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É Desporto

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20 de Maio, 2019

Setúbal. O Bonfim para acabar o campeonato

Rui Pedro Silva

Bonfim é um estádio histórico em Portugal

«Quem o viu jogar não esquece, quem não viu não sabe o que perdeu!». A rotunda que dá para o Estádio do Bonfim não dá tréguas. A inscrição que acompanha a estátua de Jacinto João – o primeiro grande JJ do futebol português – apresenta desde logo o Vitória a quem vem de fora.

 

Eu não sei o que perdi. Por muito que se ouça falar de jogadores do passado, é diferente vivê-lo por dentro. Jacinto João foi uma bandeira do Vitória, uma referência máxima, um motivo de orgulho semanal que levava uma região de pescadores e operadores fabris a esquecerem a dureza do quotidiano e a partirem num sonho desenhado em quatro linhas.

 

Jacinto João foi especial. Mas eu nunca o vi. Cheguei tarde. Quando apanhei finalmente a carruagem do futebol português, o ídolo sadino era estrangeiro, vinha da Nigéria e respondia pelo nome de Yekini. Ainda hoje, 25 anos depois daquela brilhante temporada de 1993/94, que culminou com um desempenho brilhante no Mundial dos Estados Unidos, é difícil esconder a emoção ao recordar um jogador que nos seduzia só pela fonética do seu nome.

Uma bilheteira sem o fulgor de outros tempos

O «meu» Vitória não tem Jacinto João mas terá sempre Rashidi Yekini. Como tem a loja do clube, logo à entrada. É impossível não repararmos naquele sorriso tosco que o acompanhava depois de cada golo, a cada festejo partilhado com bancadas muito mais vestidas do que os últimos anos tiveram.

 

O futebol na altura era mais nu. E o Bonfim era um viveiro de jogos memoráveis. Do 5-2 ao Benfica que, confessou Toni, foi essencial para o título, do 2-3 com o Sporting e do magistral golo de Balakov ou do 3-3 com o FC Porto, num jogo em que os setubalenses conseguiram recuperar de um 0-3. Tudo na mesma temporada.

 

Uma oportunidade perfeita

O inevitável choco frito

Ir a Setúbal ver um jogo do Vitória era algo que estava nos planos há muito tempo. Mas só agora, em maio, na última jornada do campeonato, as circunstâncias o permitiram. Aproveitei as vantagens de uma ida e volta «gratuita» - à conta do passe de transportes públicos a 40 euros – e saí de Oeiras ainda de manhã.

 

O trajeto pode ser longo – durou um pouco mais de duas horas, depois de uma viagem de autocarro, uma de comboio, uma de metro e uma segunda de comboio -, mas um dia não são dias. A jornada estava planeada ao pormenor e nem a possibilidade de comer choco frito – o Papa desta Roma – foi descartada. O estádio fica bastante perto da estação e do Bonfim até à Avenida Luísa Todi é um pequeno pulo.

 

Quando a hora do jogo chegou, já tínhamos os bilhetes confortavelmente na mão (dez euros cada), tínhamos estado na loja do clube e almoçado com tempo. Só faltava mesmo o jogo… que seria especial.

 

A novidade tinha sido dada na véspera pelo treinador. Nuno Pinto, depois de recuperar de um linfoma, ia jogar os primeiros minutos. Ovacionado logo na altura em que as equipas foram anunciadas, o lateral esquerdo viria a protagonizar os dois momentos mais significativos do encontro.

 

Primeiro, ao ser substituído. Aplaudido de pé por todo o estádio, inclusive pelos cerca de 50 adeptos do Rio Ave que fizeram a viagem desde Vila do Conde, foi saudado por colegas de equipa, adversários e árbitro, numa demorada caminhada, e carregada de lágrimas, até à saída de campo.

 

 

Depois, ao minuto 21, o mesmo da sua camisola. A bola foi posta fora e durante cerca de um minuto o Bonfim voltou a levantar-se para aplaudir e homenagear a vida de uma pessoa. Ali, naquele momento, Nuno Pinto não foi um sadino. Não foi um jogador de futebol. Foi um homem que se viu perseguido por um drama e conseguiu dar a volta por cima.

