Boavista. O título inédito no arranque do milénio
*Este texto é a última de cinco partes do especial: «Boavista-2001. O making of de um título»
Portugal vivia um período… diferente, à falta de melhor palavra. No verão de 2000, o Sporting era campeão, a seleção nacional tinha conseguido um memorável desempenho na fase final do Europeu e… o Boavista preparava-se para escrever a página mais surpreendente do futebol português.
Chamar surpresa ao que o Boavista fez pode ser injusto. Como temos vindo a ver, ao longo dos últimos quatro textos, foram surgindo indícios de que o crescimento parecia sustentado e capaz de se intrometer entre os grandes. Mas, no momento da decisão, raros eram os que atribuíam qualquer tipo de favoritismo ao Boavista.
O contexto é importante. O Sporting ia viver a ressaca do seu primeiro título após o jejum, o FC Porto perdera Jardel e, pela primeira vez em muitos anos, parecia estar a passar por uma mudança de ciclo. Por fim, o Benfica estava na pior fase da sua história, com Vale e Azevedo como presidente, e encaminhava-se para terminar na sexta posição.
Já o Boavista atravessava o seu período mais estável de sempre. Os milhões da Liga dos Campeões tinham reforçado o orçamento e a equipa jogava cada vez mais à imagem de Jaime Pacheco: nem sempre bonito mas com resultados. No ataque à nova temporada, as alterações no plantel foram profundas: Timofte acabou a carreira, Paulo Sousa seguiu para escalões secundários, Douala foi para o Aves, e o herói da Champions, Augustine Ahinful, seguiu para a Turquia.
As entradas foram muitas. Petit, produto da formação, teve finalmente uma oportunidade no plantel, Rui Óscar chegou do Marítimo, Frechaut do V. Setúbal, Silva do Sp. Braga, Duda do Alverca, Pedro Santos do Gil Vicente, Gouveia do Belenenses, Marçal da U. Leiria, Khadim do Felgueiras e Geraldo do Brasil.
Mais uma vez a tendência é esmagadora: recrutamento preferencial nos campeonatos nacionais, explorando os melhores jogadores que a segunda linha tinha e potenciando produtos da formação. Dos 27 jogadores que o Boavista teve à sua disposição em 2000/01, apenas Geraldo, Whelliton, Rogério e William tinham sido contratados no estrangeiro (todos no Brasil).
O peso da formação também era grande, com Litos, Pedro Emanuel, Martelinho, Jorge Silva, Moreira e Petit. Era uma consequência natural de um clube com tradição nos escalões jovens. Ao longo da década anterior, tinha sido campeão de juniores em 1995, 1997 e 1999, de juvenis em 2000 e de iniciados em 1991 e 1995. Era um clube completo e sempre soube aproveitar isso.
Época inesquecível rumo a título histórico
A Taça UEFA em 2000/01 foi uma desilusão. O sorteio não ajudou e o duelo com a Roma, na segunda eliminatória, marcou a despedida dos axadrezados nas competições europeias. Na Taça de Portugal, Freamunde, Aves, Penafiel e Moreirense foram adversários simples e o caminho para o Jamor até estava aberto mas, a 21 de março, quando os axadrezados foram eliminados pelo Marítimo em casa, já o objetivo era outro: o campeonato.
Nesse dia, havia 25 jornadas disputadas e o Boavista seguia fantasticamente na liderança com 55 pontos, com seis de vantagem sobre FC Porto e Sporting. Ao contrário de anos anteriores, o arranque não foi sensacional. Com 12 jogos feitos, a equipa de Jaime Pacheco já tinha cedido cinco empates e consentido uma derrota. Tinha 23 pontos e estava a oito (!) do FC Porto.
Ser campeão estava longe do pensamento mas foi precisamente isso que acabou por acontecer. A partir de dezembro, na jornada 13, o Boavista somou 22 pontos em 24 possíveis e saltou para a liderança, na altura com cinco pontos de vantagem sobre o Benfica e, ainda mais surpreendentemente, sete sobre o FC Porto. Os dragões tinham caído num poço, como se compreende por esta inversão de papéis provocada pela perda de 15 pontos em oito jornadas.
Três deles foram precisamente no Bessa, na última jornada da primeira volta. Com um golo de Martelinho aos 31 minutos, o jogo do fim-de-semana teve um impacto simbólico. Foi neste dia, a 13 de janeiro, que os boavisteiros saltaram para a liderança e nunca mais a perderam.
A eliminação na Taça de Portugal marcou o início da reta final do campeonato. Com um único objetivo em mente, e com um FC Porto em recuperação visível, a margem de erro existia mas era pequena, sobretudo depois do empate no Funchal, novamente com o Marítimo.
O Boavista tinha quatro pontos de vantagem sobre o FC Porto e faltavam oito jogos. Mas como havia um dérbi nas Antas a fechar, sentia-se que a equipa das camisolas esquisitas estava encostada às cordas. Como reagiria sob pressão? Ia vacilar? Poderia Jaime Pacheco levar o Boavista a um título inédito?
