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É Desporto

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24 de Junho, 2019

Londres. Quando sete clubes da cidade jogaram uma final europeia

Rui Pedro Silva

London XI participou na final da Taça das Cidades com Feira em 1958

A Inglaterra dominou o futebol europeu na última época e a capital inglesa teve três equipas nas finais (Chelsea e Arsenal na Liga Europa, Tottenham na Liga dos Campeões), mas nunca voltará a acontecer o feito de 1958, quando Arsenal, Chelsea, Fulham, Tottenham, Brentford, Leyton Orient e West Ham tinham muito em jogo na final da Taça das Cidades com Feira.

 

As competições europeias são pródigas em potenciar velhos do Restelo que recordam com saudosismo formatos antigos. Afinal, quem não conhece pelo menos um defensor do regresso da Taça dos Vencedores das Taças? Ou que acredita que a Liga dos Campeões não devia ter tantas equipas do mesmo país? Ou mesmo que a Liga Europa devia regressar ao formato de eliminatórias desde o início?

 

A UEFA adaptou-se ao modernismo, apostou num modelo financeiro de enorme retorno e esqueceu a tradição. Mas, se recuarmos ainda mais, encontramos um formato irrecuperável. Em 1955, quando começou a primeira edição da Taça dos Campeões Europeus, arrancou também a Taça das Cidades com Feira, uma prova sem a chancela do organismo europeu.

 

Dificilmente uma prova consegue ser mais autoexplicativa do que esta: Taça das Cidades com Feira. Bom, na verdade Taça dos Vencedores das Taças e Taças dos Campeões Europeus também são nomes esclarecedores, mas não têm a mesma faceta curiosa de «Cidades com Feira».

 

As regras eram simples: as cidades participantes tinham de ter uma feira e não podiam ter mais do que uma equipa participante. Este pormenor fez com que surgissem diferentes perspetivas: em Milão e Birmingham, por exemplo, escolheu-se um clube de cada cidade como representante (Inter e Birmingham City); em Londres, e em muitas mais cidades, criou-se uma equipa improvisada com representantes de vários clubes.

London XI e Barcelona empataram em Stamford Bridge

Se em cidades como Copenhaga, Viena ou Zagrebe o desafio não era muito grande, em Londres obrigava a uma logística enorme. E maior se tornou depois de a edição se ter prolongado por três anos, levando a que alguns jogadores tenham começado por jogar por Londres representando uma equipa, passando depois para outra durante um período de transferências.

 

Nos três anos da edição inaugural, a equipa de Londres fez oito jogos e utilizou um total de 54 jogadores. Basileia e Frankfurt foram ultrapassadas na fase de grupos e nas meias-finais foi a vez de os suíços do Lausanne Sports serem derrotados. Com Jack Mears (Chelsea) a ocupar o cargo de selecionador – mais ainda do que treinador – os ingleses atingiram a final. Do outro lado estava o Barcelona, com figuras como Evaristo e Luis Suárez.

 

Durante a competição, Mears chamou jogadores de onze equipas diferentes mas, chegado à final a duas mãos com os catalães, Charlton, Crystal Palace, Millwall e Queens Park Rangers não tiveram qualquer representante. Ainda assim, houve sete outras equipas a fazer parte das escolhas.

 

Na primeira mão, em Stamford Bridge (2-2), havia quatro jogadores do Tottenham, dois do Arsenal, dois do Chelsea, dois do Fulham e um do Brentford. Praticamente dois meses depois, a 1 de maio de 1958, a equipa londrina foi goleada no Camp Nou por 6-0. Aí, já havia dois jogadores do West Ham e um do Leyton Orient a compor o ramalhete do onze inicial.

 

Feitas as contas, para a história ficou uma edição que durou três anos e viu uma equipa de Londres – com representantes de sete clubes diferentes – perder a final para o Barcelona. A experiência chegou para garantir a presença na final mas não deixou os responsáveis satisfeitos. Por isso, no início da segunda edição, que durou entre 1958 e 1960, o Chelsea surgiu como o representante de Londres. Desta vez, porém, os ingleses não passaram dos quartos-de-final, acabando derrotados pela equipa de Belgrado, que juntava, entre outros, jogadores do Partizan e do Estrela Vermelha.

 

A presença de equipas de cidades e não de clubes foi perdendo força com o passar dos anos e 1964/1965 foi a primeira edição em que todos os participantes eram clubes bem estabelecidos. O último representante citadino foi o Staevnet, composto por jogadores de clubes de Copenhaga, em 1964.

 

A Taça das Cidades com Feira prolongou-se até 1971, ano em que o Leeds United venceu a final contra a Juventus. Na época seguinte, a competição foi substituída pela Taça UEFA e começou a ser oficialmente tutelada pelo organismo europeu.

21 de Junho, 2019

Ted Stepien. Quando a incompetência força uma nova regra

Rui Pedro Silva

Ted Stepien

Foi dono dos Cleveland Cavaliers entre 1980 e 1983 e será para sempre associado a uma das equipas mais mal geridas na história do desporto profissional. A obsessão por ganhar – e fazê-lo rapidamente – fez com que oferecesse continuadamente escolhas do draft até hipotecar o futuro da equipa. A NBA interveio e criou uma regra para impedir a troca de escolhas de primeira ronda em anos consecutivos. Para Cleveland era demasiado tarde.

 

É difícil encontrar algo positivo durante a vigência de Ted Stepien ao comando dos Cleveland Cavaliers. Com passado de combatente na II Guerra Mundial, construiu fortuna e tornou-se proprietário principal da equipa a 12 de abril de 1980. Durante as três temporadas seguintes, conseguiu um cocktail explosivo de más decisões e declarações polémicas que afetaram para sempre a sua imagem.

 

Nenhuma equipa está imune a longos períodos negativos. Há quem o faça por estratégia – como os Philadelphia 76ers mais recentemente – e quem seja obrigado a isso, por mero azar ou incompetência. No caso de Ted Stepien e dos Cleveland Cavaliers no início da década de 80, o problema foi mesmo a total inépcia para o cargo.

 

Ted Stepien queria ganhar. E queria fazê-lo a todo o custo. Mas não percebia muito do assunto e as escolhas que fez para cargos com responsabilidade também não ajudaram. É certo que a equipa atravessava um momento muito negativo – era conhecida por Cleveland Cadavers – e os adeptos não compareciam no pavilhão, mas nada justificaria o carrossel de decisões negligentes que a direção tomou.

 

Incapaz de atribuir valor às escolhas na primeira ronda, foi usando opções futuras em trocas após trocas. Logo em 1980, a NBA percebeu o rumo que a gestão estava a seguir e decidiu revogar os direitos de trocas dos Cavaliers. Pouco tempo depois voltou atrás mas decidiu exercer o direito de aprovação de qualquer negócio feito pela equipa de Cleveland.

 

Correu mal. Muito mal. «Cometemos erros e assumo toda a responsabilidade», disse Stepien, numa altura em que as escolhas próprias da primeira ronda até 1986 já tinham mudado de mãos e o registo de vitórias era muito tímido (66 triunfos e 180 derrotas durante a sua era).

Proprietário não tinha visão de futuro

A estratégia de oferecer futuras escolhas de primeira ronda já vinha dos anos 70 mas com a nova gerência ganhou um tendência acrescida. Olhando para os drafts entre 1982 e 1986, percebe-se que Cleveland poderia ter tido a primeira escolha em 1982 (Lakers aproveitaram para recrutar James Worthy), a terceira em 1983, a quarta em 1984 (num draft com Hakeem Olajuwon, Michael Jordan, Charles Barkley e John Stockton), a oitava em 1985 (Dallas escolheu Detlef Schrempf) e a sétima em 1986.

 

A NBA, a imprensa e os adeptos não pouparam Ted Stepien. Despediu cinco treinadores em três temporadas, mostrou ter um raciocínio racista na formação de um plantel e na venda de bilhetes, despediu um dos funcionários mais acarinhados por adeptos (comentador de rádio) e ponderou a possibilidade de trocar o nome da equipa, mudá-la de cidade ou simplesmente dividir os jogos por várias cidades, como atualmente está a ser estudado pela equipa de basebol de Tampa Bay.

 

Em dezembro de 1982, uma peça do New York Times não poupava nas críticas. «Os Cavaliers mudaram de treinador seis vezes nos últimos três anos. Passaram de 37 vitórias há três anos para 28, para 15. Tornaram-se, talvez, o pior clube e a organização mais mal gerida do basquetebol profissional, e apenas porque parecem ter-se esforçado mesmo para bater no fundo.»

 

«Tenho sido muito criticado e, para ser sincero, magoa», lamentou Ted Stepien. «Não gosto de ouvir e ler coisas sobre mim que podem magoar a minha família. Ser dono de uma equipa de basquetebol não compensa se as minhas filhas forem gozadas na escola como têm sido», acrescentou.

