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É Desporto

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11 de Outubro, 2019

Penhorar o relógio para jogar contra o Ajax

Rui Pedro Silva

Ajax venceu 3-1 na RDA na primeira mão

Falta de organização, coordenação e… dinheiro fez com que o treinador do Wismut Karl Marx Stadt abdicasse do seu relógio para garantir que a equipa conseguia chegar a Amesterdão para defrontar o Ajax. Eliminatória teve pouca emoção mas os holandeses fizeram questão de recompensar o técnico Fritz Gödicke pela sua dedicação.

A Alemanha de Leste teve um representante pela primeira vez na Taça dos Campeões Europeus em 1957/1958. Num país em que os duelos com o bloco capitalista eram evitados sempre que possível – sobretudo a nível de seleções -, a competição rainha de clubes na Europa protagonizava um tira-teimas obrigatório.

A esfera política queria evitar humilhações e nem sequer apostava muito no futebol – contrariamente ao que acontecia nas principais modalidades olímpicas – mas, ano após ano, a RDA começou a aparecer entre a elite. A estreia foi, na análise mais simpática possível, rocambolesca.

Na fase preliminar, o Wismut Karl Marx Stadt foi sorteado com o Gwardia de Varsóvia. Depois da derrota na Polónia por 3-1, a equipa de Fritz Gödicke reagiu na segunda mão e forçou um jogo de desempate, marcado para duas semanas depois em Berlim. Aí, depois de ter sofrido um golo logo no terceiro minuto, forçou o empate ao cair do pano (90’) e garantiu o apuramento na moeda ao ar, já depois de o encontro ter sido interrompido aos 100 minutos por culpa de uma falha de energia.

Com ou sem esta sorte caprichosa, a equipa alemã seguiu em frente e marcou encontro com o Ajax. A equipa holandesa era claramente favorita – apesar de ainda não ser o peso pesado que viria a ser anos mais tarde – e demonstrou-o logo na primeira mão, ao vencer 3-1 em Karl Marx Stadt perante 30 mil espetadores.

O momento mais atribulado da participação do Wismut foi, ainda assim, a aventura que precedeu o encontro da segunda ronda, marcado para 27 de novembro. O campeão em título da RDA devia chegar à cidade holandesa depois de apanhar um autocarro e um comboio, mas falhou a ligação na RFA e ficou abandonado à sua sorte, perto da fronteira.

Fritz Gödicke entrou em cena e foi obrigado, uma vez mais, a liderar aquele grupo de jogadores. O treinador decidiu pôr o seu relógio numa loja de penhores para garantir que a comitiva tinha um sítio para dormir e dinheiro suficiente para viajar no dia do jogo.

O conforto na RDA não abundava mas, naquela noite, na vizinha RFA, a experiência dos jogadores não foi melhor: praticamente não conseguiram comer nada de substancial e foram obrigados a dormir três em cada cama.

No dia seguinte, já em Amesterdão, o jogo era praticamente o que menos interessava, mas a equipa jogou pelo orgulho e perdeu pela margem mínima (Ouderland marcou o único golo do encontro aos 79 minutos).

A epopeia foi notícia no bloco ocidental e os dirigentes do Ajax decidiram recompensar a iniciativa corajosa do treinador e dos seus pupilos, pagando o dinheiro da estadia e recuperando o relógio penhorado.

10 de Outubro, 2019

Empor Lauter. Quando um clube sai da cidade durante a madrugada

Rui Pedro Silva

Equipa do Empor Lauter

Era a equipa da cidade mais pequena da Oberliga e acabou como vítima natural das tendências obsessivas de reequilibrar o mapa do futebol na RDA. Clube até tinha começado bem a época mas viu a esmagadora maioria dos seus futebolistas partir durante a madrugada com destino a Rostock.

Foram os Baltimore Colts antes mesmo de haver Baltimore Colts. Quem conhece a história da NFL sabe do caso da equipa que foi mudada para Indianápolis durante a madrugada sem prestar esclarecimentos ou justificações aos milhares de adeptos.

Nos Estados Unidos passou-se em 1984. Na República Democrática da Alemanha aconteceu em 1954. Com o Empor Lauter, o clube de uma cidade com apenas oito mil pessoas e que tinha celebrado a subida ao escalão de elite poucos meses antes.

