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É Desporto

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25 de Novembro, 2019

Zidane. Mais «10» no espírito do que nas costas

Rui Pedro Silva

Zidane despede-se do Mundial-2006

*Este texto serviu de base ao episódio sobre Zinedine Zidane da rubrica «Nota 10» do podcast Matraquilhos.

Zidane é um nome que desperta emoções e aviva memórias. Que nos faz sentir pequeninos perante a grandeza que mostrava em campo, fosse através de um toque que tirava um adversário do caminho, de um golo que decidiu uma Liga dos Campeões ou de cabeçadas que resolveram Mundiais… no bom e no mau sentido.

Mas Zinedine Yazid Zidane é, sobretudo, a roleta. Não só aquela que repetia vezes sem conta no relvado, elevando-o ao seu gesto mais famoso dentro de campo, mas também a que viveu desde novo em La Castellana, nos subúrbios de Marselha.

Um bairro problemático, marcado pelo desemprego e pela criminalidade, e povoado sobretudo por imigrantes, tinha potencial para desencaminhar qualquer um. Mas não Zidane. Filho de pais argelinos, que tinham ido para Paris na década de 50 para escapar à guerra da independência, sempre soube o que tinha de fazer.

O pai foi a maior inspiração. Foi ele que lhe ensinou que um imigrante tem de trabalhar o dobro de todos os outros, que nunca deve desistir. E Yazid, como lhe chamava a família, levou isso muito a peito.

De feitio muito tímido, incapaz de manter uma conversa com mais do que cinco ou seis palavras, percebeu rapidamente que o bairro era uma oportunidade. E continuou a ser para sempre a sua verdadeira casa. No meio de tantas outras crianças de diferentes raças e famílias pobres, aprendeu muito, não apenas sobre futebol, mas sobre a vida.

Num mundo onde as pessoas sofriam apenas para chegar ao fim do dia, o futebol era a parte fácil. Sobretudo para Zidane. Dotado de um talento sobrenatural, deu nas vistas desde cedo e rumou a Cannes com 14 anos. O futuro era uma incógnita. Partiu apenas com a promessa de um estágio de seis dias, mas um teria sido suficiente. Zidane era tudo aquilo que se via dele: o bom e o mau. E foi-o desde o início, como se percebe pelo facto de ter sido expulso num dos seus primeiros jogos. Um adversário provocou-o, o futuro melhor jogador do mundo perdeu a cabeça… e deu-lhe um murro.

«Se olharem para os 14 vermelhos que vi na minha carreira», disse um dia Zidane, «12 foram por provocação». «Não é uma justificação, não é uma desculpa, mas a minha paixão, o meu temperamento e o meu sangue quente fazem-me reagir.»

Estas três características eram as mesmas que também faziam dele um jogador especial e, depois de três anos a brilhar nos escalões de formação, estreou-se pela equipa principal a 18 de maio de 1989. Tinha 17 anos.

Zidane ao serviço do Cannes

Na primeira temporada completa pelo Cannes, Zidane deu festival. Não ganhou nenhuma Palma de Ouro mas ajudou o clube a chegar ao quarto lugar – o melhor da sua história – e a garantir a estreia nas competições europeias.

Portugal cruzou-se com Zidane pela primeira vez. No estádio do Bessa, em setembro de 1991, o francês, com o 11 nas costas por causa de Aliosa Asanovic, fez o primeiro de 117 jogos nas competições europeias. Perdeu, por culpa de Jorge Plácido, mas a vingança acabaria por chegar. Era uma questão de tempo.

Zidane começou a ser um jogador demasiado grande para o Cannes. E foi assim que chegou o Bordéus, no verão de 1992. O Zidane de Bordéus é o Zidane que começa a encantar a Europa do futebol. Com o sete nas costas – o 10 iria ter Richard Witschge como dono -, jogou ao lado de Lizarazu e Dugarry, e ajudou a equipa a vencer a Intertoto em 1995 e a chegar à final da Taça UEFA em 1996, perdida para o Bayern Munique.

Zidane no Bordéus

Foi também quando estava ao serviço do Bordéus que se estreou na seleção, marcando os dois golos à República Checa em agosto de 1994, numa altura em que era treinado por… Toni. O português esteve apenas um ano à frente do clube e, garante o próprio, recomendou o genial francês ao Benfica. Mas não havia dinheiro.

A rampa de lançamento estava construída e Zidane seguia a toda a velocidade. Não precisava de ser rápido: pensava melhor que os adversários, via coisas onde elas não existiam e inventava lances deliciosos. Certo dia, Kevin Keegan disse que Zidane era um maestro na arte de controlar a bola, arranjando espaço onde aparentemente não havia nenhum.

Zidane era um Keanu Reeves a viver na Matrix do futebol. Só ele percebia o inimaginável, mas todos nós conseguíamos ver nele um escolhido. Um talento geracional com uma elegância digna de desfile, mas com as falhas próprias dos verdadeiros heróis.

A Juventus garantiu o grande prémio no verão de 1996. Era campeã europeia, tinha um plantel cheio de enormes talentos, mas havia sempre espaço para mais um. Mais um não, que Zidane nunca seria apenas mais um. Zidane era o escolhido.

Em Turim, com o número 21 nas costas por causa de Del Piero, seguiu o seu caminho em direção ao estrelato. O espaço entre cabelos já começava a rivalizar com o espaço que descobria entre jogadas, mas a sua careca cada vez mais proeminente não era mais que um adereço do que mostrava em campo.

Zidane observa o seu ídolo ao longe

Um dos momentos mais especiais da sua carreira chegou logo nos primeiros meses, na final da Taça Intercontinental. Em Tóquio, contra o River Plate, partilhou o relvado com Enzo Francescoli, um dos seus maiores ídolos de infância. Zidane era louco pelo Marselha – nem quando estava no Cannes deixou de ir ao Vélodrome para ver alguns jogos – e tinha no uruguaio uma enorme inspiração. Tanto que deu o nome Enzo ao filho quando este nasceu em 1995.

Zidane tornou-se uma lenda para os adeptos mas nunca conseguiu vestir verdadeiramente esse papel. Era tímido, era envergonhado. Era um homem fechado para a sua família e com dificuldade em relacionar-se com o mundo exterior. E lidava muito mal com a frustração.

Os primeiros anos na Juventus trouxeram-lhe uma enorme provação. Perdeu a final da Liga dos Campeões em anos consecutivos, para o Dortmund em 97 e para o Real Madrid em 98, e nem o bicampeonato doméstico ajudou. A recompensa haveria de chegar, logo nessa época. Zidane já era uma estrela mas estava a caminho de ser imortal.

Zidane brilhou no Mundial-1998

O Mundial de 98 é o Mundial de Zidane. Conseguiu mostrar o seu pior, como quando foi expulso por pisar um saudita, e o melhor, fosse nos golos de cabeça na final ou no gesto magnífico contra a Dinamarca em que, com uma subtil receção orientada, deixou Helveg completamente fora do lance. Ser considerado o melhor jogador do mundo para a FIFA e vencer a Bola de Ouro no final do ano não foi mais do que uma consequência óbvia.

«Faz da bola o que quer mas é a sua determinação que faz a diferença», garantia Aimé Jacquet, o selecionador que Zidane fizera campeão do mundo. Para Henry, Zidane era «o jogador no qual se pode apoiar sempre, aquele que realmente controlava o jogo».

O espaço e o tempo eram dominados de uma forma que Einstein nunca podia ter imaginado. Zidane movia-se em câmara lenta. Tirava o melhor de cada lance, de cada adversário, de cada nesga de relva que encontrava. E fazia-o com uma graciosidade que nos tirava do papel de espetadores. Passávamos a ser testemunhas, brindadas por aquele bailado único impossível de ser travado.

Portugal sentiu-o na pele no Euro-2000. Em Bruxelas, num estádio com nome de rei, Zidane chamou a si o trono e partiu para uma das exibições individuais mais impressionantes na história do futebol moderno. O penálti no prolongamento foi mais do que uma facada no coração dos portugueses: foi a consagração, mais uma, de Zidane como lenda do futebol.

O penálti que eliminou os portugueses

O internacional francês nunca deixou de ser perseguido pelos próprios demónios. Campeão europeu, com novo título de melhor jogador do mundo para a FIFA, perdeu o controlo uma vez mais e agrediu Jochen Kientz à cabeçada num jogo contra o Hamburgo. Não fora a primeira vez e, como tão bem sabemos, não seria a última.

A perda de protagonismo do futebol italiano, e a incapacidade de continuar a chegar longe na UEFA, promoveu a transferência de Zidane para o Real Madrid em 2001 por cerca de 78 milhões de euros. Era um novo recorde mas os merengues estavam em plena implementação do plantel galáctico: havia Roberto Carlos, Raúl e Figo, e ainda iam chegar Ronaldo e Beckham.

Em Espanha, Zidane voltou a não ser o 10, por causa de Figo, e vestiu o 5. Mas conseguiu finalmente o que tão ambicionava: uma Liga dos Campeões. E fê-lo de forma memorável: com um estupendo golo em pontapé de moinho, que decidiu a final de Glasgow com o Leverkusen logo na primeira temporada. O título de campeão espanhol em 2003 e a consagração, pela terceira vez, de melhor jogador do ano para a FIFA no mesmo ano, foram secundários.

O golo mais memorável de Zidane?

Zidane parecia, mais do que nunca, um homem tranquilo e feliz. Mais calmo, mais ponderado, e com o fim da carreira a aproximar-se.

Quando foi para o Mundial-2006 com a França, não havia dúvidas. Já se tinha despedido do Real Madrid e garantido ao mundo que aquela seria a sua última prova. Ia ser o primeiro jogador a terminar a carreira como detentor da transferência mais cara do futebol desde um argentino chamado Bernabé Ferreyra, em 1939, no ano em que começou a II Guerra Mundial.

Dentro de campo, esforçou-se para desenhar um final perfeito, digno de guião de Hollywood. Depois dos fracassos de 2002 e 2004, esta França não era uma forte candidata mas ninguém esperava que Zidane surgisse num nível tão alto.
Marcou à Espanha nos oitavos, fez a assistência para Henry nos quartos com o Brasil, voltou a afastar Portugal numas meias-finais de penálti, e começou a final com a Itália a marcar um penálti à Panenka… que tocou na barra.

Zidane era especial. Era único. Era genial. E tinha o segundo Mundial à distância de um último esforço. Mas o destino não quis nada com ele. No fundo, há muito que se sabia que Zidane não era um filme de Hollywood. Zidane era um argumento do Festival de Cannes, onde tinha começado a carreira em 1989.

Era complicado, denso, incapaz de ser apenas mais uma história feliz. Fazia pensar. O homem que se dizia ser primeiro um Kabyle (como se chamam aos naturais da região da Argélia de onde o pai era originário) de La Castellana, depois um argelino de Marselha e só finalmente um francês, voltou a ser mortal.