 

Por isso, em 1983, decidiu pôr um ponto final na ligação aos Cavaliers e vendeu a equipa por 20 milhões de dólares, recuperando os prejuízos acumulados durante as três temporadas. Para garantir um recomeço digno aos novos proprietários, a liga decidiu atribuir escolhas bónus nas primeiras rondas dos draft entre 1983 e 1986 de forma a compensar as más decisões de Stepien.

 

Hoje, 36 anos depois, Cleveland ainda não esqueceu Stepien. E a regra mantém-se, para proteger equipas de gestões negligentes. Curiosamente, no draft desta madrugada, os Cavaliers voltaram a fazer história ao pagar uma verba recorde (cinco milhões de dólares) por uma escolha na primeira ronda (30.ª). Além disso, enviaram também quatro escolhas… da segunda ronda para os Detroit Pistons.

19 de Junho, 2019

O dia em que Vinokourov surpreendeu o pelotão em Paris

Rui Pedro Silva

Vinokourov fez a festa em Paris

A chegada aos Campos Elísios no último dia do Tour é dominada pelos sprinters mas já houve seis fugas a vingar no momento decisivo. Nos últimos 25 anos, Alexander Vinokourov foi o único a conseguir surpreender o pelotão e, ao mesmo tempo, a garantir a subida ao quinto lugar na classificação geral. Aconteceu a 23 de julho de 2005.

 

O Tour pode ser uma prova centenária mas a tradição de terminar as três semanas de corrida só começou em 1975, depois de a organização da prova ter recebido o aval do presidente francês, Giscard d’Estaing. Novidade na altura, não foi de estranhar que em três das primeiras cinco edições neste formato o vencedor tenha cruzado a meta em fuga.

 

Depois, a história mudou. Hoje, olhando para o palmarés de vencedores na mais famosa avenida francesa, percebe-se o coroar de inúmeros sprinters. Há aqueles que nunca conseguiram superar as três semanas ou, se o conseguiram, chegaram a Paris em modo zombie, e outros que veem numa vitória em Paris a possibilidade de alcançar o momento mais inesquecivel da carreira.

 

O desfile de nomes é impressionante. Mark Cavendish venceu quatro anos seguidos, Marcel Kittel e André Greipel bisaram e, continuando no século XXI, houve ainda triunfos de nomes como Jan Svorada, Robbie McEwen, Tom Boonen, Thor Hushovd e Alexander Kristoff. Figuras como Mario Cipollini e Erik Zabel (e este bem que tentou) estão fora deste lote, o que só atesta a dificuldade de conquistar algo que está na mente de todos.

Vinokourov também festejou o primeiro lugar na T-Mobile na prova

À medida que a avenida com vista para o Arco do Triunfo se tornou o olimpo dos sprinters, a possibilidade de sucesso de uma fuga diminuiu drasticamente. Depois daquele equilíbrio inicial, houve apenas dois casos a reportar: Jeff Pierce em 1987 e Eddy Seigneur em 1994.

 

Nos últimos 25 anos, porém, o espetro ficou cada vez mais reduzido. Muitos tentaram, só um não fracassou. Para conseguir fugir ao pelotão e garantir um triunfo histórico é preciso uma força de vontade – e uma saúde muscular – férrea e Alexander Vinokourov fez questão de demonstrar que as suas habilidades de rolador, com muita potência, seriam um enorme trunfo. Foi assim que conseguiu o título olímpico na prova de estrada em Londres-2012 e que, sete anos antes, levou a melhor sobre toda a concorrência em Paris.

 

A edição de 2005 ficou marcada pelo suposto sétimo título de Lance Armstrong. Ivan Basso e Jan Ulrich tinham o pódio confirmado e à primeira vista não se esperavam alterações nos primeiros dez classificados. Havia, contudo, margem para surpresas. À entrada para a derradeira etapa, o dinamarquês Michael Rasmussen era sétimo a seis segundos de Vinokourov que, por sua vez, estava a apenas dois segundos de Levi Leipheimer.

 

Naquela manhã, o ciclista cazaque da T-Mobile acordou com um desígnio: subir à quinta posição. E estava disposto a tudo para consegui-lo. Atacou no primeiro de dois sprints intermédios e conseguiu os dois segundos necessários para anular a diferença para Leipheimer. Ou quase. O tempo registado nos contra-relógios continuava a dar uma vantagem ínfima, na ordem dos milésimos de segundo, ao ciclista norte-americano da Gerolsteiner.

 

Era preciso mais. E Vinokourov sabia perfeitamente o quê. Como é habitual, os ataques durante as voltas ao circuito improvisado de Paris proliferaram mas nunca se pensou que teriam sucesso. Até que, nos últimos três quilómetros, o cazaque saiu do pelotão para responder à iniciativa de Laurent Brochard.

 

O francês perdeu as forças à entrada do último quilómetro e, nesta altura, foi Bradley McGee, que entretanto tinha alcançado a dupla, a saltar para a dianteira. Vinokourov reagiu, atacou nos últimos metros e beneficiou de um pelotão atónito com o que tinha acontecido, para cruzar a meta no primeiro lugar e garantir 20 segundos de bonificação decisivos para terminar no quinto posto da classificação geral.

 

«Foi uma vitória feita de coragem e garra. Dei tudo nos últimos quilómetros e só acreditei que era mesmo possível quando cruzei a meta. É inacreditável, magnífico. Não tenho palavras para isto», disse no final.

18 de Junho, 2019

Platini. A estrela do último título do Saint-Étienne

Rui Pedro Silva

Michel Platini foi uma das maiores estrelas do Saint-Étienne

Brilhou no Nancy durante cinco das sete temporadas em que esteve ao serviço do clube e foi recrutado por um Saint-Étienne à procura de quebrar um invulgar jejum de títulos. Um dos melhores jogadores franceses da década juntou-se ao melhor clube e, com figuras como Battiston, Rep e Zimako, foi decisivo na conquista do último campeonato francês da equipa… em 1981.


O Saint-Étienne é ainda hoje uma das duas equipas com mais campeonatos na história do futebol francês. O PSG anda a recuperar nos últimos anos mas ainda só tem oito, tal como o Monaco, enquanto o Lyon, apesar da hegemonia do início do novo milénio, não tem mais do que sete. Com dez, no topo da pirâmide, estão Marselha e Saint-Étienne. A diferença? Os verts não ganham desde 1981, ano em que Michel Platini era a jóia da coroa e a caminho de se tornar um dos melhores da história.


A década de 70 em França escrevia-se com tinta verde. Depois de ganhar o título pela primeira vez em 1957, o Saint-Étienne aqueceu os motores da década de 60, com mais quatro campeonatos, e assumiu definitivamente o estatuto de melhor clube francês durante os anos 70, vencendo em 1970, 1974, 1975 e 1976.


Por esta altura, um Michel Platini de 17 anos dava os primeiros passos no Nancy. O seu talento era inegável mas a equipa não tinha capacidade para muito mais. Entre 1972 e 1979, Platini esteve no céu e no inferno, alternando golos decisivos – muitos deles de livre – com lesões graves. Desceu ao segundo escalão, foi fundamental no regresso à Ligue 1 e assumiu um papel de destaque nas melhores campanhas do clube, tanto no quarto lugar em 1977 como na conquista da Taça de França em 1978.

Michel Platini igual a si mesmo

Com o fim da década a chegar, o Saint-Étienne viu no jogador de 24 anos o trunfo necessário para recuperar a hegemonia doméstica e para garantir a dimensão europeia que faltava. O cenário parecia cada vez mais invulgar: estava há três anos sem vencer o campeonato e na Europa parecia faltar sempre alguma coisa: foi eliminado pelo futuro campeão Bayern Munique nas meias-finais em 1975 e na final em 1976.


Michel Platini devia vestir a pele de salvador, recuperar o caminho glorioso em França e dar o impulso necessário para percorrer aqueles últimos metros rumo ao olimpo europeu. Na temporada de estreia, o clube não foi além do terceiro posto mas Platini brilhou ao mais alto nível: com colegas como Rep, Zimako e Rocheteau, tornou-se o melhor marcador da equipa no campeonato (16) e no conjunto das competições (26). Na UEFA, contudo, o carrasco voltou a falar alemão: nos quartos da Taça UEFA, o Saint-Étienne foi eliminado pelo Borussia Mönchengladbach. Platini marcou um golo mas o resultado acumulado (1-6) não deixou dúvidas.


A margem de erro para a temporada 1980/1981 era ainda menor… mas Platini esteve à altura. Com 25 anos, pegou na batuta e foi o génio em campo durante os 52 jogos que realizou na temporada, somando um total de 29 golos. Acompanhado de figuras como Castaneda, Battiston, Santini e Rep, o Saint-Étienne soube reequilibrar-se apesar de perder dois dos primeiros três jogos, e terminou a temporada com 57 pontos, mais dois do que o Nantes.


