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É Desporto

É Desporto

18 de Abril, 2019

Um Goodison Park a abarrotar para ver um jogo feminino em 1920

Rui Pedro Silva

Dick, Kerr em 1917

Esta é a história de uma equipa de mulheres que foi criada durante a guerra. A debandada dos homens para combater tinha criado um vazio na competição que foi ocupado por equipas femininas. A curiosidade para ver o mesmo desporto praticado por mulheres foi imediata mas foi a qualidade das suas intérpretes que fez a diferença para tornar os jogos tão populares.

Estão a pensar em basebol e nos Estados Unidos? Sim, o filme com Tom Hanks, Madonna e Tea Leoni, entre outros, é famoso mas esta história não é da II Guerra, é da Grande Guerra. E não envolve basebol, mas sim futebol. E, por último, foi em Inglaterra e não nos Estados Unidos.

Esta é a história de uma equipa chamada Dick, Kerr, batizada de acordo com a fábrica de produção de material ferroviária com sede em Preston. Com o escalar da guerra, as prioridades da empresa passaram a ser o fabrico de munições e, sem surpresa, a esmagadora maioria dos empregados eram mulheres.

A pressão para produzir tanto quanto possível tornava o trabalho mais stressante e a prática desportiva era incentivada nos intervalos. Foi assim que um dia, em 1917, a observar de uma janela, o administrador de escritório Alfred Frankland viu uma pequena partida e teve uma ideia: formar uma equipa feminina de futebol.

O objetivo era claro: angariar dinheiro para ajudar os militares feridos em combate. As competições de futebol masculino estavam suspensas desde o final da temporada 1914/15 e os ingleses ansiavam por ver qualquer coisa. Havia procura, havia oferta. O sucesso foi um desfecho natural.

O primeiro jogo, no Natal de 1917, opôs a equipa de Dick, Kerr (os apelidos dos dois fundadores da empresa) à da empresa Arundel Coulthard Foundru. A ideia não era nova: um ano antes, na Páscoa, tinha havido um jogo de homens com a mesma finalidade. Agora, a nova nuance captou ainda mais a atenção e ajudou a angariar mais de 600 libras para um hospital.

O sucesso contundente foi o rastilho perfeito para a explosão de uma equipa que era quase tão famosa como os Beatles vieram a ser. A organização de jogos tornou-se uma prioridade para Frankland, autopromovido a treinador e que exigia três coisas fulcrais: sentido de decoro, pontualidade e… chuteiras sempre limpas.

 

A tradição tem muita força

Dick, Kerr antes de mais um jogo

É curioso perceber que esta equipa feminina teve origem em Preston e jogava no terreno do Preston North End, primeiro campeão na história do futebol inglês (1889). O domínio nas ilhas britânicas era esmagador. A equipa vencia confortavelmente e ganhou um estatuto de sensação difícil de contrariar.

O interesse para a organização de jogos era crescente. A vontade de estar nas bancadas a ver crescia de semana para semana, perante as notícias da supremacia exercida e da capacidade de estas mulheres fazerem esquecer o futebol masculino.

O Reino Unido tornou-se demasiado pequeno. A Dick, Kerr não só recebeu equipas de França como atravessou o Canal da Mancha para uma digressão que incluiu jogos em Paris, Roubaix, Le Havre e Rouen.

Nomes como Alice Kell, a capitã, e Lily Parr, goleadora letal, começaram a ganhar um estatuto acima de todos os outros. A segunda, recrutada à equipa de St Helens Ladies, marcou 43 golos logo na primeira temporada (1919) e chegou ao final da carreira com mais de 900.

 

Um ano inesquecível

Lily Parr foi a maior estrela da equipa

O sucesso de Dick, Kerr não deixava margem para dúvida e 1920 foi a maior prova disso. Em maio, jogaram com uma equipa que representava França perante 25 mil pessoas. E venceram, claro.

Mas o momento mais especial estava guardado para o Boxing Day. Tradição é tradição e a quadra natalícia não podia deixar de ter um jogo da equipa mais famosa de Inglaterra. Por isso, em Liverpool, na terra dos Beatles, o grupo deu mais um salto para a imortalidade na partida com as St Helens Ladies.

O Goodison Park, estádio do Everton, encheu e 53 mil adeptos viram a goleada por 4-0, com três golos de Alice Kell na segunda parte. O interesse foi tão grande que os registos da época garantem que pelo menos dez mil pessoas foram obrigadas a voltar para trás por já não haver espaço nas bancadas.

A dimensão do futebol feminino tinha ganhado vida própria e nem o fim da guerra e o regresso das competições masculinas tinham retirado fulgor a este sucesso. Basta ver que a final da FA Cup desse ano, entre Aston Villa e Huddersfield, teve menos três mil espetadores e sem problemas de lotação.

O jogo entrou na história e durante décadas continuou a ser a partida de futebol feminino com mais espetadores. O mais importante continuava a ser a angariação de dinheiro e nessa tarde foram conseguidas mais de três mil libras. No total, até 1921, angariaram 70 mil libras, o equivalente a mais de três milhões atualmente.

A equipa via-se como «campeã do mundo», e com razão. Numa das digressões, aos Estados Unidos, até jogos contra equipas masculinas venceram. O sucesso incomodou e havia homens que não se conformavam perante a qualidade do plantel.

Por isso, um dia, Lily Parr, que marcou mais de 100 golos em 1921, aceitou marcar um penálti a um homem que estava convencido que ela não seria capaz de lhe fazer um golo. Resultado: não só marcou como, pelo caminho, partiu um braço ao desafiador.

O balanço final da equipa, que durou até à década de 60, é esclarecedor: 828 jogos, 758 vitórias, 46 empates e 24 derrotas.