A última cabeçada da carreira de Zidane

Reagiu às palavras de Materazzi, deu-lhe uma cabeçada em cheio no peito e viu o vermelho das mãos de Horacio Elizondo. Resignado, recolheu aos balneários. O mundo não podia acreditar no que estava a ver. Que fim tão trágico para um talento tão grande.

Ali, enquanto abandonava o maior palco do futebol, passou ao lado do troféu e desceu as escadas, como quem sai de plano quando passa de ator principal a mero figurante. O 10 nas costas assentava-lhe tão bem. Ali não houve Asanovic. Nem Witschge. Nem Del Piero. Nem Figo. Zidane disse adeus como o verdadeiro 10 que sempre foi: mais no espírito do que nas costas.

22 de Novembro, 2019

Boavista. O título inédito no arranque do milénio

Rui Pedro Silva

Um onze histórico

*Este texto é a última de cinco partes do especial: «Boavista-2001. O making of de um título»

Portugal vivia um período… diferente, à falta de melhor palavra. No verão de 2000, o Sporting era campeão, a seleção nacional tinha conseguido um memorável desempenho na fase final do Europeu e… o Boavista preparava-se para escrever a página mais surpreendente do futebol português.

Chamar surpresa ao que o Boavista fez pode ser injusto. Como temos vindo a ver, ao longo dos últimos quatro textos, foram surgindo indícios de que o crescimento parecia sustentado e capaz de se intrometer entre os grandes. Mas, no momento da decisão, raros eram os que atribuíam qualquer tipo de favoritismo ao Boavista.

O contexto é importante. O Sporting ia viver a ressaca do seu primeiro título após o jejum, o FC Porto perdera Jardel e, pela primeira vez em muitos anos, parecia estar a passar por uma mudança de ciclo. Por fim, o Benfica estava na pior fase da sua história, com Vale e Azevedo como presidente, e encaminhava-se para terminar na sexta posição.

Já o Boavista atravessava o seu período mais estável de sempre. Os milhões da Liga dos Campeões tinham reforçado o orçamento e a equipa jogava cada vez mais à imagem de Jaime Pacheco: nem sempre bonito mas com resultados. No ataque à nova temporada, as alterações no plantel foram profundas: Timofte acabou a carreira, Paulo Sousa seguiu para escalões secundários, Douala foi para o Aves, e o herói da Champions, Augustine Ahinful, seguiu para a Turquia.

As entradas foram muitas. Petit, produto da formação, teve finalmente uma oportunidade no plantel, Rui Óscar chegou do Marítimo, Frechaut do V. Setúbal, Silva do Sp. Braga, Duda do Alverca, Pedro Santos do Gil Vicente, Gouveia do Belenenses, Marçal da U. Leiria, Khadim do Felgueiras e Geraldo do Brasil.

Mais uma vez a tendência é esmagadora: recrutamento preferencial nos campeonatos nacionais, explorando os melhores jogadores que a segunda linha tinha e potenciando produtos da formação. Dos 27 jogadores que o Boavista teve à sua disposição em 2000/01, apenas Geraldo, Whelliton, Rogério e William tinham sido contratados no estrangeiro (todos no Brasil).

O peso da formação também era grande, com Litos, Pedro Emanuel, Martelinho, Jorge Silva, Moreira e Petit. Era uma consequência natural de um clube com tradição nos escalões jovens. Ao longo da década anterior, tinha sido campeão de juniores em 1995, 1997 e 1999, de juvenis em 2000 e de iniciados em 1991 e 1995. Era um clube completo e sempre soube aproveitar isso.

 

Época inesquecível rumo a título histórico

Festa do título no Bessa

A Taça UEFA em 2000/01 foi uma desilusão. O sorteio não ajudou e o duelo com a Roma, na segunda eliminatória, marcou a despedida dos axadrezados nas competições europeias. Na Taça de Portugal, Freamunde, Aves, Penafiel e Moreirense foram adversários simples e o caminho para o Jamor até estava aberto mas, a 21 de março, quando os axadrezados foram eliminados pelo Marítimo em casa, já o objetivo era outro: o campeonato.

Nesse dia, havia 25 jornadas disputadas e o Boavista seguia fantasticamente na liderança com 55 pontos, com seis de vantagem sobre FC Porto e Sporting. Ao contrário de anos anteriores, o arranque não foi sensacional. Com 12 jogos feitos, a equipa de Jaime Pacheco já tinha cedido cinco empates e consentido uma derrota. Tinha 23 pontos e estava a oito (!) do FC Porto.

Ser campeão estava longe do pensamento mas foi precisamente isso que acabou por acontecer. A partir de dezembro, na jornada 13, o Boavista somou 22 pontos em 24 possíveis e saltou para a liderança, na altura com cinco pontos de vantagem sobre o Benfica e, ainda mais surpreendentemente, sete sobre o FC Porto. Os dragões tinham caído num poço, como se compreende por esta inversão de papéis provocada pela perda de 15 pontos em oito jornadas.

Três deles foram precisamente no Bessa, na última jornada da primeira volta. Com um golo de Martelinho aos 31 minutos, o jogo do fim-de-semana teve um impacto simbólico. Foi neste dia, a 13 de janeiro, que os boavisteiros saltaram para a liderança e nunca mais a perderam.

Martelinho foi essencial nos jogos decisivos

A eliminação na Taça de Portugal marcou o início da reta final do campeonato. Com um único objetivo em mente, e com um FC Porto em recuperação visível, a margem de erro existia mas era pequena, sobretudo depois do empate no Funchal, novamente com o Marítimo.

O Boavista tinha quatro pontos de vantagem sobre o FC Porto e faltavam oito jogos. Mas como havia um dérbi nas Antas a fechar, sentia-se que a equipa das camisolas esquisitas estava encostada às cordas. Como reagiria sob pressão? Ia vacilar? Poderia Jaime Pacheco levar o Boavista a um título inédito?

Bem. Não. Sim. As três respostas são fáceis. O FC Porto não ajudou – não voltou a ceder pontos no campeonato – mas os axadrezados mostraram ter força mental para não voltar a escorregar. As vitórias até foram quase sempre à justa (Silva marcou ao Farense aos 80 minutos num 1-0, Duda confirmou a reviravolta para o 2-1 aos 60 em Guimarães, Martelinho marcou o único golo do jogo com o Sporting aos 89, e Mantorras chegou a assustar na deslocação a Alverca, superada com um 2-1), mas quando a meta já estava à vista, tudo melhorou.

Os triunfos sobre o Gil Vicente na jornada 31 (2-0) e sobre o Salgueiros na jornada 32 (5-1), proporcionaram uma oportunidade única: ser campeão na penúltima jornada, em casa, contra o Aves. Estava mais do que visto que este Boavista não ia vacilar.

Com um onze formado por Ricardo, Frechaut, Litos, Pedro Emanuel, Quevedo, Petit, Rui Bento, Martelinho, Sánchez, Duda e Silva, os axadrezados venceram 3-0 (autogolo de José Soares aos 29, Silva as 49 e Whelitton aos 64) e tiveram a melhor noite da sua história. A tão temida última jornada nas Antas, frente a um FC Porto impotente para mudar o cenário do título, perdeu importância. E até terminou numa goleada para os dragões (4-0), com direito a hat-trick de Deco.

Rui Bento viveu praticamente todo este período no Bessa

A memória de jogadores como João Pinto, Ricky, Marlon, Artur, Jimmy Hasselbaink, Nuno Gomes, Timofte, Bobó e tantos outros estava viva. Bem como a de Manuel José. Todos eles tiveram uma importância clara neste crescimento sustentado, mesmo que o Boavista de Jaime Pacheco já tivesse uma identidade completamente diferente.

Este era o Boavista de coesão, com nenhum jogador a marcar mais de 11 golos no campeonato (Silva), de combate, com Petit e Litos a verem 25 amarelos no conjunto (13+12). Era um Boavista que sabia o que tinha de fazer em cada jogo para chegar onde precisava.

Era um Boavista digno do estatuto de quarto grande. Soube-o ser contra equipas pequenas e, sobretudo, contra os outros grandes. Ganhou Taças de Portugal contra FC Porto e Benfica, venceu duas Supertaças ao FC Porto e, no campeonato, nunca teve problemas em fazer frente aos principais adversários, sobretudo no Bessa.

No período desde 1991/92, o ano de chegada de Manuel José, este Boavista disputou taco a taco os jogos no Bessa com Benfica (quatro vitórias, três empates e três derrotas), FC Porto (2-5-3) e Sporting (6-3-1). Fora de casa, sentiu mais dificuldades em Alvalade (0-5-5) e nas Antas (1-1-8), mas conseguiu um registo muito positivo na Luz (3-4-3).

 

O legado do campeonato

Larsson impediu que o Boavista fizesse ainda mais história

O Boavista não se ressentiu da ressaca do campeonato e partiu para mais duas temporadas de alto nível. Em 2001/02 discutiu o título com o Sporting até à penúltima jornada, terminando na segunda posição, mas foi nas competições europeias que os axadrezados brilharam verdadeiramente. Mais do que nunca até então.

Com Rui Bento, o jogador com mais anos de balneário, a sair para Alvalade, o plantel também sentiu a ausência de Litos. Mas nem por isso os resultados foram abaixo do esperado. No regresso à Liga dos Campeões, os axadrezados fizeram história e superaram a primeira fase de grupos, depois de somarem três pontos com o Dínamo Kiev, dois com o Liverpool e três com o Dortmund.

Entre as 16 melhores equipas da Europa, as dificuldades subiram de tom mas nem por isso o Boavista pareceu deslocado. Começou a fase a ganhar ao Nantes e ainda empatou com o Bayern Munique no Bessa e com os franceses fora. Só mesmo o Manchester United foi um obstáculo impossível para a equipa de Jaime Pacheco, que perdeu em Old Trafford e no Porto pelo mesmo resultado (3-0).

A época seguinte, 2002/03, conseguiu ser ainda mais memorável. O décimo lugar no campeonato pode ter sido a pior marca do clube desde 1971/72, mas a campanha europeia esteve perto, muito perto mesmo, de proporcionar uma final 100% lusitana.

Depois de perder na pré-eliminatória de acesso à fase de grupos da Liga dos Campeões, pelo Auxerre, o Boavista fez uma campanha espetacular na Taça UEFA. Deixou pelo caminho Maccabi Telavive, Anorthosis Famagusta, PSG de Ronaldinho Gaúcho, Hertha Berlim e Málaga até encontrar o Celtic de Henrik Larsson na meia-final. O 1-1 na Escócia deu vantagem aos axadrezados mas no Bessa, a onze minutos do fim, o sueco foi vilão e marcou o único golo do jogo.