Numa equipa com sete jogadores a serem chamados para a seleção francesa durante a temporada (Jean Castaneda, Patrick Battiston, Christian Lopez, Gérard Janvion, Jean-François Larios e Jacques Zimako fizeram companhia a Platini), os resultados nas restantes competições acabaram por ter um sabor agridoce.


A campanha na Taça UEFA terminou nos quartos-de-final, com uma eliminação aos pés do futuro campeão Ipswich Town, de Bobby Robson, enquanto a final da Taça de França foi perdida para o Bastia no Parque dos Príncipes, em Paris.

Onze utilizado na final da Taça contra o Bastia

Michel Platini cumpriu o desígnio de fazer com que o Saint-Étienne regressasse aos títulos no campeonato francês mas não corresponde a todos os objetivos que o clube tinha para ele. A glória europeia, para o médio, só chegaria anos mais tarde, já ao serviço da Juventus, para onde se transferiu no verão de 1982. Aí, em anos consecutivos, venceu uma Taça das Taças (1984 contra o FC Porto) e uma Taça dos Campeões Europeus (contra o Liverpool).


A saída de Michel Platini marcou também o início do fim da era do Saint-Étienne. O segundo lugar em 1982, na última época do futebolista em França, foi o derradeiro sinal de relevância. Desde então, a equipa conquistou apenas três títulos: duas Ligue 2 (1999 e 2004) e uma Taça da Liga (2013).


Hoje, no dia em que Michel Platini foi detido por suspeitas de corrupção na atribuição do Mundial-2022 ao Qatar, o Saint-Étienne vive um dos seus melhores períodos desde então. Foi quarto classificado e tem aproveitado esta década para figurar sempre na primeira metade da tabela e garantir uma presença frequente nas competições europeias.

14 de Junho, 2019

Klinsmann-Sheringham. A dupla que encantou White Hart Lane

Rui Pedro Silva

Klinsmann e Sheringham festejaram 52 golos juntos

O Tottenham em 1994/95 tinha tudo para ser uma desilusão para os adeptos. A penalização de 12 pontos e a ausência forçada da Taça de Inglaterra assombraram a pré-época mas não foram suficientes para evitar a contratação de Jürgen Klinsmann. Custou apenas dois milhões de libras e tornou-se um herói instantâneo no clube... com um braço-direito de luxo.

 

Imagine-se um adepto do Tottenham no verão de 1994. Sheringham tinha sofrido uma lesão grave na segunda metade da temporada e, dentro de campo, o 15.º lugar tinha sido a pior classificação desde o final da década de 70. O Mundial dos Estados Unidos podia servir como distração mas os ingleses tinham falhado o apuramento para a fase final.

 

Restava acreditar que a época seguinte servisse de catapulta para recuperar a relevância doméstica. Mas mesmo isso era difícil. O clube tinha sido punido por irregularidades financeiras cometidas durante a década de 80 e fora multado em mais de 600 mil libras, além de uma penalização de 12 pontos no campeonato e a suspensão numa edição da Taça de Inglaterra.

 

O presidente do Tottenham, Alan Sugar, não se conformou com a visão pessimista do futuro e garantiu um horizonte mais limpo. Na guerra da secretaria, não descansou enquanto não eliminou a penalização pontual e a suspensão da FA Cup, mesmo que a multa pecuniária tivesse subido para o milhão e meio de libras. Depois, para garantir que nada faltava ao treinador Osvaldo Ardiles, uma lenda-viva dos Spurs, contratou três futebolistas internacionais que tinham estado no Mundial: os romenos Gheorghe Popescu e Ilie Dumitrescu chegaram do PSV e do Steaua Bucareste e, mais importante, o alemão Jürgen Klinsmann foi contratado ao Monaco.

 

Com a terceira contratação, a troco de dois milhões de libras, Sugar garantiu um estado de euforia total entre adeptos. Osvaldo Ardiles tinha o caminho livre para criar uma equipa de estilo declaradamente ofensivo, com Nick Barmby, Darren Anderson e Ilie Dumitrescu no apoio a Klinsmann e Teddy Sheringham, e a expectativa era tão grande que houve uma afluência desmedida aos jogos da pré-temporada.

 

Dupla goleadora irrepetível

Imagem de marca na época do Tottenham

Os pergaminhos de uma dupla atacante composta por Klinsmann e Sheringham dispensavam apresentações. Se um fora campeão mundial em 1990 e brilhara em todos os clubes que o haviam contratado (Estugarda, Inter e Monaco), o outro sucedera com êxito a Gary Lineker e marcara 43 golos em duas temporadas em White Hart Lane.

 

Poderia ter havido suspeição sobre uma eventual compatibilidade entre ambos mas os primeiros jogos oficiais da temporada demonstraram que o Tottenham tinha, de facto, uma dupla de sonho. Na estreia, em Sheffield com o Wednesday, cada um deles marcou um golo no triunfo por 4-3. Depois, num White Hart Lane a sofrer obras de remodelação e expansão – o que só tornava mais difícil e raro cada bilhete comprado – o germânico bisou no triunfo sobre o Everton por 2-1.

 

Sheringham pode ter demorado a marcar golos de forma regular mas Klinsmann encontrou nos relvados ingleses um habitat perfeito. Criticado por ser simulador, fez do mergulho o seu festejo de eleição. E, verdade seja dita, não parou de festejar nos primeiros meses. Até ao final de setembro, o avançado alemão tinha três golos num jogo da Taça da Liga inglesa e sete em golos em sete jornadas da Premier League. O Tottenham até podia estar numa série negra, fruto de três derrotas consecutivas para o campeonato, mas Klinsmann não perdera o faro de golo.

 

Osvaldo Ardiles perdeu definitivamente o controlo da situação em outubro. A sua visão demasiado ofensiva estava a ser destruída pelos adversários e os maus resultados aumentavam a pressão. Aguentou-se, enquanto pôde, devido ao seu estatuto no clube, mas abandonou o cargo no final do mês, após uma vitória sobre o West Ham (3-1) na 12.ª jornada. O clube tinha acabado de ser humilhado na Taça da Liga (3-0 no terreno do Notts County) e na Premier League estava na segunda metade da tabela (11.º). O seu sucessor, Gerry Francis, não teria uma tarefa fácil.

 

Novembro não trouxe uma única vitória ao Tottenham. Com dois empates e duas derrotas, a dupla atacante fez apenas dois golos e a equipa desceu ao 14.º lugar. Por esta altura, com 19 pontos em 16 jornadas, pensava-se cada vez mais em como a equipa estaria com o futuro na elite em risco se Sugar não tivesse conseguido evitar os 12 pontos de penalização.

 

Recuperação consolidada

Klinsmann foi eleito o jogador do ano

O Tottenham chegou a dezembro com 19 golos marcados pela dupla Klinsmann (13)-Sheringham (6), mas com uma visão de futuro pouco confiante. No entanto, de repente, os pontos começaram a chegar cada vez com maior regularidade.

 

O modelo ofensivo de Ardiles era coisa do passado mas o Tottenham venceu seis dos oito jogos seguintes para a Premier League e iniciou um percurso na Taça de Inglaterra que só viria a ser parado na meia-final com o Everton.

 

Jürgen Klinsmann nunca perdeu a sua identidade goleadora e não teve problemas em manter Sheringham com o seu apoio-satélite: decisivo na manobra da seguinte, mas secundário no momento de marcar golos. Apesar de somar apenas três pontos nas últimas cinco jornadas, o Tottenham terminou a época no sétimo lugar – a melhor classificação da década -, a dez pontos do Newcastle e a onze do Leeds.

 

Teddy Sheringham, pela primeira e única vez durante a primeira passagem pelo Tottenhem (cinco anos), não foi o melhor marcador da equipa. Com 23 golos na temporada, o avançado britânico foi superado por Klinsmann, autor de 29.

 

Os 52 golos marcados pela dupla foram uma marca inesquecível entre adeptos e ainda hoje são recordados como um dos melhores momentos do clube durante a década de 90. A ausência de títulos, porém, e a não qualificação para as competições europeias fizeram com que a dupla se desintegrasse na época seguinte.

 

Jürgen Klinsmann seguiu para o Bayern Munique e foi substituído por Chris Armstrong, que chegou do Crystal Palace e correspondeu na perfeição com 22 golos (Sheringham fez 24). A equipa terminou no oitavo lugar, com os mesmos pontos do sétimo e do sexto, mas não beneficiou da mesma aura que existia com a referência alemã no ataque.

 

Aquela dupla foi especial. E ainda hoje é recordada como uma das melhores da Premier League. Pode nem ter sido a mais concretizadora naquela temporada (os 39 golos só no campeonato ficaram aquém dos 49 marcados por Alan Shearer e Chris Sutton pelo Blackburn Rovers), mas a reputação dos dois jogadores ajudou a construir um estatuto intocável.

12 de Junho, 2019

Uma final é sempre mais do que noventa minutos

Rui Pedro Silva

Gonçalo Guedes marcou o único golo

Final. Que está no fim, que está na última parte. Que põe termo. Relativo ao fim. Que indica a finalidade. Última parte. Desfecho. Última e decisiva competição de um campeonato ou concurso.

