que fazia parte da realidade. Que era impossível escapar, dizer basta, mostrar ao mundo que estava errado.

Contra mim falo. Olhando hoje para trás, sinto vergonha. Sinto repulsa. Sinto que fui praticamente obrigado a falhar por esta realidade paralela que nada trouxe de bom. Joguei futebol federado onze anos. Joguei com africanos ou filhos de africanos desde sempre. Nos primeiros anos, chegou até a haver treinos em que na minha equipa eu era o único branco. Brincávamos com isso. Eu podia ser o único mas eles sempre foram a minoria.

O racismo existia – e muito – nos escalões de formação. Numa altura em que a internet não existia, pouco se sabia sobre as equipas adversárias. O primeiro contacto visual com a chegada da carrinha adversária provocava sempre as mesmas curiosidades. Primeiro, se eram grandes. Depois, quantos «pretos» tinham.

Quem jogou no final da década de 90 na Associação de Futebol de Lisboa, poderá reconhecer alguns nomes. Toda a gente falava do Papa, o «preto» do Belenenses que tinha idade para ser papá dos outros todos. Ou pelo menos assim se dizia. E o Oeiras tinha o Upari (que se lia Apari) e que era, conhecendo-o anos mais tarde, uma pessoa genuinamente correta e impossível de não gostar. Mas ali, num primeiro momento, todos eram os «pretos» grandes, os «pretos» em destaque.

Mais tarde, lembro-me do Abílio. Dentro do balneário, fizemos praticamente do Abílio a nossa mascote. O Abílio falava de maneira estranha. A voz tremia, ecoava de forma muito peculiar. E imitávamo-lo, brincando com ele, perante os seus sorrisos. Ele nunca levou a mal. Ele seria incapaz de levar a mal. Ou pelo menos assim achávamos.

Hoje, olhando para trás, sinto sobretudo que ele talvez nunca tenha pensado sequer que poderia levar a mal. Muito possivelmente, para ele, aquela seria a única realidade que conhecia. Poderia nem sequer saber que aquilo era errado. Podia não ter o conforto necessário para levantar a voz, impor-se, e dizer basta. Afinal, o Abílio nem sequer estava inscrito. Que peso poderia ter ele num balneário?

Esta semana, em mais um genial episódio do podcast O Brinco do Baptista, falou-se sobre o problema de minorias em balneários. Dos perigos da mentalidade de matilha. Da toxicidade que alguns comportamentos podem ter. Sinceramente, olho para trás, e acho que sempre respeitei, tanto quanto conseguia, qualquer colega que tive. Mas, ao mesmo tempo, sou incapaz de ignorar que tive momentos, tanto no futebol como na escola, reprováveis.

Tenho memória suficiente para me lembrar do que fiz bem e do que fiz mal, do que poderia ter feito diferente. Fosse com negros, raparigas ou vítimas de bullying. Afinal, nestes casos, parecia sempre mais fácil deixar andar. Ficar calado. Felizmente, nunca fui instigador. Mas isso não me iliba de ter contribuído para ambientes negativos. De racismo, de machismo. De muito mais.

O que Marega fez em Guimarães foi acordar-nos em definitivo para uma realidade que nos deixa desconfortáveis. Marega não foi a primeira vítima. Marega foi, isso sim, o primeiro exemplo mediático a ser capaz de dizer basta. A trazer o elefante para o centro da sala. A garantir que seria impossível continuar a ignorar que Portugal é racista. Que há exemplos destes nos quatro cantos do país.

Hoje, é impossível dizer que só acontece lá fora. Podíamos dizer que estamos a importar o pior do que se passa lá fora. Estaríamos a ser hipócritas. Este racismo esteve sempre do lado de cá da fronteira. Só demorámos mais tempo a ter um escândalo com esta magnitude.

E, quando finalmente aconteceu, poucos foram aqueles que passaram com distinção. Tem havido muita hipocrisia, sim. Tem havido tiros ao lado. E houve, sobretudo, uma falta de compaixão e compreensão enorme por quem partilha a profissão e estava naquele relvado com Marega.

