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É Desporto

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18 de Fevereiro, 2019

Garrincha. A Alegria do Povo com um final tão infeliz

Rui Pedro Silva

Garrincha pelo Brasil

Chamaram-lhe o anjo das pernas tortas. A perna esquerda era arqueada para fora e a direita para dentro, «como se uma rajada de vento de desenho animado as tivesse vergado para o mesmo lado», escreve Ruy Castro na brilhante biografia de Mané Garrincha, publicada pela primeira vez em 1995.

 

A vida não parecia augurar um destino brilhante para um dos cerca de trinta filhos – não existe um número concreto – que Amaro plantou por Pau Grande, uma terra onde todos trabalhavam numa fábrica (America Fabril) instaurada pelos britânicos. Descendente de uma tribo de índios, Garrincha – alcunha dada por uma irmã por se parecer com o pássaro – beneficiou da forma como o tio, Mané Caieira, se soube educar e tornar um dos homens de maior de confiança dos britânicos. A partir daí, tal como a Amaro uns anos antes, tudo lhe seria permitido, nada lhe ficaria por perdoar.

 

Os primeiros anos de vida foram vividos como um selvagem. De pé descalço e longe de ser uma prioridade da família – no meio de tantos irmãos – fez amizades duradouras e tornou-se um especialista em caçar pássaros e pescar peixes nas imediações de Pau Grande, nos arredores do Rio de Janeiro.

 

O futebol tornou-se a sua maior atração e o talento, apesar das pernas tortas, era indesmentível. Ganhar os jogos seria um objetivo interessante mas para Garrincha o verdadeiro sumo da pelada sempre foi outro: fintar. «A graça estava em driblar, apenas driblar. Estava no futebol em estado selvagem e lúdico, que era como os índios o jogariam, se soubessem», escreveu Ruy Castro.

 

Nascido em 1933, Garrincha foi uma espécie de Vukcevic, o montenegrino que passou pelo Sporting. Gostava de jogar futebol – vivia para isso até – mas vê-lo, ou ouvi-lo, não era com ele. Quando o Brasil perdeu o título mundial para o Uruguai, em 1950, Garrincha tinha ido pescar, sem sequer dar importância à existência do jogo. A vila inundou-se em lágrimas mas o futuro bicampeão mundial achou isso uma estupidez. Afinal, o futebol só era bom para jogar.

 

Garrincha era um pesadelo para os adversários no futebol «clandestino» e demorou até garantir o passaporte para o futebol carioca. E não foi por falta de tentativas. No Vasco da Gama, não o deixaram mostrar o que valia porque teve vergonha de levar as suas chuteiras gastas e proibiram-no de jogar descalço. No Fluminense também não chegou a entrar em campo. Havia muitos jovens para avaliar e Garrincha foi-se embora mais cedo para garantir que não perdia o comboio de regresso a Pau Grande.

 

Finalmente, já com 19 anos, chegou o Botafogo. Já não havia mais forma de fugir. A ideia de um génio das pernas tortas a fazer diabruras por onde quer que passasse tinha passado de ouvido em ouvido e, ao prestar provas numa equipa juvenil do Botafogo, os responsáveis não tiveram dúvidas. Um dia depois, seria a vez de fazer o mesmo entre a equipa sénior e seduzir, sem margem de manobra, treinadores e dirigentes.

 

O medo de perder um talento daquela qualidade foi tanto que o Botafogo se recusou a permitir que Garrincha regressasse a Pau Grande antes de assinar contrato. Levaram-no a almoçar a um restaurante português, conhecido pelos pratos de polvo e bacalhau, mas Garrincha, fingindo ler o menu, foi claro nas suas intenções: arroz, feijão e macarrão, o seu prato preferido.

 

A nova alma do Botafogo

Garrincha

Garrincha era um jogador especial. Na direita do ataque, não precisou de muito tempo para mostrar que era um diabo com a bola, capaz de humilhar qualquer adversário através das suas mudanças de velocidade e fintas de corpo. Podia não ser o jogador mais rápido da equipa, muito menos do futebol carioca, mas aliava as duas capacidades que tinha de forma explosiva.

 

Por esta altura, Garrincha já tinha começado a seguir as pisadas do pai Amaro. Engravidara Nair com a primeira de nove filhas que viria a ter com a sua primeira mulher. No total, foi pai de 14 crianças – apenas três rapazes. Entre eles, um, Neném, jogou no Belenenses e acabou por morrer num acidente de viação em Fafe, em 1992. Outro, um sueco chamado Ulf, foi resultado de uma noite de sexo poucas horas depois de a equipa chegar à Suécia em 1959 durante uma digressão. O apetite sexual herdado do pai começou a manifestar-se tão cedo na vida de Garrincha que a primeira parceira sexual foi uma… cabra.

 

Dentro de campo, Garrincha tornou-se a Alegria do Povo, o anjo das pernas tortas, o diabólico ponta direita que servia de abre-latas e ajudava o Botafogo a conquistar títulos que há muito fugiam. O primeiro Carioca foi conquistado em 1957, em vésperas de Mundial na Suécia.

 

O profissionalismo, sobretudo como se encara o conceito sob luzes modernas, nunca foi o ponto forte de Garrincha. Faltava a treinos, chegava tarde às concentrações e não tinha qualquer problema em ludibriar tudo e todos para garantir escapadinhas sexuais e grandes consumos de álcool em dias consecutivos.