 

A final da Liga das Nações, entre Portugal e Holanda, foi muito mais do que um jogo disputado durante noventa minutos. Acabasse como acabasse, seria sempre um conjunto de memórias que se consolidariam com uma imagem inesquecível, fosse o golo de Gonçalo Guedes, o levantar do troféu por Ronaldo ou outro qualquer evento que não aconteceu mas poderia ter acontecido.

 

Mas a final foi mais do que isso. Talvez pela ausência da carga dramática habitual das competições com maior tradição, portugueses, holandeses (e até ingleses) fizeram daquele domingo de junho um dia de festa. Com nervosismo quanto baste e uma dimensão de descontração que invadiu o Porto e deixou indícios de festa um pouco por todo o lado.

 

Ao contrário de quinta-feira, o tempo ajudou. E os holandeses, vestidos a rigor, invadiram um parque no Bonfim e fizeram a festa. Faltavam mais de cinco horas para o apito inicial mas havia laranja um pouco por todo o lado. À medida que nos aproximámos, começámos a ouvir a música e percebemos que o quartel-general era ali.

Holandeses estiveram horas a beber e dançar

Havia muita cerveja com saída e uma barraquinha de cachorros-quentes americanos às moscas. E, claro, um DJ que ia selecionando a música com o rigor de um centauro: passava de algo semelhante a trance psicadélico para aquilo que parecia ser uma mistura de Toy com Tony Carreira. Em holandês, claro está.

 

A Avenida dos Aliados, não muito longe dali, era outro epicentro do adepto. Com uma segurança relativamente apertada – atenta aos metais, tampas de garrafas e conteúdos de malas -, permitia, com dois ecrãs gigantes, assistir ao Inglaterra-Suíça. A ideia original passava pela separação de adeptos mas as jogadas de perigo e sobretudo os penáltis ajudaram a perceber que estava tudo muito dividido. O burburinho aumentou quando Pickford encarnou Ricardo e não parou de crescer até ao jogo de Portugal.

 

Por esta altura, porém, já a migração para o Dragão tinha começado. As portas abriram três horas antes mas só a partir das 18h00 começou a haver mais movimento, sobretudo porque foi também depois dessa hora que chegou o autocarro da seleção. Já dentro do estádio, um grupo de adeptos assistiu de punho em riste, com o telemóvel na mão, mas, apesar de haver duas ou três centenas de pessoas à espera, acabou por ser um desfecho um bocado morno, sobretudo para quem ainda recorda o que se passou em 2004.

Ambiente no Dragão duas horas antes

A expetativa era, ainda assim, grande. Um rapaz sem idade para se lembrar sequer do Euro-2012 estava impaciente e perguntou ao pai quando é que o jogo começava. «Ainda falta. O autocarro acabou de chegar, ainda têm de se equipar, aquecer e só depois é que vai ser», disse-lhe, num tom condescendente sem ponta de malícia.

 

Com o encher das bancadas, perceberam-se várias tendências. Havia mais portugueses do que holandeses, naturalmente, mas as manifestações de patriotismo não se ficavam por aí. Nós, por exemplo, estávamos ao lado de alemães. Também havia húngaros, brasileiros, asiáticos e, um pouco por todo o lado, ingleses.

 

Este fator extra no estádio fez a festa como ninguém. Por estarem longe, e não serem assim tantos, os holandeses ouviam-se pouco. Os portugueses, à boa maneira lusitana, tinham tendências de cometa. Mas os ingleses, fiéis ao seu espírito natural, não perdiam uma oportunidade. Cantaram o hino. Recorreram ao seu repertório de cânticos e encheram o estádio de bandeiras inglesas.

Cerimónia de abertura

No relvado, depois de uma cerimónia de abertura simples e curta – semelhante à das meias-finais mas com o bónus de haver todas as bandeiras dos países da UEFA – a final «começou». No topo norte, a «claque oficial» portuguesa dava o mote, com cânticos que incluíam uma homenagem a Ronaldo, mas só se alargava realmente ao estádio inteiro quando apareciam espontaneamente as três sílabas mais recorrentes neste tipo de jogos: Por-tu-gal! E assim, repetidamente, durante alguns segundos, o ambiente tornava-se verdadeiramente intimidante.

 

Se entre nós havia uma portuguesa a torcer pela Holanda – culpa da geração de Davids -, imediatamente atrás de nós surgiu um holandês com uma camisola de Portugal que parecia estar determinado em reequilibrar as contas. Só não manteve esse equilíbrio quando, num gesto tosco, deixou fugir uma cerveja e regou o alemão e a «portuguesa laranja» da fila da frente.

 

O golo de Gonçalo Guedes demorou a surgir. Portugal esteve sempre melhor, potenciando um clima de confiança nas bancadas que não tinha existido nem na Luz-2004 nem em Paris-2016, e confirmou essa superioridade. Quando o fez, o karma também apareceu. Enquanto o jogo caminhava para o fim, os ingleses, incapazes de esquecer o que tinham sofrido dos holandeses três dias antes, retribuíram a célebre música dos Monty Python: «Always look on the Bright side of life!». Ali, naquele momento, era a vingança possível, servida fria, de quem tinha perdido uma vez mais a oportunidade de conquistar um troféu sénior de seleções.

Hino português foi um dos momentos altos da tarde/noite

O título sorriu a Portugal. A festa foi contida – na relva e nas bancadas – e deu para pouco mais do que algumas fotografias, gritos de celebração e regresso à vida mundana. Não desvalorizando a importância da Liga das Nações, é natural que não tenha sido vivida da mesma forma que o Euro-2016. Por outro lado, a União Soviética em 1960 e o Uruguai em 1930 também não devem ter sentido o mesmo que se sente hoje em dia.

 

Sim, podemos achar que a Liga das Nações não tem grande impacto atualmente. Mas não podemos desconsiderar a probabilidade de no futuro este título ser contabilizado com rigor e com o mérito devidos. Mesmo sem ter sido verdadeiramente memorável, a primeira ninguém esquece. E essa foi de Portugal.

07 de Junho, 2019

A conquista de Guimarães com Monty Python à mistura

Rui Pedro Silva

Holanda-Inglaterra em Guimarães

Tinha tudo para ser uma batalha emocionante e não desiludiu. A chuva que caiu durante toda a tarde ajudou a aumentar o tom medieval, trazendo até Guimarães uma neblina que teimou em tornar o rival do campo mais distante e difícil de avaliar e, no final, o que fica é uma noite inesquecível.

 

Os mais aventureiros, soldados rasos destinados a sacrificar o corpo por um bem maior, ignoraram a chuva e deram espetáculo pelas ruas e largos da cidade-berço, habituada a estar no epicentro de conflitos monárquicos. Agora, tantos séculos depois, a mãe que sofreu na pele a sede independentista do filho Afonso foi substituída por uma rainha incapaz de liderar os seus súbditos na conquista de uma prova de seleções.

 

O GuimarãeShopping, tão perto do D. Afonso Henriques, foi o primeiro palco de antevisão do jogo. Foi a cobertura perfeita para fugir à chuva e, ao mesmo tempo, protagonizou um cenário de introspeção, calma, e desconfiança perante o rival do lado de lá. Havia mais bifes do que laranjas mas o reconhecimento da presença de adversários não desencadeava qualquer tipo de reação. Olhavam-se, estudavam-se, sabiam que iam estar em lados opostos da barricada, mas ainda não era altura. Qual Raul Solnado em busca da porta da guerra, sabiam que a batalha tinha hora marcada e não valia a pena estar a gastar forças antes de ser preciso.

 

As artérias que nos transportavam até ao coração da cidade mostravam a supremacia inglesa. De pé, de frente para a estrada, alinhados com orgulho, bebiam e cantavam a plenos pulmões o amor que tinham por Inglaterra. Com cervejas a quatro euros num posto de venda ambulante, aproveitavam o momento ao máximo.

 

O aproximar do jogo substituiu as filas pelo álcool pelas das portas de entrada. À boa forma moderna, era preciso ter a aplicação no telemóvel, ligar o bluetooth, ativar o bilhete recebido dias antes e mostrá-lo num primeiro posto de controlo. Depois, nova fila para a verdadeira entrada. Se umas portas pareciam estar destinadas a demorar longos minutos, outras (a nossa!) andavam a um ritmo perfeito.

Setores de adeptos ingleses tinham mais movimento

Lá dentro, os jogadores aqueciam músculos. Cá fora, adeptos faziam o mesmo com as vozes. E sim, os holandeses também podem ter fama de massa efervescente, mas nada bate os ingleses. Capazes de impor uma alma única num estádio, fazem mossa quando decidem deixar a sua marca. Não bastava estarem em maioria, têm também uma capacidade única para se fazerem ouvir.