Foi o espelho perfeito do racismo em Portugal. Uma vez mais, esperou-se que Marega comesse e calasse. Que percebesse que faz parte. Que é assim mesmo. Que tem de se habituar. Ser profissional, ignorar e continuar a fazer aquilo para o qual é pago dentro de campo. Por outras palavras, houve quem lhe tenha pedido que ajudasse a propagar e eternizar a aceitação do racismo.

Marega recusou-se. Não o fez. E ao não o fazer deu um exemplo valioso para milhares de jovens em Portugal. Porque às vezes é mais importante manter as costas direitas do que ceder à vénia. Porque às vezes é preciso dizer basta. Porque às vezes só conseguimos avançar quando paramos. Para pensar e para mudar a mentalidade. Para mostrar ao mundo – e ao país – o que está errado.

Marega não foi a primeira vítima em Portugal. Mas foi o primeiro a conseguir provocar uma onda de solidariedade a nível interno e internacional. E só o fez, só garantiu que o tema viesse claramente para a luz do dia por ter tomado a atitude que tomou. Se tivesse continuado em campo e criticado os acontecimentos no final, o racismo teria ficado esquecido na espuma do dia. Assim, é impossível.

Temos, todos, de agradecer a Marega por isso. Fez-nos pensar. Olhar para trás. Perceber o que se fez de errado. O que continua errado. E o que tem mesmo de se fazer para que, ao olhar para a frente, se possa encarar o futuro com otimismo.

Porque Portugal sempre foi racista. E continua a sê-lo em 2020. Mas depende de todos nós ajudar a promover a mudança. O que Marega fez foi valioso. Mas será uma gota de água no deserto se não conseguirmos honrar verdadeiramente o que um gesto aparentemente tão simples mas cheio de coragem pode significar.

Marega relembrou-nos, com clareza, algo que não gostamos.

14 de Fevereiro, 2020

Charles Paddock. A velocidade do bezerro com duas cabeças

Especial Jogos Olímpicos (Antuérpia-1920)

Rui Pedro Silva

Vitória de Charles Paddock

Era visto como o homem mais rápido da década de 20 e provou-o na final dos 100 metros em Antuérpia. Por muito que lhe tenham traçado um futuro amargo e sem grande inspiração atlética, o texano que cresceu na Califórnia provou que estavam todos errados.

«É gordo. Tem um ombro mais alto que o outro. A coluna vertebral está afetada. A respiração nasal é deficiente. Parece um bezerro com duas cabeças.» Pode parecer impossível mas este foi o diagnóstico de um médico depois de analisar Charles Paddock.

É impossível ignorar que a constituição física do norte-americano era… peculiar. As pernas eram curtas e o tronco demasiado largo, afastando qualquer ideia padrão que se tenha sobre o protótipo ideal de um velocista.

Mais, o próprio estilo de corrida era rocambolesco, para ser amigável. Inclinava demasiado a cabeça para um lado e para o outro a cada passada e insistia em terminar as distâncias com um salto, tão longo quanto conseguisse, como se isso lhe permitisse ganhar uma vantagem sobre os rivais. Os treinadores apontavam-no como um exemplo… de tudo o que não se deve fazer numa corrida, mas reconheciam que era o melhor.

Charles Paddock chegou ao atletismo de velocidade um pouco por acaso. Nasceu no Texas em 1900 mas a propensão para os problemas de saúde forçou a família a mudar-se de malas e bagagens para a Califórnia. Aí, pela primeira vez, teve contacto com as corridas e começou por enamorar-se pelas de longa distância. Depois de aconselhado pelo pai, fixou-se nas provas de velocidade… com sucesso.

Quando chegou a Antuérpia em 1920, com 20 anos acabados de fazer, Paddock já era um dos principais nomes entre os velocistas. E, quando foi preciso confirmar esse domínio, não vacilou, conquistando um total de três medalhas.

Foi campeão olímpico dos 100 metros – com o mesmo tempo (10,8 segundos) do compatriota Morris Kirsey -, conquistou a medalha de prata nos 200 metros e fez parte da equipa dos Estados Unidos que venceu a estafeta dos 4x100 metros.