O futebol na Alemanha Oriental demorou a arrancar e, quando o fez, a organização foi alvo de sucessivas reestruturações com o objetivo de tornar o mapa do país mais homogéneo em termos representativos. No momento de tomar decisões, Lauter tornou-se uma vítima inevitável.

Era uma cidade demasiado pequena – a mais pequena da Oberliga – e não podia competir com a importância demográfica e económica de cidades do norte como Rostock. Quando o Empor Lauter venceu o Rotation Babelsberg por 1-0 a 24 de outubro de 1954, poucos desconfiavam o que se iria passar nos dias seguintes.

Apesar de recém-promovido, o clube estava a dar cartas na Oberliga e seguia na segunda posição com cinco vitórias e três derrotas em oito jornadas. Estava a ser a sensação da época futebolística. Mas os interesses do regime não se coadunavam com episódios românticos como este.

Quando o jogo seguinte, com o Motor Zwickau, foi cancelado, a 26 de outubro, cresceu a ideia de que algo estava para acontecer. Os adeptos desconfiaram e começaram a fazer rondas junto à estação ferroviária para garantir que não havia nenhuma fuga. Foram impotentes.

Dois dias depois, às três da madrugada, onze dos 15 jogadores do plantel seguiram rumo a Rostock de comboio. Para eles, jogar em Lauter não era um chamariz assim tão grande e viajaram seduzidos perante as promessas de melhores condições de vida, melhores casas, mais dinheiro e oportunidades de emprego mais diversificadas.

O capitão Walter Espig foi um dos quatro que ficou para trás. Sem equipa, mas com o orgulho intacto e a eterna admiração de uma população incapaz de esquecer os nomes dos traidores. Tanto foi assim que os familiares dos futebolistas que seguiram para Rostock começaram a ser mal tratados em Lauter. Eram ignorados na rua e não tinham qualquer hipótese de ser atendidos nos estabelecimentos comerciais.

Sem clube, Walter Espig acabou por, depois de uma longa batalha com os responsáveis do então Empor Rostock (hoje conhecido por Hansa Rostock), conseguir uma autorização para representar o clube vizinho do Motor Zwickau.

No mesmo período, o BSG Wismut Aue esteve perto de passar pelo mesmo, mas neste caso um grupo de mineiros entrou em ação e ameaçou uma greve indeterminada se ficassem sem equipa pela qual torcer. A união fez a força.

09 de Outubro, 2019

Fussball-Ostalgie. Será possível sentir falta do que nunca se teve?

Rui Pedro Silva

Futebol dividiu Alemanhas de forma acentuada

Sou de uma geração que nasceu nas entrelinhas: sou velho o suficiente para ainda me lembrar vagamente de competições com a União Soviética, a Jugoslávia, a Checoslováquia e a República Democrática da Alemanha, mas demasiado novo para ter vivido verdadeiramente nesse período.

Tudo não passa de um conjunto de memórias longínquas que depois foram alimentadas progressivamente por histórias, aumentando o mito. A primeira final europeia que me lembro, ainda com seis anos, é precisamente aquela que o Estrela Vermelha venceu. Sei que é difícil explicar a razão deste fascínio com o desporto numa era em que as cortinas geográficas davam outra magia aos jogos, mas acredito que qualquer pessoa da mesma geração entende na perfeição.

Na esfera futebolística, a República Democrática da Alemanha sempre foi o parente pobre da Europa Oriental. O governo nunca viu nesta modalidade a sua grande prioridade – o atletismo e os Jogos Olímpicos encaixavam melhor na afirmação de uma identidade – e a evolução durante os cerca de 40 anos da RDA foi sempre muito pobre. E ao mesmo tempo rica, na quantidade e qualidade de histórias.

Não foi apenas a presença no Mundial-1974 ou a Taça das Taças ganha pelo Magdeburgo no mesmo ano. O futebol da RDA teve momentos insólitos, fugas, pioneiros, espionagem, reviravoltas dramáticas e muito, muito mais.

Hoje, a um mês de se assinalarem os 30 anos da queda do Muro de Berlim, damos oficialmente o pontapé de saída para um novo especial do É Desporto. Nos próximos 30 dias, daremos destaque a 30 histórias diferentes sobre o futebol da RDA. Algumas são conhecidas, outras mais discretas, mas todas ajudam a perceber o ambiente que se viveu durante este período.

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