 

Por todo o estádio, havia bandeiras inglesas espalhadas com as localidades de onde os próprios adeptos vinham. Tornou-se impossível não recordar o Euro-2004 e o Estádio da Luz naquela mágica noite de junho, quando Figo foi para o balneário, Deco mostrou que fazia magia até como lateral direito e aconteceu Postiga. E depois Rui Costa. E finalmente Ricardo.

 

Hoje, 15 anos depois, tudo não passa de memórias. Só mesmo Cristiano Ronaldo resiste. E ele não joga em Guimarães, tem lugar reservado no Dragão. E Holanda e Inglaterra, por esta altura, não podem fazer mais do que alimentar a chama de voltar a vencer uma prova sénior de seleções.

 

Sim, por muito que se queira desvalorizar a Liga das Nações, um título é um título e, uma vez lá dentro, ninguém quer perder. E, acrescentamos nós, cá fora também não se joga a feijões. A dinâmica de parada-resposta entre adeptos ingleses e holandeses atinge um patamar primoroso de sarcasmo e ironia.

 

A festa é dos ingleses. A forma apaixonada como cantam o hino – e mais tarde assobiam o holandês – é apenas o ponto de partida para uma noite com uma amplitude de emoções difícil de suportar. Quando o apito inicial se ouve, só há motivos para festa. Não se sente pressão, não se vê a vida a fugir por entre os dedos. O domínio inglês nas bancadas assume-se sob a forma de um cântico. «Your support, your support, your support is fucking shit!», gritam, imparáveis, na direção do setor onde estão os holandeses, mais calmos e menos ruidosos.

 

Mais tarde, rejubilam perante um passe completamente descabido de Ryan Babel e lançam-se de novo na direção dos holandeses: «You’re fucking shit! You’re fucking shit!». A guerra está longe do seu final, mas os ingleses estão a ganhar as primeiras batalhas todas. Segundos depois, os holandeses esboçam a reação perante uma ação completamente errada de Inglaterra em campo mas, aparentemente, não é nada que afete os adeptos rivais.

Até porque o 1-0 da Inglaterra, de penálti, nasce de um erro inacreditável da defesa holandesa. Tudo, tudo, mas mesmo tudo, parece correr de feição ao exército de Southgate e, como não podia deixar de ser, surge a habitual convicção, sob a forma de cântico, de que o futebol vai voltar a casa.

 

Mas havia ainda tanto para jogar e a Holanda demonstrava ser mais perigosa e assumir mais iniciativa em campo. Com calma, e uma paciência surpreendente, mesmo depois do contexto em que o primeiro golo foi sofrido, a Laranja Mecânica não abdicou dos seus princípios. Van Dijk era um dos primeiros elementos em destaque e, ao mesmo tempo, o catalisador de reações diametralmente opostas nas bancadas: os ingleses assobiaram-no da primeira à última intervenção, e os holandeses começaram a reagir com aplausos sempre que o central do Liverpool assumia o controlo da bola.

 

A euforia inglesa foi travada pela primeira vez quando De Ligt empatou na segunda metade da segunda parte. Num período em que as provocações entre adeptos tinham descido de tom – afinal, quando a pressão aperta, há uma menor disposição para perder tempo com «trivialidades» -, a Holanda relançou o jogo e deixou os ingleses à beira de um ataque de nervos. Seria possível que, uma vez mais, o sonho – mesmo numa prova secundária como a Liga das Nações – ficasse pela meia-final?

Os festejos do empate holandês

Talvez não! E foi por isso que festejaram loucamente o 2-1 na reta final do encontro. Abraçaram-se, fizeram saltar cadeiras, perderam a noção de onde estavam e de onde punham os pés. Era impossível voltar a falhar. Afinal, faltavam tão poucos minutos e o futebol ia (mesmo) regressar para casa. Mas as vozes da festa foram substituídas poucos instantes depois, quando o árbitro assinalou fora-de-jogo no lance do golo. O prolongamento era inevitável.

 

A tensão subiu de tom com a mesma velocidade com que a temperatura desceu no termómetro. Depois, numa retribuição da oferta do 1-0, a defesa inglesa abriu caminho para o golo da vantagem holandesa, carimbada com um autogolo de Kyle Walker.

 

Esta terá sido a primeira vez em que os holandeses perceberam que eram donos e senhores da guerra. Que a batalha mais importante estava conquistada: a da confiança. Os ingleses acusaram o toque e foram condenados a assistir impávidos enquanto a bancada laranja usava Monty Python para troçar do seu inevitável destino. «Always look on the bright side of life, turu, tu-ru, tu-ru, tu-ru!», cantavam, sentindo-se na perfeição a gargalhada na voz.

A Inglaterra perdeu o tino. Deixou de ter força dentro e fora de campo. Percebia-se que a Holanda tinha mais vontade, mais capacidade para fazer a diferença e, sobretudo, mais pernas. Os ingleses estavam derrotados no corpo e na mente. Atacando sem critério, limitavam-se a abrir caminho para que a Holanda ficasse com a final garantida ainda antes do apito final. Foi isso que aconteceu quando, aos 114 minutos, Quincy Promes fez o 3-1.

 

Os ingleses não quiseram ver mais e começaram a sair às dezenas em cada porta do estádio. Os holandeses voltaram a Monty Python e começaram a imaginar como será o Dragão no domingo contra Portugal. À saída, na rotunda do estádio, um inglês – dos poucos que ainda conseguiam falar – fazia uma triste profecia: «A Inglaterra NUNCA vai ganhar nada!».

 

O futebol não voltou a casa. Ainda não foi desta. A Inglaterra, depois de domingo, chegarão apenas os corpos cansados de adeptos ótimos para fazer a festa mas com uma tendência dramática para esvaziar egos das formas mais dolorosas.

06 de Junho, 2019

Sandra Bastos. A árbitra portuguesa do Mundial

Rui Pedro Silva

Sandra Bastos

Portugal voltou a falhar qualificação para a fase final mas, pela primeira vez, terá uma representante em campo. Chama-se Sandra Bastos, tem 41 anos, e está habituada aos grandes palcos da Liga dos Campeões feminina.

 

Não se pode dizer que Portugal tenha morrido na praia. Ficou em terceiro lugar do grupo 6 de qualificação da UEFA, com 11 pontos em oito jogos. A Itália apurou-se diretamente com 21, a Bélgica ficou em segundo com 19 e acabou eliminada no play-off. Atrás da seleção nacional, apenas a Roménia e a Moldávia.

 

Sandra Bastos pode não ser a primeira pessoa portuguesa a estar num Mundial da FIFA de futebol feminino – de acordo com o relatório técnico, Jorge Baptista fez parte do comité de imprensa logo na edição de 1991 -, mas é a primeira a pisar verdadeiramente o relvado.

 

A arbitragem feminina em fases finais começou em 1991 e chegou finalmente a Portugal, 28 anos depois. Houve tempo para Cláudia Vasconcelos, brasileira, ser a primeira de sempre a arbitrar um jogo (atribuição do terceiro lugar em 1991) e para Ingrin Jonsson, sueca, dirigir o jogo da final em 1995. A partir daí, com o terreno desbravado, tudo ficou mais fácil e as equipas exclusivamente femininas tomaram conta da prova.

 

O quadro para 2019 é uma salganhada de nacionalidades. Da AFC chegam duas australianas, uma chinesa, uma norte-coreana e uma japonesa. Da CAF há uma etíope, uma ruandesa e uma zambiana. Da CONCACAF viajam duas canadianas, uma estado-unidense, uma mexicana e uma hondurenha. Da CONMEBOL, uma brasileira, uma chilena, uma argentina e uma uruguaia. Da OFC, uma neo-zelandesa. Da UEFA, Sandra Bastos é a portuguesa de um lote onde pontifica a alemã Bibiana Steinhaus (árbitra da Bundesliga) e existem ainda outra alemã, uma checa, uma francesa, uma suíça, uma russa, uma ucraniana e uma húngara. Ao todo, são 27 árbitras no lote.

 

O cartão de visita de Sandra Bastos é simples: pertence aos quadros da Associação de Futebol de Aveiro, começou a arbitrar em 2001 e é internacional desde 2004. É presença regular em jogos da Liga dos Campeões feminina e tem no currículo duas presenças no Mundial sub-17 e uma no Europeu sub-19.

 

Paixão pelo futebol

 

Em dezembro de 2010, numa entrevista ao blogue Arbitragem Algarvia, Sandra Bastos recordou que o futebol faz parte da sua vida desde pequena. Depois de a equipa em que jogava ter acabado e de o pai não a ter deixado ir para outro lado, limitou-se a jogar com os amigos na escola até que «surgiu um colóquio sobre arbitragem na escola e no qual os alunos da área de desporto eram obrigados a assistir».

 

Sandra Bastos falou com a diretora da escola sobre a possibilidade de haver também um curso de formação para os alunos interessados. «Depois de ter tirado o curso, surgiu a oportunidade de fazer o primeiro jogo e desde então o bichinho não parou mais. Comecei como assistente e no segundo ano optei por ser árbitra principal», reconheceu.

