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É Desporto

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18 de Fevereiro, 2019

Garrincha. A Alegria do Povo com um final tão infeliz

Rui Pedro Silva

Garrincha pelo Brasil

Chamaram-lhe o anjo das pernas tortas. A perna esquerda era arqueada para fora e a direita para dentro, «como se uma rajada de vento de desenho animado as tivesse vergado para o mesmo lado», escreve Ruy Castro na brilhante biografia de Mané Garrincha, publicada pela primeira vez em 1995.

 

A vida não parecia augurar um destino brilhante para um dos cerca de trinta filhos – não existe um número concreto – que Amaro plantou por Pau Grande, uma terra onde todos trabalhavam numa fábrica (America Fabril) instaurada pelos britânicos. Descendente de uma tribo de índios, Garrincha – alcunha dada por uma irmã por se parecer com o pássaro – beneficiou da forma como o tio, Mané Caieira, se soube educar e tornar um dos homens de maior de confiança dos britânicos. A partir daí, tal como a Amaro uns anos antes, tudo lhe seria permitido, nada lhe ficaria por perdoar.

 

Os primeiros anos de vida foram vividos como um selvagem. De pé descalço e longe de ser uma prioridade da família – no meio de tantos irmãos – fez amizades duradouras e tornou-se um especialista em caçar pássaros e pescar peixes nas imediações de Pau Grande, nos arredores do Rio de Janeiro.

 

O futebol tornou-se a sua maior atração e o talento, apesar das pernas tortas, era indesmentível. Ganhar os jogos seria um objetivo interessante mas para Garrincha o verdadeiro sumo da pelada sempre foi outro: fintar. «A graça estava em driblar, apenas driblar. Estava no futebol em estado selvagem e lúdico, que era como os índios o jogariam, se soubessem», escreveu Ruy Castro.

 

Nascido em 1933, Garrincha foi uma espécie de Vukcevic, o montenegrino que passou pelo Sporting. Gostava de jogar futebol – vivia para isso até – mas vê-lo, ou ouvi-lo, não era com ele. Quando o Brasil perdeu o título mundial para o Uruguai, em 1950, Garrincha tinha ido pescar, sem sequer dar importância à existência do jogo. A vila inundou-se em lágrimas mas o futuro bicampeão mundial achou isso uma estupidez. Afinal, o futebol só era bom para jogar.

 

Garrincha era um pesadelo para os adversários no futebol «clandestino» e demorou até garantir o passaporte para o futebol carioca. E não foi por falta de tentativas. No Vasco da Gama, não o deixaram mostrar o que valia porque teve vergonha de levar as suas chuteiras gastas e proibiram-no de jogar descalço. No Fluminense também não chegou a entrar em campo. Havia muitos jovens para avaliar e Garrincha foi-se embora mais cedo para garantir que não perdia o comboio de regresso a Pau Grande.

 

Finalmente, já com 19 anos, chegou o Botafogo. Já não havia mais forma de fugir. A ideia de um génio das pernas tortas a fazer diabruras por onde quer que passasse tinha passado de ouvido em ouvido e, ao prestar provas numa equipa juvenil do Botafogo, os responsáveis não tiveram dúvidas. Um dia depois, seria a vez de fazer o mesmo entre a equipa sénior e seduzir, sem margem de manobra, treinadores e dirigentes.

 

O medo de perder um talento daquela qualidade foi tanto que o Botafogo se recusou a permitir que Garrincha regressasse a Pau Grande antes de assinar contrato. Levaram-no a almoçar a um restaurante português, conhecido pelos pratos de polvo e bacalhau, mas Garrincha, fingindo ler o menu, foi claro nas suas intenções: arroz, feijão e macarrão, o seu prato preferido.