 

O álcool, aliás, foi uma permanente na vida de Garrincha, desde criança, e viria a estar ligado diretamente ao seu declínio, juntamente com os problemas nas articulações dos joelhos.

 

Os tempos áureos de Garrincha foram insuperáveis. Com Pelé, não perdeu um único jogo ao serviço da seleção brasileira. Em 1958, depois de ser guardado nos dois primeiros jogos, abriu o livro e tornou-se uma figura decisiva no primeiro título. Quatro anos depois, já em ponto alto do romance com a artista Elza Soares, com quem viria a casar, prometeu o bicampeonato e entregou-o… sem dificuldades.

 

Espiral de problemas sem saída à vista

Elza Soares foi o maior amor da sua vida

Garrincha sempre assinou os seus contratos em branco com o Botafogo. Era uma pessoa genuína, humilde e não via grande problema em seguir os exemplos do seu colega Nilton Santos, lateral direito da canarinha. Mas a relação com Elza Soares ajudou a abrir uma caixa de Pandora que viria a revelar-se fatal.

 

A exigência de um contrato mais robusto, logo depois de ter resolvido sozinho o título carioca em 1962, o último que ganhou pelo Botafogo, foi mal vista e o mediatismo do relacionamento com Elza abriu o caminho para que o Brasil tomasse o lado de Nair, a mulher que tinha deixado ao abandono em Pau Grande.

 

Um advogado ganancioso entrou em jogo para defender os interesses da ex-mulher e no processo de divórcio garantiu que viria a tirar a Garrincha tudo o que o jogador pudesse ter no futuro. Os adeptos, magoados pelas exigências salariais e desiludidos com o facto de o ponta direita já não render como no passado – culpa do acentuado consumo de álcool e de um joelho impróprio para consumo – viraram-se contra o futebolista e a sua vida nunca mais foi a mesma.

 

Corinthians e Flamengo destacaram-se entre as equipas que desejaram dar uma nova oportunidade a Garrincha mas o homem já não era o mesmo… e o corpo estava num ponto sem retorno. O futebolista continuava a beber como se o mundo fosse acabar e os problemas financeiros e de saúde eram constantemente resolvidos por quem não esquecia a gratidão que devia a Garrincha. A vida continuou a reservar-lhe surpresas negativas: anos depois de ter atropelado acidentalmente o próprio pai a chegar a Pau Grande, Garrincha teve novo acidente de viação, mas desta vez o caso foi sério e resultou na morte da sogra, a mãe de Elza.

 

Já sem grande razão para viver – e com o futebol profissional a virar-lhe as costas -, Garrincha tentou matar-se em duas ocasiões distintas. Numa, ao deixar o gás aberto. Noutra, ao beber até ficar inconsciente numa banheira cheia de água. Das duas vezes, Elza salvou-lhe a vida.

 

À procura de uma nova vida na Europa

 

Garrincha nunca pareceu perceber que os seus tempos áureos tinham passado. Quando a instabilidade política tomou conta do Brasil, Elza decidiu levar Garrincha para Itália e fazer vários espetáculos em Roma. O futebolista, fiel ao seu passado, e recordando os tempos em que os clubes italianos faziam fila para oferecer milhões ao Botafogo pelo seu passe, acreditou que seria capaz de encontrar uma nova oportunidade.

 

Mas já não era mais do que um espelho partido de si próprio. Bastavam cinco minutos em campo para perceber que havia perdido a sua rapidez, a capacidade para deixar qualquer lateral preso à relva e desequilibrar pelo flanco. Numa das muitas tentativas de encontrar um clube, Garrincha foi a Lisboa, ao Estádio da Luz. Encontrou-se com Eusébio, esteve no relvado a mostrar o que valia, mas o evento não foi mais do que o reencontro de dois amigos. Afinal, estávamos em 1968 e faltavam vários anos até que o Benfica tivesse o primeiro estrangeiro no seu plantel.

 

O regresso ao Brasil foi uma consequência imediata da falta de dinheiro. A espiral destruidora de Garrincha subia de velocidade a cada ano que passava e a constante presença dos amigos de infância, Pincel e Swing, só aumentava as oportunidades de beber álcool até cair.

 

Garrincha começou a tornar-se violento e a evidenciar sintomas de dependência aguda de álcool. Já não era um jogador, era um homem a precisar de ajuda urgente. Amigos e fãs do passado juntaram-se mais do que uma vez para garantir que teria o tratamento necessário mas faltou sempre o mais importante: a vontade de melhorar.

 

Não parava de beber. Por mais que fosse proibido, por mais internamentos que tivesse durante um ano, arranjava sempre uma forma de esconder álcool de quem mais o queria ajudar. Nem mesmo as contratações para jogos de exibição, com enormes prémios de presença, ou cargos para ensinar crianças a jogar futebol, serviram a Garrincha.

 

Mais tarde ou mais cedo, cederia à tentação do álcool. Depois de se separar de Elza, encontrou nova mulher e foi pai pela 14.ª vez (que se tenha conhecimento). Mas, por esta altura, já nem teve tempo para exibir a sua figura paternal. No início de 1983, depois de mais um internamento, o corpo cansou-se de aguentar tantos excessos e desistiu durante a madrugada.

 

O homem estava morto, tinha sido derrotado pelos vícios, pelos excessos, por uma vida que só o futebol havia feito brilhante. Mas Garrincha continua vivo até hoje. Os anos não apagaram a genialidade e a inocência de um homem que foi a alegria do povo quando até o seu aspeto parecia jogar contra si.