Foi o seu ponto alto. Quatro anos depois voltou a ser atleta olímpico mas não foi além da repetição da medalha de prata nos 200 metros. O homem de 171 centímetros e 74 quilos tinha contrariado os piores vaticínios e demonstrado que um «bezerro com duas cabeças» podia fazer história no desporto mundial.

13 de Fevereiro, 2020

Duke Kahanamoku. A faceta olímpica do pai do surf

Especial Jogos Olímpicos (Antuérpia-1920)

Rui Pedro Silva

Duke estava sempre perto de uma prancha

Foi uma das figuras dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920, e conquistou duas medalhas de ouro na natação. Esteve perto, muito perto, de se tornar o primeiro homem a nadar os 100 metros em menos de um minuto e, finda a carreira olímpica, celebrizou-se como o pai de uma nova modalidade.

Quando o havaiano Duke Kahanamoku chegou à Bélgica em 1920, a vida olímpica não era novidade para ele. Campeão olímpico dos 100 metros em 1912, detinha o recorde mundial da distância desde esse ano. Era uma das figuras mais fortes no panorama da natação, naquela que era uma extensão natural da forma como tinha crescido.

Duke era aquilo que se começou a chamar de «beach boy». Nasceu em Honolulu e passou toda a infância e adolescência nas areias da zona de Waikiki. Nadava – muito – e andava sempre acompanhado de uma prancha. De certa forma, foram atividades premonitórias.

A edição belga dos Jogos Olímpicos foi aquela em que Duke mais se celebrizou, com a conquista de duas medalhas de ouro no mesmo dia. A final dos 100 metros foi um passeio no «parque». Entrou como principal favorito, detentor do recorde olímpico (1:02.4 em 1912) e mundial (1:01.4), e começou por bater o primeiro logo na série inaugural dos quartos de final. Na meia-final, como aviso, fez ainda melhor e igualou o recorde olímpico ao mundial.

No verdadeiro tira-teimas, foi preciso nadar os 100 metros duas vezes, depois de o australiano William Herald ter protestado que o norte-americano Norman Ross o tinha prejudicado. Na primeira versão, Duke esteve pertíssimo de se tornar o primeiro homem a baixar do minuto na distância, registando um tempo de 1:00.4. No segundo take, provocado por Herald, a ordem do pódio não se alterou, e o havaiano confirmou o título olímpico com uma marca de 1:01.4.

A segunda medalha de ouro foi muito mais fácil de ganhar, na estafeta dos 4x100 metros livres. Fazendo equipa com o também havaiano Pua Kealoha – prata nos 100 metros -, Perry McGillivray e Norman Ross, Duke contribuiu para um recorde mundial da disciplina (10:04.4) com 21 segundos de vantagem sobre os australianos.

Duke Kahanamoku voltou a aparecer na edição de Paris, em 1924, mas não conseguiu ser tricampeão olímpico dos 100 metros, perdendo a final para o… «Tarzan» Johnny Weissmuller. Com o desporto de alta competição descartado, partiu em digressão mundial para dar lições de natação. Pelo meio – e esta acabou por ser a parte mais importante -, introduziu a paixão pela prancha, ensinando as raízes do surf um pouco por todo mundo, ganhando expressão significativa sobretudo na Austrália.

A importância da prancha na sua vida – e na dos outros – foi tão grande que em 1925 salvou oito homens de um naufrágio na Califórnia graças a esse trunfo. «Foi o salvamento numa prancha mais sobrehumano que o mundo já viu», comentou o chefe da polícia local, referindo-se à quantidade de viagens que Duke fez entre o local do naufrágio e a costa.

12 de Fevereiro, 2020

Philip Baker. O medalhado que foi Prémio Nobel da Paz

Especial Jogos Olímpicos (Antuérpia-1920)

Rui Pedro Silva

Philip Baker

Foi medalha de prata na prova dos 1500 metros nos Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920, e o seu desempenho ficou famoso pela forma como ajudou o compatriota britânico, Albert Hill, a vencer. Mas foi a sua vida pós-olímpica que marcou a forma como é conhecido hoje em dia.

Albert Hill tinha 31 anos e vira a sua carreira desportiva ficar por um fio durante a Grande Guerra. Resistiu, sobreviveu e apareceu em Antuérpia dedicado a demonstrar que tinha talento e capacidade para escrever história olímpica. Começou por vencer os 800 metros e, numa distância maior, nos 1500, contou com a valiosa ajuda de Philip Baker.