 

Já nesta altura, a então árbitra de 32 anos dizia que o objetivo era estar presente no Mundial. «Ainda tenho muito para dar à arbitragem», garantiu, admitindo que não pensava muito no facto de ser considerada a melhor árbitra portuguesa da atualidade.

 

Sandra Bastos nunca parou de evoluir e cinco anos depois tornou-se a primeira mulher de sempre a arbitrar um jogo de futebol masculino de um escalão nacional, entre o Mirandela e o Fafe.

 

«Ninguém complicou, nem equipas técnicas nem adeptos. Todos os intervenientes nos aceitaram com muita simpatia e sem dúvida que foi uma tarde desportiva que nunca vou esquecer», disse em declarações à Lusa.

 

No quadro de Elite da UEFA desde 2014, continua a ver o futebol como uma obsessão. «Adormeço a pensar em futebol, acordo a pensar em arbitragem. Estou a almoçar e a falar de arbitragem, por isso ocupa quase o meu dia todo. Até sonho com arbitragem! A minha mãe acordava-me quando eu trabalhava com os meus pais no café e eu dizia que não podia ir trabalhar porque estava a arbitrar num jogo. E estava a dormir!», contou ao Record.

 

Nos próximos dias, toda a gente sabe onde estará Sandra Bastos. Não vai precisar de mentir, não vai precisar de sonhar acordada. Está no Mundial de França por mérito próprio e mantém a mesma ambição de sempre.

05 de Junho, 2019

Carli Lloyd. Um hat-trick para a história

Rui Pedro Silva

Feito irrepetível na final de um Mundial?

Falhou um penálti no desempate na final com o Japão em 2011 e parece não se ter esquecido desse momento durante quatro anos. No reencontro com as nipónicas, «fechou» a final com três golos nos primeiros 16 minutos da final de 2015. Uma obra-de-arte.

 

Estados Unidos e Japão disputaram a sétima final na história do Mundial de futebol feminino – organizado pela FIFA – quando entraram em campo a 5 de julho. A história dos jogos decisivos tinha momentos de ouro, como o penálti de Brandi Chastain que decidiu o título em 1999 ou o golo de ouro de Nia Künzer em 2003, mas nenhuma jogadora tinha deixado uma marca verdadeiramente poderosa.

 

As seis finais anteriores tinham tido 14 golos, dois deles no prolongamento. E apenas uma futebolista, Michelle Akers, conseguira marcar mais do que um – bisou à Noruega logo em 1991. Quando Carli Lloyd entrou em campo em 2015, não precisou de muito para escrever um dos capítulos mais impressionantes da história.

 

A fase final disputada no Canadá foi riquíssima em hat-tricks. Anja Mittag marcou três golos à Costa do Marfim, Gaëlle Enganamouit não enganou nada e fez três ao Equador. No famoso 10-1 sofrido pelo Equador contra a Suíça houve três exemplos: Fabienne Humm fez história com três golos em cinco minutos (47’, 49’ e 52’), Ramona Bachmann imitou a colega de equipa, precisando de mais tempo, e Angie Ponce foi… insólita: dois autogolos e um penálti na baliza certa.

 

A fase a eliminar trouxe jogos mais equilibrados e as oportunidades de hat-trick secaram… até à final. Mas foi precisamente nesse momento que Carli Lloyd começou a sentir inspiração. Fez um golo à Colômbia nos oitavos, um à China nas meias e um à Alemanha nas meias. Depois, na final, o Japão.

Carli Lloyd (10) no desempate em 2011

A única memória que Lloyd tinha de disputar uma final de um Mundial não era grande coisa. Contra este mesmo Japão, fora titular, sem golos, e desperdiçara um penálti durante o desempate. Desta feita, entrou com a genica de quem não esqueceu e quer garantir que não vai passar pelo mesmo.

 

O 1-0 chegou aos três minutos. O bis aconteceu aos cinco e o hat-trick ficou completo aos 16’, já depois de Lauren Holiday ter feito o 3-0. Assim, num abrir e fechar de olhos, Lloyd entrou para a história. Nunca ninguém tinha feito um hat-trick numa final. E não tinha sido «apenas» um hat-trick: fora num espaço de 16 minutos… nos primeiros 16 minutos do encontro.

 

A goleada final (5-2) foi a conclusão natural de um dia em que Carli Lloyd, prestes a fazer 32 anos, assumiu o protagonismo sozinha. Depois de alcançar o título olímpico em 2012 e 2016, a centrocampista que também sabia jogar na frente alcançava finalmente o que lhe faltava.

 

O feito de Lloyd foi ainda mais impressionante porque desde 1998 que nenhum jogador marcava mais do que um golo numa final sénior da FIFA (Zidane bisou contra o Brasil). E na história do futebol, havia apenas um precedente de hat-trick, quando Geoff Hurst marcou três à República Federal da Alemanha em 1966.

 

O trauma de 2011 pode não ter sido ultrapassado mas a norte-americana fez questão de mostrar ao mundo o que valia quatro anos depois… com estrondo. As exibições valeram-lhe o título de melhor jogadora da prova e os seis golos só foram imitados por Celia Sasic, da Alemanha. Meses mais tarde, a FIFA não teve dúvidas e atribuiu-lhe também o prémio de melhor jogadora do ano.

 

Naquele momento, oito anos depois de ter vencido o MVP da Algarve Cup, o círculo estava fechado. Não havia mais nada a conquistar.

04 de Junho, 2019

Christie Rampone. Jogar para lá dos 40 anos

Rui Pedro Silva

Christie Rampone na despedida

Participou em quatro fases finais com os Estados Unidos mas não esteve sempre na linha da frente (61% dos jogos). Despediu-se em 2015, com 40 anos e 11 dias, a erguer o troféu mais importante do mundo. Foi a saída de cena perfeita.

 

Escolher quando é hora para parar é capaz de ser o maior dilema de uma pessoa que pratique desporto de forma profissional. Por um lado, ninguém quer passar pela vergonha de se arrastar eternamente por uma modalidade, envergonhando a imagem que exibiu outrora. Por outro, muitos não resistem ao pânico de sentir que não há nada do outro lado da porta. A reforma, numa idade tão nova – para o resto do cidadão comum – é uma incógnita insuportável, especialmente para quem, muitas vezes, acha que não sabe fazer outra coisa.

 

Estar do lado de lá é, muitas vezes, uma provação difícil de contar. Recentemente, por exemplo, Jason Witten decidiu regressar aos Dallas Cowboys aos 36 anos, depois de se ter retirado durante uma temporada para fazer comentário desportivo na televisão. O passado mostra que não é um exclusivo do futebol americano (alguém consegue esquecer as duas «reformas» de Michael Jordan?) ou dos Estados Unidos (Johann Cruijff e Paul Scholes estão entre as figuras do futebol europeu que decidiram voltar atrás na palavra).

Michael Jordan acabou a carreira (de vez) em Washington

Christie Rampone chegou a 2015 sem se reformar. Nasceu a 24 de junho de 1975, na Florida, e cresceu numa altura em que ainda nem sequer havia seleção de futebol nos Estados Unidos (primeiro jogo só aconteceu quando já tinha dez anos). Sem uma paixão declarada, praticou quatro desportos na escola secundária: futebol, basquetebol, atletismo e hóquei em campo.

 

Quando passou para a universidade, esqueceu as últimas duas mas juntou-lhe o lacrosse. Por esta altura, o futebol ia ganhando cada vez mais protagonismo e em 1997, finalmente, estreou-se pela seleção norte-americana.

 

A primeira de cinco fases finais foi em 1999, ganha em casa pelos Estados Unidos. Nos seis jogos disputados, Rampone só participou num: o último da fase de grupos, contra a Coreia do Norte. Com os Estados Unidos a vencer por 2-0, a central entrou aos 73 minutos e conseguiu a estreia nos grandes palcos. Aqueles 17 minutos foram suficientes para dizer, com orgulho, que contribuiu ativamente para a conquista do título.

 

Os anos que se seguiram promoveram um aumento da influência de Rampone nas provas mais importantes. Em 2003 subiu a fasquia para quatro jogos, e em 2007 e 2011 participou em todos os seis que os Estados Unidos disputaram na prova. O denominador comum? O título fugiu sempre.

 

Quando a campanha dos Estados Unidos na fase final de 2015 arrancou, Christie Rampone tinha 39 anos e 349 dias. Não saiu do banco contra a Austrália. Quatro dias depois, contra a Suécia, mais do mesmo. Por fim, contra a Nigéria, tal como em 1999, teve a sua oportunidade no jogo que encerrou a fase de grupos. Entrou aos 80 minutos com o resultado (1-0) já feito. Tinha 39 anos e 357 dias.