A era dourada do Boavista terminou aqui. Foi a última participação europeia do Boavista e desde então nunca fez mais do que as meias-finais numa Taça de Portugal e o sexto lugar no campeonato. Passou pela despromoção – e promoção – administrativa, perdeu referências e o estatuto de quarto grande. Ou, no mínimo, de maior ameaça, ano após ano, a FC Porto, Benfica e Sporting.

21 de Novembro, 2019

Boavista. Acreditar que é possível e uma estreia milionária

Rui Pedro Silva

Um dos onzes do Boavista numa noite de Liga dos Campeões

*Este texto é a quarta de cinco partes do especial: «Boavista-2001. O making of de um título»

Em 1998, Jaime Pacheco teve um primeiro verão relativamente tranquilo no Boavista. O balneário perdeu dois dos jogadores mais antigos do plantel (Alfredo e Jaime Alves terminaram a carreira), Tavares saiu para o U. Leiria depois de nunca ter conseguido mostrar a mesma qualidade que o tinha feito ser contratado pelo Benfica e o jovem Delfim, apesar de não ter sido muito utilizado, chamou a atenção do Sporting e rumou a Lisboa.

Em sentido contrário, chegaram jogadores que viriam a assumir uma preponderância significativa nas épocas seguintes: Douala foi descoberto na equipa B do Saint-Étienne, Sánchez foi cedido pelo Benfica mas acabou por não ter uma época muito feliz, Pedro Martins deixou Alvalade envolvido nas negociações por Delfim, Rogério foi recrutado no Brasil ao Vitória Pernambucano e Jorge Silva regressou a casa depois de três temporadas a rodar, entre Académica e U. Leiria.

Sem competições europeias e numa temporada em que a participação na Taça de Portugal acabou sem glória, nos quartos de final, aos pés do Esposende, Jaime Pacheco concentrou todas as atenções no campeonato. E os resultados foram muito animadores.

Ayew voltou a mostrar a sua tendência goleadora e terminou o campeonato com 15 golos, os mesmos do romeno Timofte, a rubricar a melhor época desde que chegara a Portugal. Douala foi um agitador nas alas, tal como Jorge Couto, e a solidez defensiva, muito por culpa de um quarteto que mesclava a experiência de Paulo Sousa e de Isaías e a juventude de qualidade com Litos e Mário Silva, promovia os axadrezados para voos mais altos.

Com onze jornadas disputadas, o Boavista seguia na liderança isolada com oito vitórias e três empates. O Sporting de Mirko Jozic, também sem derrotas, estava a dois pontos, o FC Porto a quatro e o Benfica a seis. O facto, por si só, podia não revelar muito. Não era a primeira vez que os axadrezados mostravam ser capazes de se intrometer nos lugares cimeiros durante a primeira metade da época.

A diferença é que este Boavista era mais. E acreditava cada vez mais nisso. E não foi apenas na primeira metade. No final de fevereiro, depois de vencer em Braga por 2-1, a equipa de Jaime Pacheco tinha 51 pontos em 23 jogos. O FC Porto liderava com 52, o Benfica tinha 49 e o Sporting, com 44, já estava longe.

Estava tudo em aberto mas aproximavam-se dois testes de fogo: receção ao FC Porto e viagem à Luz. No ataque à liderança, no Bessa, o jogo não saiu do nulo e o Benfica aproveitou. Faltavam dez jogos para o final e, num campeonato conhecido por ser um passeio para os dragões – fora assim nos quatro anos anteriores -, havia três equipas separadas por um ponto.

Timofte continuava a ser um dos esteios da equipa

O segundo teste de fogo, a 14 de março, na Luz, foi a derradeira prova que o Boavista precisava de passar. O título não era apenas uma miragem mas não era isso que estava a ser discutido: era se este Boavista, um excêntrico clube de segunda linha, fora da órbita dos grandes, conseguiria mesmo afirmar-se como aspirante legítimo até ao fim.

Ganhar já seria importante, mas o que se passou naquela tarde, contra um Benfica de Souness com a armada de britânicos em campo (Gary Charles, Steve Harkness, Michael Thomas, Mark Pembridge e Dean Saunders), foi muito mais. O Boavista deu uma lição. Agigantou-se e, ao mesmo tempo, tornou pequeno o Benfica. Marcou três golos (Ayew-2 e Luís Manuel) e não sofreu nenhum. Foi ali, neste dia, que o adepto do Boavista percebeu que o título era possível e saiu à rua para receber o autocarro da equipa no regresso ao Bessa.

É difícil olhar para trás e enquadrar perfeitamente o momento em que o Boavista começou a ser campeão. Pode ter sido com a presidência de Valentim Loureiro. Ou do filho. Com a chegada de Manuel José. Ou a de Rui Bento. Ou a de Jaime Pacheco. Todas elas terão argumentos válidos mas dificilmente se poderá retirar este jogo da equação: a vitória na Luz foi histórica. Épica. Mítica. Porque foi com ela que se começou a acreditar. E com verdadeira confiança.

A crença serviu de pouco naquele ano. Quiçá assoberbado pelo que tinha acabado de acontecer, o Boavista perdeu o comboio e desperdiçou seis pontos nas quatro jornadas seguintes (empates com V. Setúbal em casa, em Chaves e em Alvalade). Quando o campeonato terminou, o FC Porto foi pentacampeão com oito pontos de vantagem. O Boavista tinha vacilado mas, ao mesmo tempo, feito história: o segundo lugar, com seis pontos de vantagem sobre Benfica e oito sobre Sporting, valia o apuramento para a pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Os axadrezados já tinham sido segundos (1975/76), mas desta vez era diferente. Sentia-se isso no ar.

 

Aposta nos cifrões europeus

Ayew foi a grande baixa dos axadrezados em 1999

O verão de 1999 não trouxe uma experiência nova para o Boavista. Sempre que havia uma época de destaque, os grandes apareciam para pescar alguns dos destaques. O ganês Ayew era o grande prémio e foi ser campeão para Alvalade, mas de resto só saíram Sánchez (regressou ao Benfica, mas apenas na primeira metade de 1999/2000) e Isaías, que foi para o Brasil representar o Cruzeiro de Belo Horizonte.

A hipótese de chegar à Liga dos Campeões obrigou a um planeamento especial mas nem por isso o Boavista se afastou muito do seu modo de operação preferencial, recrutando sobretudo a nível interno: Emanuel (Rio Ave), Gilmar (V. Guimarães), Demétrios (Campomaiorense), Augustine Ahinful (U. Leiria), Formoso (Sp. Braga) e Erivan (Freamunde) foram os principais destaques, chegando também Whelliton do Brasil (CSA).

O sucesso da temporada dependeria, e muito, da capacidade de fazer história na UEFA. O Brondby foi o derradeiro obstáculo no acesso à fase de grupos e protagonizou uma eliminatória imprópria para… nervosos. Depois de ganhar na Dinamarca (2-1), a equipa de Jaime Pacheco tremeu no Bessa e só fechou o apuramento no prolongamento, por culpa dos golos de Augustine Ahinful (100’ e 110’) e Rui Bento (117’).

O jackpot financeiro contribuiu, e de que maneira, para a independência do Boavista, que deixava de estar à espera de vender os melhores jogadores. Dentro de campo, os resultados não desanimaram. A nível interno, o Boavista regressou à quarta posição (a 14 pontos do terceiro Benfica) e não foi além dos quartos de final na Taça de Portugal, mas na Europa do futebol representou o país de forma irrepreensível.

Os axadrezados eram a primeira equipa portuguesa a participar na prova sem qualquer título de campeão no seu currículo mas não se deixaram afetar pela pressão. Terminaram na quarta posição de um grupo com Rosenberg (11 pontos), Feyenoord (8) e Dortmund (6), porém saíram de cabeça erguida, com uma vitória (Dortmund no Bessa por 1-0 na despedida) e dois empates (ambos por 1-1 com o Feyenoord).

Que Boavista poderia ser este no futuro? Portugal, a Europa e o resto do mundo estavam prestes a descobrir. Ia escrever-se história.

20 de Novembro, 2019

Boavista. Uma transição conturbada que acaba com Jaime Pacheco

Rui Pedro Silva

João Loureiro e Jaime Pacheco juntaram-se em 1997/1998

*Este texto é a terceira de cinco partes do especial: «Boavista-2001. O making of de um título»

O verão de 1996 voltou a ser muito agitado para os lados do Bessa. Manuel José saíra para o Benfica depois de cinco temporadas como timoneiro dos axadrezados e o plantel também sofreu uma baixa significativa.

Depois de quatro épocas e 55 golos no clube, Artur mudou de cores na Invicta e foi para o FC Porto. O ataque era uma das áreas mais deficitárias do plantel (Nelson Bertollazzi também havia regressado ao Brasil), mas esteve longe de ser um problema durante a temporada. Nuno Gomes cumpria a terceira época com o plantel sénior e marcou 15 golos no campeonato. O holandês do Suriname, Jimmy Floyd Hasselbaink, foi recrutado ao Campomaiorense e tornou-se o melhor marcador da equipa com 20 golos.

Do FC Porto, fruto dos negócios desencadeados pela transferência de Artur, chegaram Jorge Couto (um futuro campeão) e Latapy. Simic foi pescado na Madeira, ao União do segundo escalão, e Martelinho e Pedro Emanuel regressaram dos empréstimos.

Com sete jogadores no plantel que acabariam por ser campeões em 2001, este Boavista sofreu para começar a carburar. Faltava um líder. Ou melhor, faltava alguém que conseguisse preservar a empatia que havia entre Manuel José e os jogadores. Zoran Filipovic foi a primeira aposta de Valentim Loureiro mas durou poucos meses até ser substituído por João Alves, que aguentou ainda menos tempo. Por fim, Mário Reis.

A sombra de Manuel José, que entretanto também já tinha saído da Luz, era demasiado grande e o clube ressentiu-se. No final da primeira volta, tinha apenas quatro vitórias em 17 jornadas e seguia com 19 pontos no 14.º lugar. Na Taça UEFA, eliminara Odense e Dínamo Tbilisi mas sofrera a vingança do Inter nos oitavos de final (5-1 em Milão e 0-2 no Bessa). Só mesmo a Taça de Portugal poderia salvar a temporada… e foi precisamente o que aconteceu.

A chegada de Mário Reis assumiu um protagonismo indiscutível na evolução em 1997, no ano em que Valentim passou o testemunho ao filho João Loureiro. Dentro de campo, os jogadores soltaram-se, começaram a somar pontos atrás de pontos e só sofreram mais três derrotas: no Bessa com o FC Porto, em Braga e em Chaves. Pelo caminho, empataram com o Benfica e venceram o Sporting em casa.

As contas finais do campeonato mostravam precisamente essa evolução, com 49 pontos e um sétimo lugar. Na Taça de Portugal, a única janela de entrada restante para as competições europeias, os axadrezados eliminaram Estrela de Vendas Novas, Oriental, Infesta, Estoril e Sporting antes de reencontrar o Benfica no Jamor.