 

O palco aos mais novos

Pai e filho do Vitória

O bilhete a dez euros garantiu um lugar no topo sul, num setor da bancada em que havia praticamente apenas adeptos do Rio Ave. Muitos homens, muitas mulheres e algumas crianças. Uma delas, um rapaz ainda não adolescente mas que parecia ter já superado vários rituais de iniciação ao futebol, marcava os ritmos ao tambor. Outros exibiam enormes bandeiras com o símbolo do Rio Ave ou com referência aos Ultras Verdes.

 

As experiências passadas também eram recordadas. «No ano passado apanhámos aqui um calor do caralho!», soltou uma mulher enquanto subia as escadas. De facto, apesar de ser maio, a tarde foi alternando algumas abertas de sol com uma brisa não necessariamente agradável.

Adeptos do Rio Ave vieram equipados a rigor

Apesar de em menor número, também havia adeptos do Vitória entre nós. Em destaque, o pai que se sentava com o filho algumas filas à nossa frente. Equipados a rigor, com um cachecol centenário, tinham posturas diferentes.

 

Ele, o pai, sempre de olhos no relvado, motivando o filho a olhar com mais atenção sempre que a bola se aproximava. O mais novo nem sempre correspondia. De tímidos cânticos por Vitória e pequenas mensagens de que «o Rio Ave vai para o lixo!», quando olhava para a claque do lado direito, passou mais tempo com os olhos no telemóvel do pai.

 

Talvez porque a construção do Bonfim não é a mais cativante, sobretudo quando não há gente suficiente para tornar o ambiente num topo imperdível. A distância para as quatro linhas é grande o suficiente para se perder a capacidade de se ficar submerso no ambiente do jogo.

 

Golos reservados para a segunda parte

Rio Ave fez a festa

O vento forte deu a primeira parte ao Vitória mas os momentos em torno de Nuno Pinto foram os únicos verdadeiramente memoráveis do primeiro tempo. No segundo, contudo, começaram a surgir os golos… e de forma supersónica.

 

Num ápice, Bruno Moreira marcou para o Rio Ave, Vasco Fernandes para o Vitória e o jogo ganhou interesse. Minuto após minuto, porém, o empate começou a desenhar-se na mente de cada adepto. O jogo já só servia para cumprir calendário, sobretudo depois de os sadinos terem assegurado a permanência em Chaves, na jornada anterior, e a pressão era escassa.

 

O facto de ser o último jogo da época, e de o encontro anterior do Vitória em casa, com o Boavista, ter sido, à falta de melhor palavra, atribulado, fez com que a polícia trouxesse reforços para garantir que nada de inesperado acontecia após o apito final. Brindados com assobios, o posicionamento dos polícias de intervenção foi o aperitivo para o Rio Ave matar o jogo nos descontos.

 

Já depois de surgir a placa com três minutos de compensação, Bruno Moreira bisou e, no último fôlego, Ahmed Said fechou a contagem. O Rio Ave ia voltar para Vila do Conde com três pontos e, apesar da derrota, o Vitória festejou mais uma permanência garantida depois de muito sofrimento.

 

De volta a casa, como sempre, as conversas de rua ainda giravam em torno do jogo, sobretudo os minutos finais. «Aquele [o guarda-redes Cristiano] em vez de defender por cima da barra, defendeu para a frente», desabafava um homem de idade avançada sobre o lance do 2-1. «Bastava atirar por cima da barra, mas nem isso fez!», continuou, enquanto o amigo respondia dizendo que nem sequer se tinha apercebido do 3-1.

 

Foi o último sinal que tivemos do Vitória-Rio Ave, numa tarde que ia ser dominada pelo Benfica-Santa Clara e FC Porto-Sporting. Ou assim pensei. Duas horas depois, a sair do comboio na estação de Oeiras, a poucos metros de mim, dou de frente com um rapaz com um casaco do Vitória. Será possível que tenha feito o mesmo caminho que nós? O futebol tem coisas destas.

20 de Maio, 2019

April Heinrichs. Nem todos podem ser Beckenbauer

Rui Pedro Silva

April Heinrichs como selecionadora

Venceu o Mundial-1991 como jogadora e tentou repetir o feito como treinadora em 2003. Entre a mulher e a história atravessou-se a Alemanha, país de Franz Beckenbauer, o primeiro a conseguir esse feito no futebol masculino (1974-1990).