 

Título mundial chegou na última oportunidade

A fase a eliminar retirou espaço de manobra a Rampone. A dois dias de celebrar os 40 anos, viu de fora a vitória sobre a Colômbia nos oitavos. Dois dias depois dos 40 anos, voltou a não entrar, nos quartos, no 1-0 à China. O triunfo sofrido com a Alemanha nas meias-finais (2-0 com golos aos 69’ e 84’) também não promoveu a participação de Rampone.

 

Sobrava a final. Em Vancouver, a 5 de julho de 2015, Rampone tinha 40 anos e 11 dias. Se entrasse, não seria apenas a mais velha de sempre a disputar uma final, seria também a mais velha de sempre numa fase final de futebol feminino.

 

O Japão era um adversário perigoso – a desilusão da derrota nos penáltis na edição de 2011 permanecia viva – mas as norte-americanas sentenciaram o encontro em 16 minutos com quatro golos, três deles de Carli Lloyd. As nipónicas ainda reagiram com dois golos mas o 5-2 de Heath aos 54’ acalmou até os mais nervosos.

 

Era a oportunidade perfeita para Christie Rampone. A selecionador Jill Ellis sabia disso e guardou as substituições para o final. Primeiro, aos 79 minutos, permitiu a Abby Wambach despedir-se em campo. Depois, aos 86’, lançou a quarentona para o lugar da avançada Alex Morgan. A eterna capitã estava em campo, praticamente em cima do final do jogo, e preparava-se para erguer o troféu dali a nada.

 

Tinha 40 anos e 11 dias e acabara de vencer o segundo Mundial da sua carreira, 16 anos depois do primeiro. Era a única resistente da geração de 1999 que conquistou os Estados Unidos e seduziu milhares de raparigas para começar a praticar futebol. Por todo o mundo.

 

Em Vancouver, no extremo oposto da América do Norte de onde tinha nascido, Rampone fez história e escreveu a última frase da sua carreira. Sem arrependimentos. Tinha 311 jogos pela seleção, era tricampeã olímpica e tinha ainda uma medalha de prata. Vencera dois Mundiais, conquistara um segundo lugar e dois terceiros.

 

Não houve incerteza. Estava na hora de dizer adeus e a incógnita era nula. Despedia-se como recordista e, mesmo que quisesse, não valeria a pena continuar. Para quê estragar um fim perfeito? Ao contrário de muitos antes e depois dela, soube sair num ponto alto. Guardou-se para aquele dia e foi recompensada.

03 de Junho, 2019

Abby Wambach. Um sinónimo de golo

Rui Pedro Silva

Abby Wambach

Chama-se Mary Abigail Wambach, nasceu a 2 de junho de 1980 e acabou a carreira em 2015, ano em que foi finalmente campeã mundial com os Estados Unidos. Para trás, ficou uma carreira com um recorde de 184 golos pela seleção e outras marcas que continuam por bater: desde o golo mais tardio numa fase final (122 minutos) ao número de jogos diferentes a marcar pelo menos um golo no torneio (12).

 

A carreira de Abby ao serviço dos Estados Unidos esteve em constante crescimento. Internacional desde 2001, quando tinha 22 anos, entrou num ciclo de preparação para um Mundial em que a sua seleção entraria como detentora do título. Mas, ao contrário das suas antecessoras, teve de sofrer para chegar ao lugar mais alto do pódio.

 

As medalhas de ouro olímpicas em 2004, em Atenas, e em 2012, em Londres, foram fraca consolação para uma mulher que queria tudo. E tudo significava o título mundial. Na estreia, em 2003, ficou no terceiro lugar e contribuiu com três golos em três jogos diferentes, num total de seis disputados. Quatro anos depois teve de se contentar novamente com o terceiro posto, marcando seis golos em quatro jogos diferentes, num total de seis em que participou.

 

O China-2007 foi diferente para Wambach. Voltou a não passar do terceiro lugar mas, pela primeira e única vez numa fase final, conseguiu marcar mais do que um golo por jogo. Fez dois à Suécia na fase de grupos e dois à Noruega no jogo de atribuição do terceiro lugar.

 

As goleadoras não são todas iguais. Há umas que pressentem o momento certo para marcar, o mais decisivo, e deixam os outros instantes para figuras efémeras. Há outras que vão pela inspiração e tanto marcam golos uns atrás dos outros num encontro para depois passarem despercebidas no resto do torneio. Abby Wambach parecia um instrumento de maquinaria alemã, com pontualidade britânica, a jogar pelos Estados Unidos.

 

Se Michelle Akers, melhor marcadora numa fase final (10 em 1991) e recordista dos Estados Unidos até aparecer Wambach, se destacou pelos cinco golos marcados a Taiwan, num total de seis jogos com golos em 13 jogos disputados, a figura desta história parecia fazer pouco mais do que picar o ponto.

Abby Wambach

Os números não são apenas residuais. Abby Wambach esteve em 24 dos 43 jogos que os Estados Unidos já disputaram em fases finais, o que equivale a uma percentagem que arranha os 56%. E marcou em 12 desses encontros. Dito de outra forma, marcava numa média de jogo sim, jogo não (parecido com Akers, à primeira vista, mas com o dobro dos jogos disputados), e tem pelo menos um golo em (aproximadamente) 28% dos jogos que a equipa com o melhor palmarés em Mundiais (três títulos, um segundo lugar e três terceiros lugares em sete edições) disputou nos torneios.

 

A sua despedida dos grandes palcos, com 35 anos, surgiu no Canadá, há quatro anos. Marcar apenas um golo em seis jogos (vs. Nigéria na fase de grupos) destruiu-lhe a média mas, nesta altura, já era pouco mais do que uma substituta de luxo. Na fase de grupos, foi titular contra Austrália e Nigéria, as duas adversárias mais vulneráveis, e saiu do banco contra a Suécia aos 67 minutos. Foi o estatuto que manteve contra Colômbia (69’), China (86’) e Alemanha (80’), disputando um total de 35 minutos nestes encontros.

 

A final contra o Japão seria uma excelente oportunidade para se desforrar do que tinha acontecido em 2011. Aí, tinha sido a única de quatro norte-americanas a conseguir marcar um penálti no desempate. A consolação foi fraca: o troféu já tinha metade do nome do país asiático gravado na base. Mas, em 2015, Wambach não teve oportunidade para jogar sequer um minuto. Festejou, sentiu o título como dela, mas não conseguiu ter uma despedida em campo, dentro das quatro linhas.

 

Por muitos golos que tivesse marcado, pode ter sentido um amargo de boca. Na única final que disputou, marcou um golo (no prolongamento) e esteve perto de sentir o que seria ser verdadeiramente decisiva. Mas Homare Sawa garantiu o desempate por penáltis, marcando a três minutos do final.

 

Wambach não se pode queixar, também viveu momentos dramaticamente positivos numa fase final. Na verdade, foi mesmo nessa fase final, sete dias antes, em Dresden contra o Brasil. No jogo dos quartos-de-final, contra o Brasil de Marta, o encontro caminhava para o fim e as sul-americanas venciam por 2-1 já nos descontos do prolongamento.

 

Depois, após assistência de Megan Rapinoe, Wambach mergulhou para a glória e forçou os penáltis, vestindo o papel que Sawa lhe roubaria na final. Foi na altura, continua a ser até hoje e dificilmente será batido no futuro, o golo mais tardio na história das fases finais. Ali, na Alemanha, o mesmo país que em 2006, em Dortmund, viu Del Piero matar as esperanças germânicas nas meias-finais com um golo no primeiro minuto dos descontos do prolongamento. Aqui, Wambach foi ainda mais longe e esperou um pouco mais para ficar com o recorde só para ela.

 

Distinguida em 2012 com o prémio de melhor jogadora do mundo para a FIFA, Wambach teve de esperar mais três anos para sentir que realmente já tinha atingido tudo o que havia para conseguir. Pode não ter jogado, mas sentiu aquela final, toda aquela fase final, como a cereja que perseguia há muito e que tinha falhado nas três competições anteriores. Agora sim, podia descansar em paz, ligando pouco àquilo que a notabilizou.

 

«Ninguém é melhor do que a equipa. Não marco golos sozinha. Todos os que marquei foram através da excelência e bravura de alguém na minha equipa», garantiu um dia.

02 de Junho, 2019

Angie Ponce. O hat-trick mais insólito na história dos Mundiais

Rui Pedro Silva

Angie Ponce fez história contra a Suíça

Nasceu a 14 de julho de 1996 e estreou-se no Mundial-2015 com apenas 18 anos. O Equador participou pela primeira vez numa fase final e a vulnerabilidade foi demonstrada jogo após jogo. Contra a Suíça, houve três jogadoras a marcar três golos, mas Angie Ponce conquistou o título de hat-trick mais insólito.

 

Quando mais de 31 mil pessoas entraram num estádio em Vancouver, não faziam a mais pequena ideia de que se preparavam para assistir a um encontro que faria história por inúmeras razões. A Suíça goleou o Equador (10-1) e ajudou a igualar o recorde de golos num só jogo da fase final (Alemanha-Argentina, 11-0, em 2007). Fabienne Humm marcou três golos num espaço de cinco minutos e bateu a marca de Mio Otani, que tinha feito um hat-trick em oito minutos, ao serviço do Japão em 2003.