Bem. Não. Sim. As três respostas são fáceis. O FC Porto não ajudou – não voltou a ceder pontos no campeonato – mas os axadrezados mostraram ter força mental para não voltar a escorregar. As vitórias até foram quase sempre à justa (Silva marcou ao Farense aos 80 minutos num 1-0, Duda confirmou a reviravolta para o 2-1 aos 60 em Guimarães, Martelinho marcou o único golo do jogo com o Sporting aos 89, e Mantorras chegou a assustar na deslocação a Alverca, superada com um 2-1), mas quando a meta já estava à vista, tudo melhorou.
Os triunfos sobre o Gil Vicente na jornada 31 (2-0) e sobre o Salgueiros na jornada 32 (5-1), proporcionaram uma oportunidade única: ser campeão na penúltima jornada, em casa, contra o Aves. Estava mais do que visto que este Boavista não ia vacilar.
Com um onze formado por Ricardo, Frechaut, Litos, Pedro Emanuel, Quevedo, Petit, Rui Bento, Martelinho, Sánchez, Duda e Silva, os axadrezados venceram 3-0 (autogolo de José Soares aos 29, Silva as 49 e Whelitton aos 64) e tiveram a melhor noite da sua história. A tão temida última jornada nas Antas, frente a um FC Porto impotente para mudar o cenário do título, perdeu importância. E até terminou numa goleada para os dragões (4-0), com direito a hat-trick de Deco.
A memória de jogadores como João Pinto, Ricky, Marlon, Artur, Jimmy Hasselbaink, Nuno Gomes, Timofte, Bobó e tantos outros estava viva. Bem como a de Manuel José. Todos eles tiveram uma importância clara neste crescimento sustentado, mesmo que o Boavista de Jaime Pacheco já tivesse uma identidade completamente diferente.
Este era o Boavista de coesão, com nenhum jogador a marcar mais de 11 golos no campeonato (Silva), de combate, com Petit e Litos a verem 25 amarelos no conjunto (13+12). Era um Boavista que sabia o que tinha de fazer em cada jogo para chegar onde precisava.
Era um Boavista digno do estatuto de quarto grande. Soube-o ser contra equipas pequenas e, sobretudo, contra os outros grandes. Ganhou Taças de Portugal contra FC Porto e Benfica, venceu duas Supertaças ao FC Porto e, no campeonato, nunca teve problemas em fazer frente aos principais adversários, sobretudo no Bessa.
No período desde 1991/92, o ano de chegada de Manuel José, este Boavista disputou taco a taco os jogos no Bessa com Benfica (quatro vitórias, três empates e três derrotas), FC Porto (2-5-3) e Sporting (6-3-1). Fora de casa, sentiu mais dificuldades em Alvalade (0-5-5) e nas Antas (1-1-8), mas conseguiu um registo muito positivo na Luz (3-4-3).
O legado do campeonato
O Boavista não se ressentiu da ressaca do campeonato e partiu para mais duas temporadas de alto nível. Em 2001/02 discutiu o título com o Sporting até à penúltima jornada, terminando na segunda posição, mas foi nas competições europeias que os axadrezados brilharam verdadeiramente. Mais do que nunca até então.
Com Rui Bento, o jogador com mais anos de balneário, a sair para Alvalade, o plantel também sentiu a ausência de Litos. Mas nem por isso os resultados foram abaixo do esperado. No regresso à Liga dos Campeões, os axadrezados fizeram história e superaram a primeira fase de grupos, depois de somarem três pontos com o Dínamo Kiev, dois com o Liverpool e três com o Dortmund.
Entre as 16 melhores equipas da Europa, as dificuldades subiram de tom mas nem por isso o Boavista pareceu deslocado. Começou a fase a ganhar ao Nantes e ainda empatou com o Bayern Munique no Bessa e com os franceses fora. Só mesmo o Manchester United foi um obstáculo impossível para a equipa de Jaime Pacheco, que perdeu em Old Trafford e no Porto pelo mesmo resultado (3-0).
A época seguinte, 2002/03, conseguiu ser ainda mais memorável. O décimo lugar no campeonato pode ter sido a pior marca do clube desde 1971/72, mas a campanha europeia esteve perto, muito perto mesmo, de proporcionar uma final 100% lusitana.
Depois de perder na pré-eliminatória de acesso à fase de grupos da Liga dos Campeões, pelo Auxerre, o Boavista fez uma campanha espetacular na Taça UEFA. Deixou pelo caminho Maccabi Telavive, Anorthosis Famagusta, PSG de Ronaldinho Gaúcho, Hertha Berlim e Málaga até encontrar o Celtic de Henrik Larsson na meia-final. O 1-1 na Escócia deu vantagem aos axadrezados mas no Bessa, a onze minutos do fim, o sueco foi vilão e marcou o único golo do jogo.
A era dourada do Boavista terminou aqui. Foi a última participação europeia do Boavista e desde então nunca fez mais do que as meias-finais numa Taça de Portugal e o sexto lugar no campeonato. Passou pela despromoção – e promoção – administrativa, perdeu referências e o estatuto de quarto grande. Ou, no mínimo, de maior ameaça, ano após ano, a FC Porto, Benfica e Sporting.