Baker foi um fiel escudeiro. Era apenas um ano mais novo mas não se importou de servir de escudo nos ataques a Hill. Ajudou sempre que possível, acompanhou o ritmo e no final foi premiado com a medalha de prata, terminando a meio segundo de Hill e com sete décimas de segundo de vantagem sobre o norte-americano Lawrence Shields.

O segundo lugar foi o seu apogeu desportivo. Depois disso, atualizou o nome para Philip Noel-Baker – já tinha casado durante o conflito mundial - e começou a construir uma vida fundamental na evolução do século XX. Com uma educação formal cuidada e uma carreira académica, não precisou de muito tempo até entrar no mundo da política.

Numa primeira fase, após o fim da Grande Guerra, foi um dos responsáveis pela formação da Liga das Nações. Mais tarde, em 1929, foi eleito para o parlamento britânico, mantendo depois, entre 1936 e 1970, vários cargos nos gabinetes de maior importância de Londres, responsabilizando-se, curiosamente, pela organização dos Jogos Olímpicos de 1948.

O ponto mais alto chegou em 1959, novamente na sequência de uma guerra mundial. O trabalho que fez em prol do desarmamento nuclear multilateral foi reconhecido pela academia sueca e venceu o Prémio Nobel da Paz.

Philip Baker pode ter deixado a medalha de ouro para Albert Hill (será que teria conseguido vencer?), mas há algo que ninguém lhe conseguiu tirar tantos anos depois. O britânico, que morreu em 1982 com 92 anos, continua a ser a única figura da história a conseguir acumular uma medalha olímpica com um Prémio Nobel da Paz. Esta nem Bob Dylan conseguiu.

11 de Fevereiro, 2020

Ethelda Bleibtrey. A mulher dos recordes do mundo

Especial Jogos Olímpicos (Antuérpia-1920)

Rui Pedro Silva

Ethelda Bleibtrey

Nadou numa especialidade que não era a sua mas saiu de Antuérpia-1920 com três títulos olímpicos. A demonstração de superioridade foi tão grande que conseguiu bater recordes do mundo sempre que entrava na água.

A história de Ethelda tem muitos pontos de contacto com tantas outras crianças do início do século XX. Depois de ter tido poliomielite, foi-lhe recomendado que começasse a nadar durante o processo de recuperação. A paixão foi imediata e não precisou de mais de três anos de prática para entrar em Antuérpia com o objetivo de ganhar tudo o que havia para ganhar.

Ethelda Bleibtrey, então com 18 anos, sentia-se completamente à vontade dentro de água. Na verdade, até começou por se sentir demasiado confortável, como é prova o facto de ter sido detida após nadar numa piscina pública sem collants, como era exigido às mulheres na altura.

Do outro lado do Atlântico, na Bélgica, não teve de ultrapassar constrangimentos deste nível. As edições dos Jogos Olímpicos ainda não eram alvo de muitas participações femininas mas Ethelda, natural de Nova Iorque, não teve problemas em assumir-se como um dos principais destaques.

Especialista a nadar bruços, foi nas provas de estilo livre que fez a diferença, mais não seja por ser a única especialidade existente na versão feminina. Os 100 metros foram o primeiro desafio de Ethelda e a marca de 1:16.2 da australiana Fanny Durack teve uma dura…ção muito curta. Na primeira vez que foi para a água, na terceira série das meias-finais, Ethelda roubou praticamente dois segundos à melhor marca mundial (1:14.4).

Era apenas o começo. Dois dias depois, na final, Ethelda Bleibtrey mostrou que estava várias braçadas à frente de toda a concorrência e estabeleceu novo recorde mundial (1:13.6), com uma vantagem de 3,4 segundos sobre a compatriota Irene Guest, que ficou com a medalha de prata.

Os 300 metros foram a segunda fase do seu plano de domínio. Uma vez mais, o recorde pertencia a Fanny Durack (4:56.2), uma vez mais foi estilhaçado em instantes. Primeiro, na meia-final, baixou praticamente 15 segundos (!), com uma marca de 4:41.4. Depois, na final, ganha com mais de oito segundos de vantagem sobre a também norte-americana Margaret Woodbridge, bateu a sua própria marca por 7,4 segundos.