Foi uma final esquisita. Sánchez e Nuno Gomes já tinham a transferência para a Luz acordada mas fizeram a diferença dentro de campo no triunfo por 3-2. O boliviano bisou e o jovem português marcou um golo frente a um Benfica que acabou surpreendido pela entrada forte dos boavisteiros, que aos 28 minutos já ganhavam 2-0.

Mais um mercado cheio de novidades

Sánchez regressou à Luz mas voltou a não ter muito sucesso

Mário Reis manteve a posição de treinador para 1997/98 mas voltou a sentir as dores de crescimento num Boavista que acabara de vencer o terceiro título – e a segunda Taça de Portugal – da década.

O período marcava uma verdadeira mudança de geração. Sánchez e Nuno Gomes foram para o Benfica, Jimmy Floyd Hasselbaink rumou a Inglaterra para representar o Leeds United, Nelo foi para Vila do Conde e o mítico Bobó, líder do balneário em final de carreira e com apenas 45 minutos jogados, também tinha saído a meio da época

As saídas exigiam reforços e foi precisamente isso que aconteceu. Dos futuros campeões apareceram dois: o guarda-redes camaronês William foi contratado no Brasil e o francês Quevedo chegou do Moreirense.

Para um ataque cheio de buracos, sem Nuno Gomes e Jimmy, foram contratados Ayew (V. Setúbal), Conteh (Meppen), Wouden (Heerenveen) e Jacaré (Avaí), contrariando uma tendência forte de raramente recrutar jogadores no estrangeiro. Havia uma razão para tal: o ganês Ayew foi o único a provar o que valia, com 16 golos no campeonato, e uma entrada fulgurante na temporada, no jogo da Supertaça.

O duelo com o FC Porto, numa final a duas mãos, trouxe boas indicações: Ayew e Timofte marcaram no Bessa (2-0) e a equipa de Mário Reis segurou a vantagem nas Antas apesar da derrota (1-0), provocada por um ex-jogador (Fernando Mendes).

O problema é que não houve seguimento. A campanha europeia na Taça das Taças chegou ao fim logo na primeira ronda, após a eliminação com um ainda relativamente desconhecido Shakhtar Donetsk, e os resultados no campeonato obrigaram João Loureiro a mexer. Com 12 jogos disputados, o Boavista era 15.º com 12 pontos (apenas duas vitórias). Só V. Setúbal (10), Belenenses (9) e Desp. Chaves (8) estavam pior.

Era preciso agir. E, sem saber, promover a chegada de mais um futuro campeão. Jaime Pacheco tinha iniciado a época no V. Guimarães pelo terceiro ano consecutivo mas já estava desempregado, acabando substituído por Quinito depois de um empate… com o Boavista.

A escolha para suceder a Mário Reis não podia ter sido melhor. Este Boavista já não era o Boavistão de Manuel José. Não tinha os mesmos intérpretes. Não havia a qualidade de João Pinto, Marlon, Ricky ou Artur. Ayew era a única grande referência no ataque e atrás apenas a qualidade técnica de Timofte destoava num meio-campo de combate.

Nascia assim o Boavista de Pacheco. Um Boavista de luta, menos estético, com menor qualidade mas cada vez mais pragmático. Podia não jogar bem, ou sequer assemelhar-se ao estilo de jogo dos anos anteriores, sobretudo no período áureo com Manuel José, mas encontrara uma nova forma de chegar às vitórias.

A reta final trouxe um sabor agridoce. Muitos poucos poderiam acreditar mas o Boavista chegou à última jornada num lugar europeu: era quinto com 55 pontos, em igualdade pontual com o Sporting, e a um do terceiro classificado (o Vitória minhoto). Porém, a derrota em Campo Maior aliada ao triunfo do Marítimo no Funchal sobre o FC Porto fez com que os axadrezados falhassem o acesso à Europa do futebol.

O óbvio era aparente: a revolução estava em marcha e Jaime Pacheco era o comandante. A temporada seguinte seria especial. Foi a que fez com que os adeptos começassem realmente a acreditar que era possível algo mais. A história ia desenhar-se em anos consecutivos e nada mais voltaria a ser o mesmo.

19 de Novembro, 2019

Boavista. Da primeira peça do puzzle ao adeus de Manuel José

Rui Pedro Silva

Boavisa já com Rui Bento num jogo no Restelo

*Este texto é a segunda de cinco partes do especial: «Boavista-2001. O making of de um título»

A chegada de Rui Bento ao Bessa no verão de 1992 tem uma importância simbólica duplicada. Não foi só o primeiro jogador campeão em 2001 a chegar ao clube, fazendo dez épocas ininterruptas no Porto, como representou na perfeição o processo de composição do plantel defendido pelo Boavista e que contribuiu ano após ano para o sucesso: a capacidade de formar para os grandes e, ao mesmo tempo, potenciar as sobras que chegavam de FC Porto, Benfica e Sporting.

O verão de 1992 foi agitado neste capítulo. Houve saídas menos relevantes, como as de Pudar, Hubart ou Jaime Cerqueira, mas outras que foram parar à Segunda Circular. João Pinto foi a principal baixa e seguiu caminho para a Luz juntamente com Fernando Mendes e Samuel, que regressavam ao Benfica depois de uma temporada no Bessa. Mas Pedro Barny também rumou a Lisboa e assinou pelo Sporting.

Dos clubes da capital chegaram, além de Rui Bento, o boliviano Sánchez (que tinha estado cedido pelas águias ao Estoril), Venâncio, Litos e Tozé. No entanto, para colmatar a maior baixa no ataque, os axadrezados foram ao Brasil, ao Remo, descobrir um jogador chamado Artur.

A fasquia estava elevada por causa de Manuel José e o Boavista não desiludiu. Não conseguiu repetir o terceiro lugar – foi quarto a seis pontos do Sporting – mas manteve a capacidade de se intrometer entre os grandes. Na Supertaça com o FC Porto, venceu nas Antas por 2-1 (Kostadinov; Marlon Brandão e Artur) e empatou no Bessa a dois golos (Tavares e Marlon Brandão; Kostadinov-2), erguendo mais um troféu nacional. Na Taça de Portugal regressou ao Jamor depois de eliminar o Sporting nas meias-finais, mas foi incapaz de bater o Benfica (2-5).

As competições europeias continuaram a ser, ainda assim, a espinha na garganta deste Boavista. Apesar da vitória sobre os islandeses do Valur, o Boavista voltou a cair numa segunda ronda, desta feita contra o Parma de Taffarel, Brolin e Asprilla.

O balanço da temporada foi, ainda assim, muito positivo: Ricky esteve longe dos 30 golos no campeonato da época anterior (14), mas Artur mostrou ser uma aposta em cheio, substituindo os oito golos de João Pinto por 13. O tridente Ricky-Artur-Marlon terminou o campeonato com 35 golos e assumiu-se como um dos mais espetaculares em Portugal.

Depois de duas épocas inteiras ao serviço do Boavista, a posição de Manuel José estava cada vez mais consolidada e o plantel ganhou raízes para 1993/94. Só houve saídas dignas de registo na baliza (Lemajic e Costinha foram ambos para o Sporting) e de Alvalade regressou Pedro Barny, que acabou por ser o segundo jogador mais utilizado no campeonato.

Com poucas mexidas, o Boavista entrou a abrir na temporada. O modelo estava identificado, os jogadores conheciam-se como ninguém e os resultados apareceram: chegaram à nona jornada no primeiro lugar – em igualdade pontual com o Benfica, fruto de sete vitórias, um empate e uma derrota -, e, finalmente, a fazer história nas competições europeias.

De regresso à Taça UEFA, os axadrezados superaram pela primeira vez duas eliminatórias consecutivas. E fizeram ainda mais do que isso, batendo Union Luxemburgo, Lazio e OFI Creta, antes de sucumbir aos pés do Karlsruhe de Kahn, Nowotny e Bilic, já em março, nos quartos-de-final. Os axadrezados voltaram a não conseguir intrometer-se entre os três grandes e na Taça de Portugal (caíram numa fase precoce, perdendo em Santo Tirso na quinta eliminatória), mas percebia-se que este Boavista estava cada vez mais sólido. O problema é que os bons resultados iam provocar um novo turbilhão no mercado de transferências.

Uma renovação após a razia

Timofte marcou uma era no Bessa

O verão de 1994 para o Boavista não foi tão quente como o de 1993 para Benfica e Sporting mas marcou uma reconfiguração profunda do que tinham sido os axadrezados até então. Os encarnados então comandados por Artur Jorge foram pescar Nelo e Tavares, Casaca terminou a carreira, Marlon Brandão seguiu para Espanha (Valladolid), Ricky para o Brasil (Vitória), e a equipa ficou órfã de algumas das suas principais referências.

O ataque no mercado era essencial mas a aposta na formação começou a dar os primeiros verdadeiros frutos. Do FC Porto chegou Timofte, Fernando Mendes regressou de Lisboa e Abazaj e Simanic vieram com selo da Luz, embora sem qualidade comprovada. Por outro lado, e mesmo que não tenham tido grande sucesso logo em 1994/95, houve três jovens que se estrearam no plantel sénior e que viriam a marcar o futuro do clube: Nuno Gomes, Martelinho e Jorge Silva.

O plantel de 2000/01 começava a desenhar-se, embora de forma muito tímida. Rui Bento mantinha-se de pedra e cal, enquanto Sánchez, Martelinho e Jorge Silva acabariam por sair entretanto antes de regressar em definitivo rumo ao inédito título.

A temporada foi mais fraca do que as anteriores. Boa para um clube fora da cintura exterior dos grandes mas má para um Boavista que se queria assumir como algo mais. Artur assumiu a batuta de referência – marcou 15 golos no campeonato e começou a mostrar que mais tarde ou mais cedo ia ter de sair -, Timofte e Sánchez desenharam um meio-campo delicioso, mas os resultados alcançados não entusiasmaram, como se comprova por nova eliminação na quinta ronda da Taça de Portugal, o nono lugar no campeonato e – mais uma – derrota numa segunda ronda na UEFA (frente ao Nápoles). Eram as dores de crescimento naturais de um clube numa posição secundária na cadeia de alimentação do seu país.

Um novo fôlego no adeus de Manuel José

A temporada de 1995/96 arrancou com uma sensação estranha. O Boavistão de Manuel José, aquele clube português das camisolas esquisitas, estava fora das competições europeias depois de quatro participações consecutivas (recorde só igualado em 2003). Por outro lado, o plantel respirava outra confiança. Apesar das saídas de Fernando Mendes e Barny para o Belenenses, do experiente Nogueira para o V. Setúbal e das cedências por empréstimo de Jorge Silva e Martelinho, o Boavista soube reforçar-se a olhar para o futuro.