 

Pelé é considerado por muitos o melhor jogador da história e venceu três títulos mundiais com o Brasil (1958, 1962 e 1970), mas nunca se aventurou como treinador: não era vida para ele. Maradona carregou a Argentina em 1986 e brilhou ao mais alto nível com um título que o povo não mais voltou a ver. O polémico jogador fez a transição para treinador mas parece destinado a orientar equipas que precisam de golpes de marketing. Numa das exceções, no Mundial-2010, orientou a Argentina e… falhou, acabando goleado pela Alemanha nos quartos de final (0-4).

 

A Alemanha tem destas coisas. É uma desmancha-prazeres. A expressão de Gary Lineker tinha uma razão de ser, claro está. Humilharam o Maradona selecionador, fizeram do Maracanazo uma brincadeira de crianças quando golearam o Brasil (7-1) em 2014, e… impediram que April Heinrichs pudesse ser como Beckenbauer.

 

É isso mesmo, os alemães também são invejosos. Franz Beckenbauer não é único mas foi o primeiro homem a ser campeão mundial enquanto jogador (RFA-1974) e selecionador (RFA-1990). Depois dele, já se lhe juntaram Mario Zagallo em 1994 e Didier Deschamps em 2018. No futebol feminino, April Heinrichs foi uma forte candidata mas viu o seu destino ser decidido pela… Alemanha.

 

A norte-americana não foi apenas uma forte candidata, foi também a primeira candidata na história. Mais do que isso, tornou-se a primeira ex-jogadora de um Mundial a chegar a uma fase final enquanto selecionadora. E fê-lo num espaço de quatro edições apenas.

 

Em 1991, na prova inaugural, April Heinrichs tinha «apenas» 27 anos mas já era a jogadora mais velha da seleção orientada por Anson Dorrance. Sem grande surpresa, foi ela a envergar a braçadeira de capitã numa equipa que tinha figuras como Michelle Akers (melhor marcadora da prova com dez golos), Mia Hamm (histórica futebolista) e Brandi Chastain (figura do Mundial ganho em 1999).

 

Heinrichs jogava pela equipa Fairfax Wildfire e também tinha a sua dose de atributos. Não só lhe calhou erguer o título mundial – o primeiro da história – como marcou quatro golos pelo caminho: dois ao Brasil na fase de grupos e dois à… Alemanha na meia-final.

 

Doze anos depois, numa fase final organizada pelos Estados Unidos, as alemãs vingaram-se. April Heinrichs tinha 39 anos e era a selecionadora da então campeã mundial desde 2000. Michelle Akers já não jogava mas tinha à sua disposição as antigas colegas Hamm e Chastain. E uma nova referência norte-americana: Abby Wambach, então com 23 anos.

 

O objetivo dos Estados Unidos era claro: revalidar o título conquistado em 1999, num período em que Heinrichs já era assistente na seleção. A jogar em casa, e apesar de não haver o mesmo mediatismo da edição anterior, os Estados Unidos fizeram o possível e chegaram sem dificuldade até à meia-final.

 

Aí, tal como em 1991, estava a Alemanha do outro lado. O sonho de vencer a fase final como jogadora e selecionadora morreu nesse dia, a 5 de outubro de 2003, em Portland. As europeias marcaram primeiro, por Garefrekes aos 15 minutos, e não permitiram qualquer resposta às adversárias.

 

Por mais que Heinrichs tentasse e os Estados Unidos pressionassem, não havia forma de chegar ao golo. O 3-0 final tornou-se um resultado ainda mais pesado, por culpa de dois golos nos descontos: Meinert aos 90’+1 e Prinz aos 90’+3.

 

O terceiro lugar final, fruto de uma vitória sobre o Canadá, foi uma fraca consolação. April Heinrichs foi muito contestada e nem o título olímpico em Atenas, no ano seguinte, permitiu que tivesse uma nova oportunidade em 2007, prova que viria a ser ganha pela… Alemanha.

 

Sim, April Heinrichs tentou mas nem todos podem ser como Beckenbauer. Muito menos quando é preciso passar por cima da Alemanha pelo caminho.