A prova da estafeta dos 4x100 marcou a despedida de Ethelda Bleibtrey, naquele que foi um final perfeito… e com o quinto recorde mundial batido em cerca de uma semana. Na final, a equipa que também contava com Woodbridge, Guest e Frances Schroth estabeleceu uma marca de 5:11.6. Não só terminou com uns impressionantes 29,2 segundos de vantagem sobre a equipa britânica, como roubou 41,2 segundos ao anterior recorde mundial.

Antes de Spitz, Phelps, Franklin ou Ledecky, houve Ethelda Bleibtrey. E foi sensacional.

10 de Fevereiro, 2020

Victor Boin. A voz do primeiro juramento olímpico

Especial Jogos Olímpicos (Antuérpia-1920)

Rui Pedro Silva

Victor Boin

Dedicou a vida inteira ao desporto e ganhou medalhas em três edições diferentes dos Jogos. Em Antuérpia-1920, na despedida, entrou para a história como o primeiro atleta a proferir o juramento olímpico na cerimónia de abertura.

«Nós juramos. Vamos participar nos Jogos Olímpicos com um espírito de cavalheirismo, pela honra do nosso país e pela glória do desporto.» Foi assim, numa versão inicial que veio a sofrer várias alterações ao longo das últimas décadas, que o belga Victor Boin entrou na história do evento.

A ideia veio de Pierre de Coubertin, para variar, e não é coincidência que tenha surgido precisamente dois anos depois do final da Grande Guerra. O ideal olímpico tinha sofrido um dure golpe mas o desporto seria a melhor forma de encarar o futuro com outros olhos.

Como a prova foi organizada pela Bélgica, em Antuérpia, a escolha de Boin surgiu sem grande surpresa. O belga tinha um historial olímpico que falava por ele: em Londres-1908 ganhara uma medalha de prata com a equipa de pólo aquático e em Estocolmo-1912 ficara com a medalha de bronze na mesma prova.

Oito anos depois, contudo, entrou em ação na esgrima. Este ecletismo de Victor Boin não era novidade. Era a mesma pessoa que tinha salvado uma mãe e uma criança de se afogarem com apenas onze anos, o adolescente que fundou o primeiro clube de hóquei no gelo belga, o rapaz que recebeu a licença de jornalismo com 15 anos.

Antes de chegar a Antuérpia, Boin foi voluntário na Grande Guerra e aprendeu a pilotar aviões, chegando mesmo a transportar a rainha Isabel da Bélgica sobre o Canal da Mancha. Por essa altura, também já tinha sido campeão nacional de jiu-jitsu e campeão belga e europeu de patinagem de velocidade. Aliás, a propensão para as vitórias começara logo aos dois anos, quando ganhou um concurso de beleza para bebés.

Antuérpia marcou a sua terceira e derradeira medalha, novamente por equipas, novamente de bronze. Mas a sua ligação ao desporto estava longe de terminar. Prosseguiu a carreira de jornalista e cobriu, para uma rádio belga, os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, e depois da II Guerra Mundial chegou mesmo a presidir ao Comité Olímpico Belga.

07 de Fevereiro, 2020

Kostas Tsikilitras. O herói olímpico que morreu a defender a Grécia

Especial Jogos Olímpicos (Estocolmo-1912)

Rui Pedro Silva

Kostas Tsikilitras

Conquistou quatro medalhas olímpicas entre 1908 e 1912 e era uma das maiores potências do desporto grego. Poucos meses depois de alcançar a glória em Estocolmo, decidiu que queria defender a Grécia na Guerra dos Balcãs. Morreu em fevereiro de 1913 depois de contrair meningite.

A história está repleta de atletas que representaram os seus países nos Jogos Olímpicos e depois acabaram mortos ou desaparecidos em cenários de guerra. O italiano Otello Capitani, da ginástica, estreou esta lista inglória ao ser abatido em combate durante a guerra italo-turca na Líbia em 1912, mas foi um grego, Konstantinos Tsikilitras, que chamou a si o primeiro momento de drama no mundo do desporto.