A nova fornada de jogadores da formação trouxe talentos como Mário Silva e Delfim, Nelo e Tavares regressaram de uma experiência fracassada no Benfica e nos escalões secundários tinham sido recrutados Litos (Rio Ave) e Ricardo (Montijo). Ou seja, tinham chegado mais dois futuros campeões.

A ausência dos compromissos europeus, a confirmação de Artur como um dos melhores jogadores do campeonato, a dinâmica crescente entre Timofte e Sánchez, os regressos de Nelo e Tavares, e a afirmação gradual de Nuno Gomes transformaram este Boavista numa nova ameaça. O quarto lugar no campeonato, a apenas dois pontos do Sporting, garantiu o regresso à UEFA e reassumiu os axadrezados como figura emergente a intrometer-se entre grandes.

Para Manuel José, o seu legado terminava aqui. Depois de cinco temporadas completas (máximo da carreira em Portugal), era a vez de o treinador dar o salto. À semelhança de João Pinto, Samuel, Fernando Mendes, Nelo e Tavares, também o algarvio foi parar à Luz, deixando o Boavista num momento delicado. A transição ia ser conturbada – até porque as saídas não se ficaram por aí – mas o modelo estava definido. E o futuro seria risonho.

18 de Novembro, 2019

O dia em que Michael Jordan foi o #12 dos Bulls

Rui Pedro Silva

Michael Jordan com o seu inédito número

Esta é uma história de amor. Da forma como Michael Jordan se deixou encantar pela rotina, pela superstição, pela possibilidade de repetir os mesmos gestos, as mesmas ações, as mesmas palavras, dia após dia num jogo da NBA. E de como ficou irritado na noite em que não o pôde fazer.

Esta é uma história do Dia dos Namorados de 1990. A 14 de fevereiro, em Orlando, os Chicago Bulls estavam sem energia e sem paciência. Era o último encontro de uma digressão de seis jogos fora e as quatro derrotas nas cinco partidas anteriores não auguravam grande coisa para a equipa orientada por Phil Jackson, naquela que era a sua primeira temporada com os Bulls.

O objetivo era voltar a casa o quanto antes mas aquele último jogo com a nova equipa da NBA obrigava-os a ficar mais umas horas na Florida. Michael Jordan, com médias superiores a 30 pontos por jogo e antigo MVP da liga mas ainda à procura do primeiro título, era a maior vedeta.

Jordan tinha os seus hábitos, as suas superstições próprias. Usava sempre os mesmos calções por baixo do equipamento, desde os tempos do basquetebol universitário, e reagia mal à mudança. Por isso, os minutos antes do jogo com os Orlando Magic foram uma irritação.

A camisola #23 de Michael Jordan tinha desaparecido, algures entre o treino ligeiro umas horas antes do encontro e a hora de início da partida. Os responsáveis dos Bulls tentaram encontrar uma alternativa. Os tempos eram outros: não havia tantas camisolas à disposição e, no meio do caos, lembraram-se de ir procurar adeptos de Chicago nas bancadas. Com sorte, talvez um deles tivesse uma camisola que pudesse servir a Jordan. Não havia, eram todas demasiado pequenas.

Michael Jordan com um #12 sem nome

O plano B provocou uma das estatísticas triviais mais curiosas na carreira de Michael Jordan. Para o que desse e viesse, os Bulls viajavam sempre com uma camisola com o número 12, sem nome nas costas, caso viesse a ser preciso. Nunca foi… até àquele dia.

Jordan resignou-se e usou o #12, provocando um aviso do speaker em Orlando, para garantir que os espetadores mais distraídos não ficavam sem perceber quem era aquele jogador (como se ele precisasse de notas prévias). Em 47 minutos, marcou 49 pontos em 43 lançamentos mas não foi capaz de evitar a derrota frente aos Magic, no prolongamento, por 135-129. «A minha frustração vem de perder um jogo que devíamos ter vencido. Não ligo patavina à forma como joguei», disse um Jordan visivelmente irritado aos jornalistas no final.

O roubo da camisola também foi motivo de conversa. «Nunca me tinha acontecido antes. É irritante porque estou habituado a certas coisas e não gosto de mudanças», afirmou. Do lado dos Magic, os responsáveis fizeram o possível para encontrar a camisola e todos os funcionários do pavilhão foram interrogados.

O que aconteceu? Não se sabe bem. Mesmo hoje, praticamente vinte anos depois, há versões contraditórias entre a imprensa norte-americana: uns dizem que a camisola nunca apareceu, outros que foi encontrada dois dias depois no teto falso do balneário visitante.

Para a história, ficam os 49 pontos num jogo… banal (?) de Michael Jordan. Afinal, aquela foi apenas uma de 22 ocasiões em que marcou pelo menos 40 pontos durante a temporada e, umas semanas depois, chegaria aos 69 contra os Cleveland Cavaliers.

A trivialidade do incidente fez com que, anos mais tarde, a NBA tenha comercializado uma camisola dos Bulls com o número 12, sem nome, para recordar o episódio. O preço? 300 dólares.

18 de Novembro, 2019

Boavista. A chegada de Manuel José ao clube das camisolas esquisitas

Rui Pedro Silva

Manuel José com Valentim Loureiro

*Este texto é a primeira de cinco partes do especial: «Boavista-2001. O making of de um título»

Quando Manuel José trocou os tigres de Espinho pelas panteras do Bessa no verão de 1991, encontrou um Boavista que procurava afirmar-se em definitivo como uma das principais equipas do campeonato português. O algarvio não brilhara no segundo escalão (o Sp. Espinho não fora além de um lugar a meio da tabela) mas tinha um passado de renome: sabia o que era treinar um clube grande (Sporting em duas ocasiões) e conhecia os ingredientes necessários para elevar ainda mais a fasquia.

O Boavista não era uma tábua rasa. Os tempos áureos da década de 70, com a conquista de três Taças de Portugal, eram uma memória muito presente e os axadrezados até tinham experiências regulares nas competições europeias. Até à chegada de Manuel José, viajaram até à Europa do futebol em nove ocasiões e, pelo meio, eliminaram nomes como Atlético Madrid e Fiorentina. Por outro lado, havia um bloqueio psicológico claro: nas seis vezes que conseguiram ultrapassar uma ronda, caíram logo a seguir.

O desafio de Manuel José, impulsionado por um cada vez mais presente Valentim Loureiro, era claro: elevar a fasquia tanto a nível interno como europeu. Não sabia como, onde, nem porquê, mas havia talento, conhecimento e determinação para ultrapassar essa barreira na Europa e voltar a tentar uma surpresa nas provas nacionais.

O primeiro plantel que Manuel José teve à sua disposição no Boavista era uma mistura de experiência com juventude, de solidez com irreverência, de força e de técnica. Se Gabriel Alves falava da força da técnica contra a técnica da força, o treinador conseguia formar um onze tecnicamente forte e com uma força técnica de registo.

João Vieira Pinto tinha 19 anos, acabara de regressar de uma experiência para esquecer em Madrid mas era campeão do mundo de sub-20. Fernando Mendes e Samuel vieram da Luz, Ricky da Amadora, Tavares do FC Porto e o guarda-redes Pudar, orientado por Manuel José em Espinho, chegou para lutar com Alfredo, Hubart e um adolescente Costinha, acabado de sair da formação.

Os nomes não se ficavam por aqui. A defesa contava com a experiência de Paulo Sousa, Barny e Nogueira, o meio-campo juntava a força de Bobó e Casaca à consistência de Nelo (muito melhor jogador do que mostrou na Luz) e no ataque ainda havia Marlon Brandão, que também já passara pela tutela de Manuel José em Alvalade.

O quarto lugar da época anterior, num ano em João Alves e Raul Águas dividiram o comando técnico, abriu caminho para um Boavista europeu. E foi precisamente aí que este Boavista de Manuel José começou a dar nas vistas.

Quando o Inter viajou para o Bessa em setembro de 1991, o Boavista seguia com três vitórias em quatro jornadas no campeonato, incluindo um surpreendente triunfo na Luz logo a abrir (golo de Casaca). A equipa italiana tinha um plantel de sonho e com vários campeões do mundo (Bergomi, Brehme, Matthäus e Klinsmann).

Inter metia medo mas caiu com o Boavista

Na baliza, havia Walter Zenga, o veterano guarda-redes que cunhou a expressão que ficou para a história. No seguimento das habituais perguntas sobre o adversário, o italiano disse que não sabia nada sobre o Boavista. Ou melhor, sabia apenas que era o clube das camisolas esquisitas.

Nas semanas seguintes, aprendeu bastante mais. Sofreu dois golos no Bessa na derrota por 2-1 (Marlon e Barny; Fontolan) e viu o seu ataque ficar a zeros no Giuseppe Meazza. Assim, num abrir e fechar de olhos, o Boavista de Manuel José tornou-se Boavistão e fez cheque-mate ao então campeão em título da Taça UEFA. No espaço de um mês e meio, os axadrezados haviam eliminado o Inter, derrotado o Benfica no campeonato e seguiam na liderança do campeonato em igualdade pontual com o FC Porto.

O mote estava dado. As camisolas esquisitas na UEFA caíram na ronda seguinte, novamente contra italianos (Torino) e prolongando o destino de não ultrapassar rondas consecutivas mas, a nível interno, os bons resultados continuaram a aparecer.

Lutar pelo título era uma ambição que ninguém equacionava, mas os duelos contra os grandes mostravam cada vez mais que este Boavista podia ser um caso sério: terminou a primeira volta com cinco pontos nesse minicampeonato, fruto de vitórias com Benfica e Sporting e um empate com o FC Porto. A segunda volta trouxe novos bons resultados, com mais uma vitória sobre os encarnados (1-0), um empate em Alvalade (1-1) e, na única derrota contra os crónicos candidatos, um 0-2 nas Antas.

Festa do Boavista no Jamor

Os sinais dados no campeonato foram decisivos para a Taça de Portugal. Depois de eliminatórias tranquilas com Lusitânia Lourosa, União da Madeira, Freamunde e Gil Vicente, o Boavista garantiu um lugar na final do Jamor ao eliminar o Benfica… na Luz.

A 24 de maio de 1992, no último jogo da temporada, a aposta de Valentim Loureiro em Manuel José foi coroada com o erguer de um troféu: o primeiro dos dez anos seguintes. O FC Porto foi derrotado por 2-1 (Marlon Brandão e Ricky; Jaime Magalhães) e o Boavista mostrou que ia atacar a década com um novo espírito.

O terceiro lugar no campeonato – em igualdade pontual com o Sporting mas com vantagem no desempate, e a apenas dois pontos do Benfica – foi apenas mais um ingrediente da receita de sucesso deste novo Boavistão.

Ricky sagrou-se o melhor marcador do campeonato, com 30 dos 45 golos dos boavisteiros, e João Pinto afirmou-se definitivamente como um talento geracional. Depois de entrar na época como campeão do mundo de sub-20, foi cobiçado até à última pelos grandes de Lisboa e chegou a acordo com o Benfica.

