Zidane. Mais «10» no espírito do que nas costas
Zidane é um nome que desperta emoções e aviva memórias. Que nos faz sentir pequeninos perante a grandeza que mostrava em campo, fosse através de um toque que tirava um adversário do caminho, de um golo que decidiu uma Liga dos Campeões ou de cabeçadas que resolveram Mundiais… no bom e no mau sentido.
Mas Zinedine Yazid Zidane é, sobretudo, a roleta. Não só aquela que repetia vezes sem conta no relvado, elevando-o ao seu gesto mais famoso dentro de campo, mas também a que viveu desde novo em La Castellana, nos subúrbios de Marselha.
Um bairro problemático, marcado pelo desemprego e pela criminalidade, e povoado sobretudo por imigrantes, tinha potencial para desencaminhar qualquer um. Mas não Zidane. Filho de pais argelinos, que tinham ido para Paris na década de 50 para escapar à guerra da independência, sempre soube o que tinha de fazer.
O pai foi a maior inspiração. Foi ele que lhe ensinou que um imigrante tem de trabalhar o dobro de todos os outros, que nunca deve desistir. E Yazid, como lhe chamava a família, levou isso muito a peito.
De feitio muito tímido, incapaz de manter uma conversa com mais do que cinco ou seis palavras, percebeu rapidamente que o bairro era uma oportunidade. E continuou a ser para sempre a sua verdadeira casa. No meio de tantas outras crianças de diferentes raças e famílias pobres, aprendeu muito, não apenas sobre futebol, mas sobre a vida.
Num mundo onde as pessoas sofriam apenas para chegar ao fim do dia, o futebol era a parte fácil. Sobretudo para Zidane. Dotado de um talento sobrenatural, deu nas vistas desde cedo e rumou a Cannes com 14 anos. O futuro era uma incógnita. Partiu apenas com a promessa de um estágio de seis dias, mas um teria sido suficiente. Zidane era tudo aquilo que se via dele: o bom e o mau. E foi-o desde o início, como se percebe pelo facto de ter sido expulso num dos seus primeiros jogos. Um adversário provocou-o, o futuro melhor jogador do mundo perdeu a cabeça… e deu-lhe um murro.
«Se olharem para os 14 vermelhos que vi na minha carreira», disse um dia Zidane, «12 foram por provocação». «Não é uma justificação, não é uma desculpa, mas a minha paixão, o meu temperamento e o meu sangue quente fazem-me reagir.»
Estas três características eram as mesmas que também faziam dele um jogador especial e, depois de três anos a brilhar nos escalões de formação, estreou-se pela equipa principal a 18 de maio de 1989. Tinha 17 anos.
Na primeira temporada completa pelo Cannes, Zidane deu festival. Não ganhou nenhuma Palma de Ouro mas ajudou o clube a chegar ao quarto lugar – o melhor da sua história – e a garantir a estreia nas competições europeias.
Portugal cruzou-se com Zidane pela primeira vez. No estádio do Bessa, em setembro de 1991, o francês, com o 11 nas costas por causa de Aliosa Asanovic, fez o primeiro de 117 jogos nas competições europeias. Perdeu, por culpa de Jorge Plácido, mas a vingança acabaria por chegar. Era uma questão de tempo.
Zidane começou a ser um jogador demasiado grande para o Cannes. E foi assim que chegou o Bordéus, no verão de 1992. O Zidane de Bordéus é o Zidane que começa a encantar a Europa do futebol. Com o sete nas costas – o 10 iria ter Richard Witschge como dono -, jogou ao lado de Lizarazu e Dugarry, e ajudou a equipa a vencer a Intertoto em 1995 e a chegar à final da Taça UEFA em 1996, perdida para o Bayern Munique.
Foi também quando estava ao serviço do Bordéus que se estreou na seleção, marcando os dois golos à República Checa em agosto de 1994, numa altura em que era treinado por… Toni. O português esteve apenas um ano à frente do clube e, garante o próprio, recomendou o genial francês ao Benfica. Mas não havia dinheiro.
A rampa de lançamento estava construída e Zidane seguia a toda a velocidade. Não precisava de ser rápido: pensava melhor que os adversários, via coisas onde elas não existiam e inventava lances deliciosos. Certo dia, Kevin Keegan disse que Zidane era um maestro na arte de controlar a bola, arranjando espaço onde aparentemente não havia nenhum.
Zidane era um Keanu Reeves a viver na Matrix do futebol. Só ele percebia o inimaginável, mas todos nós conseguíamos ver nele um escolhido. Um talento geracional com uma elegância digna de desfile, mas com as falhas próprias dos verdadeiros heróis.
A Juventus garantiu o grande prémio no verão de 1996. Era campeã europeia, tinha um plantel cheio de enormes talentos, mas havia sempre espaço para mais um. Mais um não, que Zidane nunca seria apenas mais um. Zidane era o escolhido.
Em Turim, com o número 21 nas costas por causa de Del Piero, seguiu o seu caminho em direção ao estrelato. O espaço entre cabelos já começava a rivalizar com o espaço que descobria entre jogadas, mas a sua careca cada vez mais proeminente não era mais que um adereço do que mostrava em campo.
Um dos momentos mais especiais da sua carreira chegou logo nos primeiros meses, na final da Taça Intercontinental. Em Tóquio, contra o River Plate, partilhou o relvado com Enzo Francescoli, um dos seus maiores ídolos de infância. Zidane era louco pelo Marselha – nem quando estava no Cannes deixou de ir ao Vélodrome para ver alguns jogos – e tinha no uruguaio uma enorme inspiração. Tanto que deu o nome Enzo ao filho quando este nasceu em 1995.