As vidas são todas iguais mas o impacto de Tsikilitras no panorama olímpico tinha sido incomparavelmente maior. Em 1908, na estreia em Jogos, conseguiu duas medalhas de prata no atletismo: salto em comprimento sem balanço e salto em altura sem balanço. Quatro anos depois, em Estocolmo, decidiu que estava na altura de elevar a fasquia. O bronze no salto em altura sem balanço foi um tranquilo conforto para o homem que subiu ao lugar mais alto do pódio no salto em comprimento… sem balanço.

O dia 8 de julho entrou na história da sua vida. Perante a concorrência dos norte-americanos, saltou 3,37 metros no terceiro ensaio e garantiu a distância que lhe valeria a primeira e única medalha de ouro da sua carreira. Ficou a dez centímetros do recorde mundial de Ray Ewry mas foi suficiente – ainda que por apenas um centímetro – para ficar à frente de Platt Adams. O irmão de Platt, Benjamin, conquistou a medalha de bronze com 3,28 metros.

Os Jogos Olímpicos ficaram para trás e a Europa estava a aproximar-se de momentos conturbados. As Guerras dos Balcãs começaram em outubro de 1912 e a Grécia estava envolvida. Tsikilitras sentiu que tinha o dever de defender o seu país e insistiu em estar na linha da frente, apesar de o seu estatuto lhe permitir pedir dispensa.

A 10 de fevereiro de 1913, Konstantinos Tsikilitras tornou-se o primeiro campeão – e apenas o segundo atleta - olímpico da história a morrer durante um conflito. Não em combate, mas na sequência de ter contraído meningite. Tinha 24 anos.

06 de Fevereiro, 2020

Jim Thorpe. O bicampeão tramado por um punhado de dólares

Especial Jogos Olímpicos (Estocolmo-1912)

Rui Pedro Silva

Jim Thorpe

Norte-americano de origem índia dominou provas do pentatlo e do decatlo de forma esmagadora nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. Com um talento inigualável para inúmeras modalidades, acabou sem as medalhas depois de ter sido publicada uma notícia de que teria recebido alguns dólares para jogar basebol de forma semi-profissional.

Dois dos avós – um de cada lado – eram índios (americanos nativos) e Jim Thorpe cresceu no seio de uma tribo. As longas caminhadas que fazia na pradaria, aliadas às inúmeras tarefas a lidar com o gado, serviram de cocktail explosivo para que se pudesse tornar num talento com uma qualidade inacreditável.

Não havia uma modalidade única para Jim Thorpe e a estreia em Jogos Olímpicos em 1912, em Estocolmo, ajudou a provar isso mesmo. Apesar de ter participado também em categorias individuais, foi no pentatlo e no decatlo que o norte-americano fez verdadeira diferença. No pentatlo (lançamento do dardo, lançamento do disco, salto em comprimento, 200 metros e 1500 metros), perdeu apenas a primeira prova e ganhou sem dificuldade o concurso global.

A supremacia foi ainda mais evidente no decatlo. Ganhando com uma vantagem de praticamente 700 pontos, fixou um recorde (8412) que seria inultrapassável durante duas décadas. Estocolmo marcou a estreia das duas provas e Jim Thorpe não ofereceu qualquer margem para dúvida: era o atleta mais completo da edição.

O rei da Suécia, Gustav V, e o czar russo, Nicolau II, ficaram impressionadíssimos com o desempenho de Thorpe e fizeram questão de cumprimentá-lo e agraciá-lo com ofertas especiais. Para aquele modesto homem da região do Oklahoma, tudo aquilo era uma dimensão diferente daquela à qual estava habituado.

A glória olímpica não chegou a durar um ano. Quando uma publicação norte-americana divulgou uma notícia que revelava que Thorpe tinha recebido alguns dólares numa liga semi-profissional em 1911, a associação atlética norte-americana informou o Comité Olímpico Internacional e contribuiu para a sua desqualificação.

Jim Thorpe não negou, mas acentuou que era algo que muitos faziam. Ele, ao contrário de outros, não se escondeu atrás de pseudónimos. E mais: recordou que o dinheiro recebido dava para pouco mais do que para o transporte. Era uma soma irrisória.