Manuel José podia perder o seu maior talento mas de Lisboa acabaria por chegar a primeira peça do plantel que seria campeão em 2001: Rui Bento. Lentamente, o puzzle estava a ser montado.

15 de Novembro, 2019

Prólogo. Uma década de making of do Boavista campeão

Rui Pedro Silva

Rui Bento e Petit foram destaques no ano do título

*Este texto é o lançamento de um especial de cinco partes: «Boavista-2001. O making of de um título»

Posso dizer que me lembro como se fosse hoje. De estar aos domingos à tarde na sala, com o rádio ao lado, de auscultadores na cabeça – para não incomodar a minha família – a ouvir a jornada de futebol. Parecia acontecer tudo ao mesmo tempo, não havia espaço para respirar entre golos e conhecíamos tão bem as vozes de cada um dos relatadores que bastava ouvir o grito para saber em que estádio tinha acontecido a festa do futebol.

Havia muita festa no Bessa. Não era do Boavista, mas confesso que cheguei a querer ser. Olhava para as caras nas revistas de apresentação da época e não havia jogador que não gostasse. João Pinto, sim. Ricky, sim. Marlon, sim. E tantos depois deles. Até aquele equipamento era especial, não por ser esquisito como disse Walter Zenga em setembro de 1991, mas porque era diferente de todos os outros.

Era o Boavistão de Manuel José. Com bons jogadores e bom futebol. E feitos especiais, tanto na Europa como na Taça de Portugal. Era fácil gostar do Boavista. Era fácil torcer por ele na Europa ou em qualquer outro jogo descomprometido.

Os anos passaram e o Boavista manteve a sua identidade. Parecia o rabo de um lagarto. Por cada vez que era cortado e saiam alguns dos melhores talentos, logo outros cresciam nos seus lugares. A constante renovação deste Boavista era impressionante e hoje, olhando para trás, é difícil não pensar em jogadores como Timofte, Artur, Jimmy, Nuno Gomes, Ayew e tantos outros e evitar ficar com um brilhozinho nos olhos.

O futebol do Boavista mudou. Manuel José saiu, houve uma alteração de modelo e, depois de uma transição conturbada com Zoran Filipovic, João Alves e Mário Reis, Jaime Pacheco assumiu o comando da equipa e levou-a aos momentos mais altos da sua história.

Já não era bonito. Tornou-se mais aguerrido, pragmático, às vezes até violento. Mas continuava a ser o Boavista. A equipa que não tinha problemas em bater à porta dos grandes e dizer-lhes que queria sentar-se à mesa.

Durante a próxima semana (a partir de 18 de novembro), o É Desporto vai publicar um especial de cinco partes sobre o making of do Boavista campeão. Começa com a chegada de Manuel José, no verão de 1991, e só termina em 2003, dois anos após o histórico título. Faz-se uma árvore genealógica do plantel, identifica-se tendências e percebe-se, época após época, quais foram as saídas, mudanças e entradas que ajudaram o Boavista a atingir o topo.

08 de Novembro, 2019

Joachim Streich. Ninguém marcou tanto como ele na RDA

Rui Pedro Silva

Joachim Streich em ação

«Não interessa o que é que as pessoas pensam do nosso futebol no Este, sempre garantiu muita diversão.» A frase post mortem de Joachim Streich evidencia, além de tudo o resto, o divertimento com que o futebolista passou pela Oberliga. Melhor marcador em quatro edições, acabou a carreira com o título de máximo goleador do campeonato e… da seleção. É um nome incontornável da RDA.

Nasceu a 13 de abril de 1951, em Wismar, e disputou a Oberliga entre 1969 e 1985. Primeiro, no Hansa Rostock, clube onde terminou a formação e jogou até 1975, depois no Magdeburgo. Com um faro para a baliza invulgar, tornou-se uma das figuras mais regulares da RDA. Não conquistou o campeonato uma única vez mas foi distinguido com o título de melhor marcador em quatro ocasiões. Quando terminou a carreira, em 1985, levou com eles dois recordes que nunca seriam batidos: máximo de golos na Oberliga (229 em 378 encontros) e pela seleção da RDA (55 em 102).

É difícil conseguir alcançar uma carreira como a de Joachim Streich. Não é dos jogadores mais famosos – ou reconhecidamente talentosos – da República Democrática da Alemanha, mas as estatísticas jogam a seu favor de forma esmagadora. Num campeonato dominado por equipas como Dínamo Dresden e Dínamo Berlim (campeões em 12 das 16 temporadas da sua carreira sénior), Streich foi somando golos atrás de golos.

No Hansa Rostock começou a dar nas vistas, e até se estreou nas competições europeias (sem marcar), mas nunca conseguiu sequer ajudar a equipa a atingir o pódio da Oberliga. Depois, em 1975, foi contratado pelo campeão em título Magdeburgo.

À primeira vista, a transferência tinha tudo para garantir uma nova fase mais positiva na sua carreira a nível coletivo. O Magdeburgo vencera a Taça das Taças em 1974 e tinha acabado de conquistar o terceiro título nacional das últimas quatro temporadas. Parecia ser um emparelhamento perfeito para juntar golos a títulos mas… só os primeiros apareceram.

Streich nunca conseguiu mais do que o segundo lugar do campeonato – 1977 e 1978. Na Taça da RDA, porém, brilhou com três troféus alcançados: em 1978, em 1979 e 1983. Depois de ficar em branco nas duas primeiras presenças em finais, foi decisivo na goleada imposta ao Karl Marx Stadt (4-0), festejando o primeiro e o terceiro golos.

Haver um golo de Joachim Streich era inevitável e em 1977, na segunda época ao serviço do Magdeburgo, o avançado terminou no primeiro lugar da lista de melhores marcadores pela primeira vez, ajudando o seu clube a alcançar o segundo posto na Oberliga. Curiosamente, e apesar de ter sido quatro vezes o melhor marcador do campeonato, Streich nunca o conseguiu fazer em anos consecutivos.

Avançado também brilhou ao serviço da seleção

Mais interessante ainda é reparar que o fez sempre com um ano – e um ano apenas – de intervalo. Fê-lo com 17 golos em 1977, com 23 em 1979, com 20 em 1981 e, finalmente, com 19 em 1983. Nesta última temporada, Streich igualou o recorde de Hans-Jürgen Kreische, antiga lenda do Dínamo Dresden, com quatro distinções de melhor marcador.

A veia goleadora de Streich não se limitava ao campeonato doméstico. Ao serviço do Magdeburgo marcou 17 golos nas competições europeias, num total de 38 encontros, e pela RDA chegou aos 55 golos em 102 internacionalizações, garantindo que seria para sempre recordado como o melhor marcador na história da seleção.

Quando o Muro de Berlim caiu, Streich já estava a meio da sua carreira de treinador, iniciada em 1985 no próprio Magdeburgo, de onde tinha saído como futebolista. Também aqui o campeonato teimou em fugir, não conseguindo fazer melhor do que o terceiro lugar em 1990.

07 de Novembro, 2019

O último fôlego de uma Oberliga em descalabro

Rui Pedro Silva

Hansa Rostock venceu a última Oberliga

A reunificação oficial das Alemanhas aconteceu a 3 de outubro de 1990. Por essa altura, já a última edição da Oberliga tinha começado, muito diferente daquilo que tinha sido até então. Os melhores jogadores tinham saído para as equipas da Bundesliga, as assistências desceram a pique e os casos de violência multiplicaram-se. O último adeus do futebol da RDA foi tudo menos positivo.

Andreas Thom foi o primeiro futebolista da RDA a sair para a Bundesliga, trocando o Dínamo Berlim pelo Bayer Leverkusen em dezembro de 1989. Thomas Doll e Frank Rohde foram juntos do clube da capital para o Hamburgo. Ulf Kirsten e Matthias Sammer trocaram o Dínamo Dresden por Bayer Leverkusen e Estugarda, respetivamente.

O êxodo em massa de jogadores da RDA para a RFA não se limitou aos melhores jogadores. Como tubarões em água cheia de sangue, os clubes da Bundesliga tinham os alvos definidos e nem as academias de formação das equipas de leste, de comprovada qualidade, escaparam. Assim, de uma temporada para a outra, o declínio de qualidade da Oberliga foi catastrófico.

Os dois Dínamos mais famosos sofreram as consequências na pele mas o problema foi transversal. Enquanto o mundo lá fora parecia mudar para melhor, o futebol dentro de campo tinha cada vez menos atrativos. Os primeiros jogadores estrangeiros – o guarda-redes húngaro Peter Disztl e o defesa norte-americano Paul Caligiuri – não foram suficientes para estancar a hemorragia de qualidade e as médias de espetadores ressentiram-se. Mais não seja porque o preço dos bilhetes em alguns estádios mais do que quintuplicou.

A Oberliga tornou-se um recinto para o hooliganismo e os confrontos. Os casos não eram inéditos – em épocas anteriores a RDA já se tinha deparado com o aumento de casos de violência envolvendo adeptos de futebol -, mas alguns tiveram proporções especiais, como o abandono de um encontro entre o Sachsen Leipzig e o Carl Zeiss Jena após confrontos nas bancadas.

As 14 equipas presentes na última edição do campeonato da RDA lutavam pela sobrevivência. A reestruturação dos quadros competitivos já estava definida para a futura fusão com o lado ocidental e não era muito amigável: os dois primeiros integrariam a Bundesliga em 1991/1992, os seis seguintes iam para a segunda divisão nacional e os últimos seis iam diretos para o futebol amador.

Os dados estatísticos confirmam as naturais consequências deste desastre anunciado: a média de golos (2,25) foi a terceira mais baixa na história da Oberliga e no caráter disciplinar houve uma absurdidade – para a época – de 29 cartões vermelhos e 544 amarelos durante as 26 jornadas.

O Hansa Rostock, orientado por um estrangeiro (Uwe Reinders, da Alemanha Ocidental), surpreendeu a concorrência e conquistou o seu primeiro título. Com uma lotação média pouco superior a 10 mil espetadores – recorde-se que nos primórdios do futebol na RDA chegou a haver jogos com assistências superiores a 100 mil pessoas -, o interesse na festa do título foi praticamente nulo.

Sem avisar ninguém, os jogadores passearam pelas ruas da cidade dentro de uma moto e oito carros enquanto eram celebrados por… absolutamente ninguém, exceto um polícia à beira de um ataque de nervos com a marcha-lenta.

O último fôlego da Oberliga foi o reflexo perfeito do estado da RDA: tinha-se tornado insustentável e estava destinada a acabar.

06 de Novembro, 2019

A «crise suína» que fez história pela negativa na Oberliga

Rui Pedro Silva

Jimmy Hartwig foi estrela dentro de campo. Fora dele... nem por isso

Não era fácil vir de fora e fazer uma integração tranquila nos meandros do futebol da República Democrática da Alemanha. Em 1990, a velha glória da RFA, Jimmy Hartwig, assumiu o comando do Sachsen Leipzig e não aguentou mais do que alguns meses. Pelo meio, um insulto ao árbitro Siegfried Kirschen deu azo ao único jogo abandonado na história da Oberliga.