Zidane tornou-se uma lenda para os adeptos mas nunca conseguiu vestir verdadeiramente esse papel. Era tímido, era envergonhado. Era um homem fechado para a sua família e com dificuldade em relacionar-se com o mundo exterior. E lidava muito mal com a frustração.
Os primeiros anos na Juventus trouxeram-lhe uma enorme provação. Perdeu a final da Liga dos Campeões em anos consecutivos, para o Dortmund em 97 e para o Real Madrid em 98, e nem o bicampeonato doméstico ajudou. A recompensa haveria de chegar, logo nessa época. Zidane já era uma estrela mas estava a caminho de ser imortal.
O Mundial de 98 é o Mundial de Zidane. Conseguiu mostrar o seu pior, como quando foi expulso por pisar um saudita, e o melhor, fosse nos golos de cabeça na final ou no gesto magnífico contra a Dinamarca em que, com uma subtil receção orientada, deixou Helveg completamente fora do lance. Ser considerado o melhor jogador do mundo para a FIFA e vencer a Bola de Ouro no final do ano não foi mais do que uma consequência óbvia.
«Faz da bola o que quer mas é a sua determinação que faz a diferença», garantia Aimé Jacquet, o selecionador que Zidane fizera campeão do mundo. Para Henry, Zidane era «o jogador no qual se pode apoiar sempre, aquele que realmente controlava o jogo».
O espaço e o tempo eram dominados de uma forma que Einstein nunca podia ter imaginado. Zidane movia-se em câmara lenta. Tirava o melhor de cada lance, de cada adversário, de cada nesga de relva que encontrava. E fazia-o com uma graciosidade que nos tirava do papel de espetadores. Passávamos a ser testemunhas, brindadas por aquele bailado único impossível de ser travado.
Portugal sentiu-o na pele no Euro-2000. Em Bruxelas, num estádio com nome de rei, Zidane chamou a si o trono e partiu para uma das exibições individuais mais impressionantes na história do futebol moderno. O penálti no prolongamento foi mais do que uma facada no coração dos portugueses: foi a consagração, mais uma, de Zidane como lenda do futebol.
O internacional francês nunca deixou de ser perseguido pelos próprios demónios. Campeão europeu, com novo título de melhor jogador do mundo para a FIFA, perdeu o controlo uma vez mais e agrediu Jochen Kientz à cabeçada num jogo contra o Hamburgo. Não fora a primeira vez e, como tão bem sabemos, não seria a última.
A perda de protagonismo do futebol italiano, e a incapacidade de continuar a chegar longe na UEFA, promoveu a transferência de Zidane para o Real Madrid em 2001 por cerca de 78 milhões de euros. Era um novo recorde mas os merengues estavam em plena implementação do plantel galáctico: havia Roberto Carlos, Raúl e Figo, e ainda iam chegar Ronaldo e Beckham.
Em Espanha, Zidane voltou a não ser o 10, por causa de Figo, e vestiu o 5. Mas conseguiu finalmente o que tão ambicionava: uma Liga dos Campeões. E fê-lo de forma memorável: com um estupendo golo em pontapé de moinho, que decidiu a final de Glasgow com o Leverkusen logo na primeira temporada. O título de campeão espanhol em 2003 e a consagração, pela terceira vez, de melhor jogador do ano para a FIFA no mesmo ano, foram secundários.
Zidane parecia, mais do que nunca, um homem tranquilo e feliz. Mais calmo, mais ponderado, e com o fim da carreira a aproximar-se.
Quando foi para o Mundial-2006 com a França, não havia dúvidas. Já se tinha despedido do Real Madrid e garantido ao mundo que aquela seria a sua última prova. Ia ser o primeiro jogador a terminar a carreira como detentor da transferência mais cara do futebol desde um argentino chamado Bernabé Ferreyra, em 1939, no ano em que começou a II Guerra Mundial.
Dentro de campo, esforçou-se para desenhar um final perfeito, digno de guião de Hollywood. Depois dos fracassos de 2002 e 2004, esta França não era uma forte candidata mas ninguém esperava que Zidane surgisse num nível tão alto.
Marcou à Espanha nos oitavos, fez a assistência para Henry nos quartos com o Brasil, voltou a afastar Portugal numas meias-finais de penálti, e começou a final com a Itália a marcar um penálti à Panenka… que tocou na barra.
Zidane era especial. Era único. Era genial. E tinha o segundo Mundial à distância de um último esforço. Mas o destino não quis nada com ele. No fundo, há muito que se sabia que Zidane não era um filme de Hollywood. Zidane era um argumento do Festival de Cannes, onde tinha começado a carreira em 1989.
Era complicado, denso, incapaz de ser apenas mais uma história feliz. Fazia pensar. O homem que se dizia ser primeiro um Kabyle (como se chamam aos naturais da região da Argélia de onde o pai era originário) de La Castellana, depois um argelino de Marselha e só finalmente um francês, voltou a ser mortal.
Reagiu às palavras de Materazzi, deu-lhe uma cabeçada em cheio no peito e viu o vermelho das mãos de Horacio Elizondo. Resignado, recolheu aos balneários. O mundo não podia acreditar no que estava a ver. Que fim tão trágico para um talento tão grande.
Ali, enquanto abandonava o maior palco do futebol, passou ao lado do troféu e desceu as escadas, como quem sai de plano quando passa de ator principal a mero figurante. O 10 nas costas assentava-lhe tão bem. Ali não houve Asanovic. Nem Witschge. Nem Del Piero. Nem Figo. Zidane disse adeus como o verdadeiro 10 que sempre foi: mais no espírito do que nas costas.