Sem medalhas mas com o orgulho intacto – os vice-campeões recusaram receber as distinções retroativamente por reconhecerem a supremacia de Thorpe -, o futuro marcou mais de uma década ligado ao desporto de elite.

O «Caminho Luminoso», como respondia pelo seu nome índio, não teve dificuldade em continuar a brilhar e esteve seis épocas na MLB, passando por equipas como os New York Giants e os Boston Braves. No total, conseguiu sete home runs. Depois, na viragem da década, esteve ligado ao nascimento da NFL, jogando por seis equipas diferentes entre 1920 e 1928. Além de ser kicker, também registou seis touchdowns – todos em corrida – durante a sua aventura.

O homem que também jogou basquetebol, numa equipa preenchida exclusivamente por nativos americanos, morreu de ataque cardíaco enquanto jantava em 1953 e nunca foi perdoado pelo Comité Olímpico Internacional em vida, por muitas tentativas que tivessem sido feitas.

Apenas 30 anos após a sua morte, em 1983, o organismo decidiu finalmente voltar atrás e entregar as medalhas aos filhos de Thorpe. Foi a justa homenagem àquele que continuou a ser considerado como o desportista mais completo do século XX.

05 de Fevereiro, 2020

Arnold Jackson. O vencedor da corrida mais épica da história

Especial Jogos Olímpicos (Estocolmo-1912)

Rui Pedro Silva

Arnold Jackson e a final disputadíssima

O britânico foi um militar altamente condecorado na Grande Guerra (1914-1918) mas a primeira medalha foi ganha nos Jogos Olímpicos de 1912, em Estocolmo. Campeão olímpico dos 1500 metros, foi o expoente máximo de uma prova que continua a ser considerada a melhor de sempre.

Lembra-se de uma corrida olímpica que tenha sido renhida? Mas assim mesmo renhida, entre muitos corredores, e na qual não tenha sido possível confirmar, a olho nu, a classificação? Se pensou na medalha de prata de Francis Obikwelu nos 100 metros em 2004, acertou. Era precisamente nessa que estávamos a pensar.

Atenas foi palco de uma corrida fantástica. O norte-americano Justin Gatlin sagrou-se campeão olímpico do hectómetro com um tempo de 9,85 segundos, mas os restantes atletas do pódio, Francis Obikwelu e Maurice Greene, registaram apenas mais um centésimo de segundo e tiveram de ser desempatados no photo-finish. Mais: o quarto classificado, o também norte-americano Shawn Crawford, ficou a apenas quatro centésimos de segundo da medalha de ouro.

Impressionante, não é? Sem dúvida, mas não podemos ignorar que numa era de grande profissionalismo e na corrida mais curta do programa olímpico, as diferenças sejam muito curtas, sobretudo se não houver alguém como Usain Bolt na pista.

Mas o que dizer de uma corrida igualmente equilibrada, salvas as devidas proporções, nos 1500 metros? Foi o que aconteceu nos Jogos Olímpicos de Estocolmo em 1912, edição em que a medalha de ouro foi para o britânico Arnold Jackson.

Diz-se, e com propriedade, que foi a melhor prova alguma vez corrida. E percebe-se porquê. A 10 de julho de 1912, Arnold Jackson conquistou a medalha de ouro com um tempo de três minutos, 56 segundos e oito décimos, fixando um novo recorde olímpico. Atrás de si, os norte-americanos Abel Kiviat e Norman Taber ficaram a apenas uma décima.

E ficou por aqui? Nem por isso. Ernst Wide, o sueco que corria com o apoio do público foi quinto classificado apesar de ter lutado pelo primeiro lugar até ao fim. Feitas as contas, terminou a oito décimos de Arnold Jackson.

Foram 1500 metros de corrida, praticamente quatro minutos em pista, e no final os primeiros cinco classificados ficaram separados por menos de um mísero segundo.

Arnold Jackson fez história a dobrar. O britânico foi também o último atleta da história a participar nos Jogos Olímpicos de forma individual. Representava a Grã-Bretanha, sim, mas não tinha sido selecionado para integrar a comitiva.

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