Os clubes da RDA não tinham argumentos para estancar a hemorragia de qualidade nos seus plantéis mas cedo perceberam que podia haver outra forma de melhorar os resultados, alterando a metodologia e o conhecimento através da contratação de treinadores estrangeiros. O Hansa Rostock abriu as festividades com a contratação de Uwe Reinders, enquanto o Sachsen Leipzig decidiu seguir o mesmo caminho com Jimmy Hartwig.

Este segundo era um homem com um nome sonante na Europa do futebol. Enquanto futebolista, tinha dado nas vistas durante as seis épocas que representou o Hamburgo (1978 a 1984), conquistando uma Taça dos Campeões Europeus e três campeonatos alemães, para além de mais três finais europeias.

A lógica dos dirigentes do Sachsen Leipzig era percetível. A experiência nos meandros do futebol poderia fazer a diferença num campeonato que estivera fechado ao mundo exterior durante demasiadas décadas. É certo que Hartwig não tinha grande currículo como treinador – apenas uma curta passagem pelo Augsburgo -, mas a aposta valia a pena.

Spoiler alert: não valeu. Contratado em julho de 1990, Hartwig não foi além da sexta jornada. Com três vitórias, um empate e uma derrota nos cinco primeiros jogos, nem se pode dizer que o começo tenha sido mau. Olhando para a tabela, o clube de Leipzig estava na segunda posição a apenas um ponto do Hansa Rostock, curiosamente a outra equipa treinada por um alemão ocidental.

Mas a aventura não se contabiliza apenas com os resultados alcançados dentro de campo. Hartwig nunca conseguiu compreender verdadeiramente as vicissitudes da RDA e da Oberliga. Nem tinha paciência para tal. Por isso, a receção ao Carl Zeiss Jena a 29 de setembro, no jogo a contar para a sexta jornada, foi a gota de água.

O Sachsen Leipzig estava a perder 0-1, já nos últimos minutos da segunda parte, quando Hartwiz chamou «pequeno porco» ao árbitro Siegfried Kirschen. Os ânimos ficaram exaltados nas bancadas – apesar de haver pouco mais de cinco mil pessoas – e a decisão do juiz da partida foi dar o jogo por encerrado, abrindo assim espaço para o primeiro e único jogo na história da Oberliga a não chegar ao fim.

Até lá, o futebol da RDA tinha resistido a invasões de campo, insultos, arbitragens comprovadamente inclinadas e ataques aos autocarros das equipas adversárias mas, no final de 1990, com a unificação das Alemanhas já votada no parlamento, a estrutura estava a cair de podre.

Na jornada seguinte, em outubro (mês da unificação oficial), Jimmy Hartwig já não se sentou no banco do Sachsen Leipzig. A federação banira-o do banco de suplentes e a direção do clube decidiu terminar o contrato com a velha glória do futebol alemão. Foi a última experiência que teve como treinador.

05 de Novembro, 2019

Uwe Reinders. O estrangeiro decisivo no Hansa Rostock

Rui Pedro Silva

Uwe Reinders desempenhou um papel essencial no Hansa Rostock

Chegou no verão de 1990 para orientar o Hansa Rostock naquela que seria a última temporada da Oberliga enquanto escalão máximo da República Democrática da Alemanha. O conhecimento que trouxe do Ocidente e o caos em que estavam as principais potências do campeonato contribuíram de forma decisiva para um título inédito.

Robert Pischke era um homem com uma visão no verão de 1990. A estrutura da Oberliga estava a cair aos bocados e as equipas da República Federal da Alemanha estavam a conseguir recrutar os melhores talentos, como se tivessem roupas de marca com descontos na feira, e clubes como Dínamo Dresden e Dínamo Berlim estavam a ficar sem soluções.

O diretor do Hansa Rostock, equipa que nunca tinha ido além do segundo lugar, percebeu que tinha pela frente uma oportunidade perfeita. O facto de não ter um plantel tão talentoso como os adversários serviu como uma vantagem, ajudando a equipa a permanecer praticamente intacta no arranque para a temporada 1990/1991. O que poderia fazer a diferença? Um treinador. Um homem que conseguisse garantir que o todo pudesse ser incomparavelmente maior do que a soma das partes.

Uwe Reinders foi a escolha de Pischke. Contratado em junho de 1990, o homem nascido na República Federal da Alemanha tinha um currículo, pelo menos enquanto jogador, imaculado. Fizera parte da seleção que disputou a final do Mundial-1982, perdida para a Itália, e tivera já uma experiência num campeonato estrangeiro, jogando duas temporadas em França. Primeiro no Bordéus, treinado por Aimé Jacquet e jogando ao lado de estrelas como Alain Giresse e Jean Tigana, e depois no Rennes.

A carreira como treinador, contudo, era mais discreta e resumia-se ao Eintracht Braunschweig. Quando chegou a Rostock tinha 35 anos e uma vontade inesgotável de fazer história. E não apenas por ser o primeiro estrangeiro a ser contratado para orientar uma equipa na República Democrática da Alemanha.

Reinders podia ter muita coisa contra ele – ser visto como um outsider, desconhecer os meandros da Oberliga e estar a treinar uma equipa sem grandes pergaminhos – mas soube explorar na perfeição os recursos que tinha.

Fez do objetivo disputar jogo a jogo. De repente, sem que ninguém o esperasse, chegou à 12.º jornada sem derrotas. Consentindo apenas quatro empates, estava isolado no primeiro lugar do campeonato com 20 pontos. O Dínamo Dresden e HFC Chemie dividiam o segundo lugar, mas já a cinco pontos.

Os adversários adaptaram-se ao Hansa Rostock com o desenrolar do campeonato mas não foram capazes de evitar o título, que foi garantido na 23.ª de 26 jornadas, depois de uma vitória em casa sobre o maior rival: o Dínamo Dresden.

A época foi perfeita e nem a média de espetadores tímida (pouco superior a dez mil pessoas) serviu para tirar brilho ao feito. Além do campeonato, o Hansa Rostock conquistou também a Taça da RDA – a última edição da prova -, ao derrotar o Eisenhüttenstadt por 1-0. A presença nos dois primeiros lugares, em vésperas de reestruturação dos campeonatos profissionais da Alemanha unificada, garantiu também a presença na Bundesliga de 1991/1992.

Uwe Reinders foi uma aposta ganha de Robert Pischke. Chegou no único momento em que podia e fez a diferença fora de campo. Foi o derradeiro sinal que a superioridade proclamada da RDA era um mito. Na temporada seguinte, contudo, perante a concorrência dos melhores clubes da Bundesliga, o Hansa Rostock não escapou à despromoção, consumada já depois de o treinador ser despedido em março.

04 de Novembro, 2019

Matthias Sammer. O símbolo do passado e do futuro

Rui Pedro Silva

Sammer bisou contra a Bélgica na despedida da RDA

É visto como o melhor jogador de sempre a nascer na República Democrática da Alemanha. Campeão europeu de seleções em 1996, ano em que foi coroado com a Bola de Ouro, fez parte da equipa do Borussia Dortmund que conquistou a Liga dos Campeões em 1997. Antes, escreveu o seu nome na história dos seus países: marcou os últimos golos da RDA e tornou-se o primeiro jogador de leste a atuar pela Alemanha unificada.

O nome Matthias Sammer dispensa apresentações mesmo para quem só se lembra da segunda metade da sua carreira. Era um dos pilares fundamentais da Alemanha campeã europeia em 1996 e figura de proa no Borussia Dortmund. O cabelo louro aliado ao amarelo esverdeado berrante da camisola da equipa alemã ajudava-o a tornar-se o centro das atenções mas foi com inteira justiça que superou a concorrência de Ronaldo, por apenas um ponto, para conquistar a Bola de Ouro.

A história de Sammer é, ainda assim, muito mais do que isso. É também a história de um jogador com um apelido com tradição na República Democrática da Alemanha. O pai, Klaus, foi um nome incontornável: não só como jogador mas também como treinador. Matthias seguiu o seu destino e ganhou, sem grande surpresa, o rótulo de uma das maiores promessas do futebol alemão de leste.

O talento não lhe valia de muito. É celebre a história do dia em que os jogadores do Dínamo Dresden receberam chuteiras como oferta e todas serviam exceto as de Sammer. O número era igual para todos e o individualismo, num país como a RDA, não era valorizado.

Ainda assim, dentro de campo, Sammer correspondeu sempre. Ganhou a titularidade na equipa treinada pelo pai quando ainda era adolescente e ajudou o Dínamo Dresden a recuperar o título da Oberliga, perdido para o Dínamo Berlim durante dez temporadas consecutivas.

Na seleção principal da RDA, já depois de se ter sagrado campeão europeu de sub-18 em 1986 e vice-campeão mundial de juniores em 1987, manteve a toada de figura promissora. Estreou-se com 19 anos e fez o último jogo poucos dias depois de celebrar o 23.º aniversário, num total de 23 jogos.

Na despedida, que foi na verdade o último jogo da República Democrática da Alemanha enquanto seleção, fez questão de deixar, uma vez mais, uma imagem inesquecível. A história do jogo contra a Bélgica, disputado em Bruxelas a 12 de setembro, é atribulada.

O sorteio da UEFA, realizado em fevereiro de 1990, tinha ditado que as duas Alemanhas se iriam defrontar na fase de qualificação para o Euro-1992, juntamente com País de Gales, Bélgica e Luxemburgo. Depois, em agosto, o parlamento da RDA votou a reunificação com a RFA para outubro e deixou de fazer sentido haver duas seleções.

O jogo com a Bélgica, originalmente marcado como oficial, tornou-se uma celebração de despedida. Não contou para nada, a não ser para entrar para a estatística com 293.º e último jogo da seleção da RDA. Matthias Sammer foi o capitão e marcou os dois golos no triunfo por 2-0.

O mundo do futebol continuou sem abrandar e Matthias Sammer, juntamente com dezenas de talentos da RDA, tornou-se elegível para representar a nova Alemanha. Poucos meses depois, a 19 de dezembro de 1990, a seleção jogou um particular com a Suíça em Estugarda, a nova casa futebolística do jogador. Foi a oportunidade perfeita.

Matthias Sammer foi convocado e tornou-se o primeiro jogador nascido na RDA a jogar pela Alemanha unificada, ao ser titular no encontro. Curiosamente, nessa mesma noite, Andreas Thom foi suplente utilizado e entrou para a história ao marcar o primeiro golo de um jogador de leste pela seleção.