 

Os motivos de destaque deste jogo seriam um pesadelo para quem estivesse obrigado a escrever apenas duas ou três linhas sobre o jogo numa coluna lateral de um jornal qualquer. Por onde pegar? O que dizer? Não podem ser mais linhas? Foi um jogo com três hat-tricks. Ficou 10-1. Houve recordes a serem batidos. Houve os primeiros golos na história das fases finais de Suíça e Equador. Houve… Angie Ponce.

 

A defesa esquerda do Equador era uma adolescente em 2015. Fora titular na estreia com os Camarões (derrota por 0-6) e mantivera a confiança da selecionadora Vanessa Arauz para o segundo jogo. Correspondeu com um feito histórico. Mas indesejado.

 

Com um primeiro autogolo aos 24 minutos, tornou-se a autora do primeiro golo da Suíça em fases finais. Com um pontapé de penálti aos 64 minutos, tornou-se a autora do primeiro golo do Equador em fases finais. Repetitivo? Pois, só muda o país.

 

Isto, por si só, seria suficiente para tornar a história desta jogadora importante neste jogo, nesta fase final, nesta prova. Mas Ponce foi ainda mais longe e marcou um segundo autogolo aos 71 minutos, completando o hat-trick (onde está escrito que autogolos não contam para hat-tricks?) mais insólito na história do futebol feminino.

 

De todo o futebol? Isso já é elevar a fasquia. Talvez seja, mas só porque em 1976, Chris Nicholl marcou quatro golos. Isso mesmo, num jogo entre o Aston Villa e o Leicester, o jogador da equipa de Birmingham abarbatou-se de todo o destaque e fez todos os golos de um jogo que terminou empatado a dois golos. Com Angie Ponce, o Equador foi esmagado pela Suíça (1-10).

 

Fabienne Humm e Ramona Bachmann merecem notas de rodapé neste texto. A primeira fez o tal hat-trick num espaço de cinco minutos, com golos aos 47’, 49’ e 52’. A segunda fez o terceiro hat-trick do encontro: quando marcou aos 60’ e 61’, ainda se pensou que a marca de Humm podia ser batida (que loucura seria?), mas o terceiro festejo só surgiu aos 81 minutos.

 

Que jogo de doidos!

01 de Junho, 2019

Mundial-2015. Mais equipas… o mesmo resultado

Rui Pedro Silva

EUA conquistaram o terceiro Mundial

Foi a fase final do número três. Pela terceira vez, os Estados Unidos chegaram ao título mundial, numa reedição da final da edição anterior contra o Japão. Por três vezes, e em apenas 16 minutos, Carli Lloyd marcou no jogo decisivo e escreveu uma das histórias mais impressionantes de um torneio que, pela primeira vez, contou com 24 seleções.

 

A FIFA organizou o primeiro Mundial de futebol feminino oficial em 1991, na China, com 12 seleções. Os Estados Unidos apareceram com uma geração onde pontificava Michelle Akers e mostraram ao mundo quem mandava.

 

O crescimento e sucesso do futebol feminino foi evidente durante a década de 90, por isso o organismo decidiu aumentar o número de equipas para 16 no Mundial-1999, organizado pelos norte-americanos. Com mais quatro adversários, os Estados Unidos não se mostraram incomodados e ganharam pela segunda vez na história.

 

Foi preciso esperar até 2015, no Canadá, quando a FIFA decidiu aumentar novamente o número de equipas, para 24, para os Estados Unidos vencerem pela terceira vez. Não é mais do que uma coincidência mas não deixa de ser muito interessante: sempre que a competitividade aumenta (ou simplesmente é criada), as norte-americanos elevam a fasquia e saem com o título.

 

O troféu em 2015 foi uma vingança bem medida pelos Estados Unidos. Quatro anos antes, na Alemanha, o título tinha fugido por entre os dedos em dois momentos: aos 117 minutos quando Homare Sawa empatou para o Japão no prolongamento; e depois, nos penáltis, com as três primeiras norte-americanas a desperdiçarem as suas oportunidades. Quatro anos depois, a desforra não foi mais do que um exercício de poder. A goleada por 5-2, construída com base no hat-trick de Carli Lloyd nos primeiros 16 minutos do encontro, não deixou dúvidas sobre quem era superior.

 

O Mundial foi mais do que esta manifestação de controlo por parte dos Estados Unidos, que atingiram o pódio da competição pela sétima vez consecutiva. Por outras palavras, em todas as que existiram. Foi também, sobretudo, uma festa do futebol que foi alargada a mais cantos do mundo.

Tailândia foi uma das estreantes

Até 2015, apenas 24 seleções tinham conseguido figurar na fase final. Com um torneio de 24 seleções, as probabilidades de haver uma onda de estreantes era grande. E foi precisamente isso que aconteceu com Tailândia, Camarões, Costa do Marfim, Costa Rica, Equador, Holanda, Espanha e Suíça.

 

A atitude da FIFA foi recompensada, até porque as novas seleções não fizeram apenas figura de corpo. Ou melhor, nem todas fizeram. É certo que a Costa do Marfim foi goleada pela Alemanha (0-10) na estreia, e que o Equador saiu com 17 golos sofridos em três jogos, com destaque para o 1-10 contra a Suíça, mas nos oitavos-de-final houve espaço para três estreantes: Camarões, Holanda e Suíça. Nos três casos, chegar à fase a eliminar foi o final da linha.

 

Também foi entre os estreantes que surgiu uma das histórias mais curiosas da prova. Encarnando o espírito de Chris Nicholl, jogador do Aston Villa que na década de 70 fez os quatro golos de um jogo com o Leicester que terminou… empatado, a equatoriana Angie Ponce fez o que conseguiu.

 

O azar acontece a todos… e todas. Brandi Chastain, figura de proa no título dos Estados Unidos de 1999, tinha começado por fazer um autogolo e um golo na baliza certa contra a Alemanha nos quartos-de-final. Mas Angie Ponce foi um pouco mais longe: fez um primeiro autogolo aos 24 minutos, marcou de penálti aos 64’ e repetiu a dose inicial, com novo autogolo aos 71 minutos. Impressionantemente, conseguiu retirar o destaque à suíça Fabienne Humm, autora do hat-trick em menor período de tempo em fases finais: marcou aos 47’, 49’ e 52’.

 

Os Estados Unidos não se limitaram a vencer o troféu, também bateram outros recordes. Christie Rampone despediu-se como a mais velha jogadora da história a disputar um jogo numa fase final (40 anos e 11 dias) e Abby Wambach chegou à impressionante marca de doze jogos com pelo menos um golo.

 

Ao contrário de figuras como Akers, Marta e Prinz, não marcava necessariamente em volume, preferindo diversificar os seus golos por diferentes jogos. Só assim se explica que, apesar de ter festejado em doze jogos diferentes, continue atrás de Marta (15 golos) na lista de melhores marcadores em fases finais.

 

Com mais de 1,3 milhões de espetadores nos estádios, o Mundial do Canadá bateu a marca estabelecida pelos Estados Unidos em 1999 e tornou-se a fase final com mais gente nas bancadas. Por outro lado, ter tido mais vinte jogos foi fundamental, uma vez que a média de espetadores (26029) ficou atrás da das fases finais de 1999, 2007 e 2011.

Blatter teve um ano atribulado

Joseph Blatter, presidente da FIFA, foi novamente muito otimista. «Expandir a prova de 16 para 24 equipas foi um forte sinal, e um catalisador, para o crescimento do futebol feminino. A FIFA está comprometida a encorajar raparigas e mulheres a abraçar o futebol e aproveitar os benefícios sociais, físicos e de saúde associados.»

 

O suíço escreve também que o futebol dá poder às mulheres para aprender sobre liderança e trabalho de equipa. Diz, no relatório técnico divulgado, que o futebol pode agir como um viveiro poderoso de modelos para inspirar mais raparigas a envolverem-se no desporto, mas também como exemplos para uma sociedade que promova a igualdade de género.

 

Blatter garantiu estar «orgulhoso» do que se tinha alcançado até então mas não teve a oportunidade de fazer muito mais. O homem que recebeu a indicação de João Havelange para estabelecer uma prova mundial de futebol feminino na FIFA em 1986 estava de saída. O escândalo de corrupção no organismo abateu-se sobre ele e acabou o seu legado em dezembro deste mesmo ano.

 

Aprender sobre liderança e trabalho de equipa? O que Blatter escreveu em julho tornou-se uma piada em dezembro. Hoje, quatro anos depois, o futebol feminino continua a crescer mas já sem o suíço.

 

Ah, faltou falar sobre Portugal. Num grupo com Noruega, Holanda, Bélgica, Grécia e Albânia, a seleção nacional foi afastada na qualificação depois de terminar a fase com quatro vitórias em dez encontros.