03 de Novembro, 2019

RDA. O dia em que caiu o pano sobre a seleção

Rui Pedro Silva

Um onze que ficou para a história

Foi a crónica de uma morte anunciada. A unificação das Alemanhas tinha sido votada e estava agendada para outubro, por isso aquele jogo na Bélgica já não ia contar para nada. Serviu para sair de cena com o orgulho imaculado, uma geração que prometia e uma vitória. Foi o 293.º jogo na história da seleção da RDA. Foi o último.

O sorteio da UEFA, realizado em fevereiro de 1990, tinha ditado que República Federal da Alemanha e República Democrática da Alemanha se iriam defrontar na fase de qualificação para o Euro-1992, juntamente com País de Gales, Bélgica e Luxemburgo. O muro já tinha caído e a indefinição política mantinha em aberto qualquer cenário desportivo mas, em agosto do mesmo ano, deixou de haver probabilidades, apenas uma certeza.

O parlamento da RDA votou a reunificação com a RFA para 3 de outubro e deixou de fazer sentido haver duas seleções. O grupo de qualificação para o Euro-1992 ia ficar órfão de uma equipa e a primeira jornada, marcada para 12 de setembro, deixava de fazer sentido.

O Bélgica-RDA disputou-se na mesma. Deixou de ser um jogo oficial mas ganhou um peso simbólico ainda mais importante. Ia ser o 293.º e derradeiro encontro na história da República Democrática da Alemanha. Se a RDA vacilou quase sempre nos momentos decisivos de apuramento, naquela noite mostrou que estava determinada em dizer adeus com estilo.

A geração era uma das melhores de sempre, garantiam os críticos. Mas houve quem nem tenha aparecido para o fim de cena. O selecionador Eduard Geyer foi forçado a apresentar uma equipa sem talentos como Ulf Kirsten, Andreas Thom e Thomas Doll, tudo jogadores que tinham abandonado clubes da RDA e já jogavam na RFA.

Sobrou Matthias Sammer. Até à última, o já jogador do Estugarda representou com orgulho as três letrinhas da camisola (DDR, de Deutsche Democratische Republic) e envergou a braçadeira de capitão no derradeiro jogo. O futuro campeão europeu – e primeiro jogador de leste a ser titular na Alemanha unificada – fez ainda mais do que isso, marcando os dois golos com que a seleção da RDA derrotou a Bélgica de Preud’Homme, Enzo Scifo, Jan Ceulemans e companhia.

A RDA alinhou com Jens Schmidt (Jens Adler), Heiko Peschke, Jörg Schwanke, Andreas Wagenhaus, Detlet Schössler, Matthias Sammer, Jörg Stubner (Stefan Böger), Darius Wosz, Heiko Bonan, Heiko Scholz (Torsten Kracht) e Uwe Rösler. E garantiu a criação de alguns factos que têm tanto de históricos como de invulgares.

O jogo pode ter sido o adeus da RDA, mas para os guarda-redes Jens Schmidt e Jens Adler, e para o defesa Jörg Schwanke, foi o primeiro e único encontro pela seleção. No caso de Adler, a carreira internacional é ainda mais caricata: jogou apenas um minuto, o último do seu país.

Daqueles 14 jogadores, apenas três acabaram por ser internacionais pela Alemanha: Matthias Sammer, Dariusz Wosz e Heiko Scholz.

02 de Novembro, 2019

O primeiro e único jogo da seleção feminina da RDA

Rui Pedro Silva

Histórica seleção feminina da RDA

«Vai ser tão bom, não foi?» é uma frase que encaixa que nem uma luva na história da seleção feminina de futebol da República Democrática da Alemanha. Criada já depois da queda do Muro de Berlim, só teve oportunidade para fazer um jogo internacional, perdido para a Checoslováquia (0-3).

O desporto feminino sempre foi uma das maiores prioridades da República Democrática da Alemanha. Mas as atenções estavam quase sempre viradas para os desportos olímpicos, onde Heike Drechsler era um autêntico diamante. No futebol, porém, quando a Europa começou a acordar para a variante feminina, a RDA acompanhou a tendência e criou uma equipa.

Houve um pequeno senão: o Muro de Berlim já tinha caído e o futuro do país era uma grande incógnita. A 9 de maio de 1990, quando a RDA defrontou a Checoslováquia em Potsdam, não havia forma de saber o que se passaria nos meses seguintes… apesar de não ser totalmente imprevisível. O parlamento votou a unificação das Alemanhas em agosto e a partir de 3 de outubro passou a haver apenas um país.

Aquele jogo de Potsdam, que tanta ansiedade gerou nas jogadoras convocadas, foi o primeiro e único internacional da seleção da RDA. O público, que já nem nos jogos da Oberliga comparecia, não correspondeu e apareceram apenas 800 pessoas para assistir àquele duelo arbitrado por… Klaus Scheurell, um dos assistentes que tinha sido suspenso por um ano na sequência dos favorecimentos ao Dínamo Berlim na final da Taça da RDA em 1985.

Bernd Schröder (direita) foi o selecionador

Bernd Schröder foi o homem responsável por orientar aquela equipa. «Não sabemos onde estamos internacionalmente, por isso temos de nos apoiar nas nossas capacidades e jogar com garra», comentou, antes de um encontro em que o domínio checoslovaco foi incontrariável.

Ivana Bulikova marcou de penálti na primeira parte e, na segunda, Jana Paolettikova (65’) e Olga Hutterova (71’) fixaram o resultado final. «É uma sensação louca. Este jogo não será esquecido», disse Doreen Meier, uma das jogadoras utilizadas.

Menos satisfeito, Schröder temia o futuro: «O desempenho foi uma grande desilusão, tem um sabor amargo. Espero que esta derrota nos traga mais coisa boas do que más».

A derrota não trouxe coisa alguma. Apenas o fim de um país e, como tal, o desaparecimento precipitado de uma seleção que não chegou a provar nada. Para a história ficam o nome das 14 internacionais pela RDA: Sybille Brüdgam, Katrin Hecker, Heike Hoffmann, Dana Krumbiegel, Sybille Lange, Doreen Meier, Katrin Prühs, Anett Viertel, Petra Weschenfelder, Katrin Baaske, Heike Ulmer, Carmen Weiss, Sabine Berger e Heidi Vater.

Nenhuma delas teve a oportunidade de jogar pela Alemanha depois da unificação. Mas das seis jogadoras convocadas que não foram utilizadas, uma atingiu mesmo esse sonho: Birte Weiss fez... dois jogos.

01 de Novembro, 2019

O Dínamo Dresden como denominador comum

Rui Pedro Silva

Matthias Sammer era a figura do Dínamo Dresden

Ganharam o último título antes da queda do Muro de Berlim e o primeiro depois da noite histórica. A carga simbólica na penúltima Oberliga da história da RDA foi tão grande que a subida ao primeiro lugar na época 1989/1990 se deu precisamente na véspera da queda.

O Dínamo Dresden está num limbo histórico quando se fala do passado da Oberliga. Que equipa venceu mais campeonatos na RDA? O Dínamo Berlim, com dez. Qual foi a primeira equipa a vencer? O SG Planitz, e 1958. E a última? O Hansa Rostock, em 1991. Qual foi a única equipa a vencer uma competição europeia de clubes? O Magdeburgo, em 1974. E que outras equipas conseguiram atingir uma final? O Carl Zeiss Jena, em 1981, e o Lokomotive Leipzig, em 1987.

Como podem confirmar, a equipa de Dresden não está propriamente salvaguardada em perguntas de cultura desportiva sobre o futebol na República Democrática da Alemanha. Contudo, é legítimo – e talvez até recomendável – dizer que foi a melhor equipa.

Vamos começar pelas estatísticas. Não, não foi a equipa com mais títulos mas terminou com oito, a apenas dois do Dínamo Berlim. E ninguém se aproxima sequer do número acumulado de presenças no pódio: oito vezes primeiro, oito vezes segundo e seis vezes terceiro num total de 22 ocasiões. A segunda melhor? O Carl Zeiss Jena, com 17.

A ausência de finais europeias é um acaso infeliz também. Entre 1968 e 1991, o clube de Dresden participou em competições da UEFA em 20 temporadas diferentes – nenhuma equipa da RDA se aproxima sequer. Durante estas aventuras, alcançou as meias-finais uma vez (Taça UEFA em 1989, caindo frente ao Estugarda) e os quartos de final em sete ocasiões.

Há outro fator que também é preciso ter em conta: o caráter da hegemonia do Dínamo Berlim, que conquistou dez títulos consecutivos entre 1979 e 1988. Quando a equipa da capital começou a ganhar, alegadamente impulsionada pela Stasi de Erich Mielke, era o Dínamo Dresden que estava na dianteira do futebol da Alemanha Oriental, com três títulos consecutivos. Durante o decacampeonato do adversário, terminou na segunda posição seis vezes. Como teria sido se não houve uma simpatia generalizada das autoridades e das arbitragens com o Dínamo Berlim?

O certo é que foi o Dínamo Dresden a regressar ao topo do futebol da RDA quando a teia de poder do maior rival começou a cair. Em 1988/1989 promoveu a quebra da hegemonia e terminou com oito pontos de vantagem sobre os adversários. Depois, na temporada seguinte, o título tornou-se o menos importante, por culpa da queda do Muro quando a época estava ainda na primeira metade.

O Muro de Berlim caiu a 9 de novembro e a esmagadora maioria das equipas da Oberliga disputaram a décima jornada na véspera. O jogo grande foi disputado entre o Dínamo Dresden, segundo classificado no campeonato com 14 pontos, e o Magdeburgo, líder com 15.

Naquela quarta-feira de outono, às 18 da tarde, o Dínamo Dresden não vacilou a jogar em casa, perante mais de 30 mil espetadores, e saltou para a liderança graças a uma vitória por 3-1. O inevitável goleador Torsten Gütschow bisou e Matthias Sammer também marcou para a equipa de Eduard Geyer que era, simultaneamente, o selecionador nacional.

Pouco mais de 24 horas depois, fez-se história. E o Dínamo Dresden era rei e senhor do futebol da RDA. Era o campeão em título, estava no primeiro lugar e bem lançado para revalidar o troféu. 

A reta final do campeonato foi espetacular e à entrada para a última jornada o Dínamo Dresden, o Magdeburgo e o Chemnitzer (novo nome do Karl Marx Stadt) estavam todos empatados com 34 pontos... e havia um duelo entre os dois últimos. A luta pelo título ia ser até ao limite e quando Spranger marcou para o Chemnitzer no início da segunda parte, o cenário era perfeito, até porque o Dínamo Dresden estava a perder em casa com o FC Lok Leipzig.

Foi sol de pouca dura. Ulf Kirsten empatou aos 54 minutos, e o inevitável Gütschow (81') e Ratke (90') marcaram os golos que garantiram o título. À semelhança dos adversários, ia perder os seus maiores talentos, como Sammer e Kirsten, para clubes da RFA, mas terminaria com um feito especial: ser o último campeão antes da queda e o primeiro depois, em 1989/1990.