 

A nova alma do Botafogo

Garrincha

Garrincha era um jogador especial. Na direita do ataque, não precisou de muito tempo para mostrar que era um diabo com a bola, capaz de humilhar qualquer adversário através das suas mudanças de velocidade e fintas de corpo. Podia não ser o jogador mais rápido da equipa, muito menos do futebol carioca, mas aliava as duas capacidades que tinha de forma explosiva.

 

Por esta altura, Garrincha já tinha começado a seguir as pisadas do pai Amaro. Engravidara Nair com a primeira de nove filhas que viria a ter com a sua primeira mulher. No total, foi pai de 14 crianças – apenas três rapazes. Entre eles, um, Neném, jogou no Belenenses e acabou por morrer num acidente de viação em Fafe, em 1992. Outro, um sueco chamado Ulf, foi resultado de uma noite de sexo poucas horas depois de a equipa chegar à Suécia em 1959 durante uma digressão. O apetite sexual herdado do pai começou a manifestar-se tão cedo na vida de Garrincha que a primeira parceira sexual foi uma… cabra.

 

Dentro de campo, Garrincha tornou-se a Alegria do Povo, o anjo das pernas tortas, o diabólico ponta direita que servia de abre-latas e ajudava o Botafogo a conquistar títulos que há muito fugiam. O primeiro Carioca foi conquistado em 1957, em vésperas de Mundial na Suécia.

 

O profissionalismo, sobretudo como se encara o conceito sob luzes modernas, nunca foi o ponto forte de Garrincha. Faltava a treinos, chegava tarde às concentrações e não tinha qualquer problema em ludibriar tudo e todos para garantir escapadinhas sexuais e grandes consumos de álcool em dias consecutivos.

 

O álcool, aliás, foi uma permanente na vida de Garrincha, desde criança, e viria a estar ligado diretamente ao seu declínio, juntamente com os problemas nas articulações dos joelhos.

 

Os tempos áureos de Garrincha foram insuperáveis. Com Pelé, não perdeu um único jogo ao serviço da seleção brasileira. Em 1958, depois de ser guardado nos dois primeiros jogos, abriu o livro e tornou-se uma figura decisiva no primeiro título. Quatro anos depois, já em ponto alto do romance com a artista Elza Soares, com quem viria a casar, prometeu o bicampeonato e entregou-o… sem dificuldades.

 

Espiral de problemas sem saída à vista

Elza Soares foi o maior amor da sua vida

Garrincha sempre assinou os seus contratos em branco com o Botafogo. Era uma pessoa genuína, humilde e não via grande problema em seguir os exemplos do seu colega Nilton Santos, lateral direito da canarinha. Mas a relação com Elza Soares ajudou a abrir uma caixa de Pandora que viria a revelar-se fatal.

 

A exigência de um contrato mais robusto, logo depois de ter resolvido sozinho o título carioca em 1962, o último que ganhou pelo Botafogo, foi mal vista e o mediatismo do relacionamento com Elza abriu o caminho para que o Brasil tomasse o lado de Nair, a mulher que tinha deixado ao abandono em Pau Grande.

 

Um advogado ganancioso entrou em jogo para defender os interesses da ex-mulher e no processo de divórcio garantiu que viria a tirar a Garrincha tudo o que o jogador pudesse ter no futuro. Os adeptos, magoados pelas exigências salariais e desiludidos com o facto de o ponta direita já não render como no passado – culpa do acentuado consumo de álcool e de um joelho impróprio para consumo – viraram-se contra o futebolista e a sua vida nunca mais foi a mesma.

 

Corinthians e Flamengo destacaram-se entre as equipas que desejaram dar uma nova oportunidade a Garrincha mas o homem já não era o mesmo… e o corpo estava num ponto sem retorno. O futebolista continuava a beber como se o mundo fosse acabar e os problemas financeiros e de saúde eram constantemente resolvidos por quem não esquecia a gratidão que devia a Garrincha. A vida continuou a reservar-lhe surpresas negativas: anos depois de ter atropelado acidentalmente o próprio pai a chegar a Pau Grande, Garrincha teve novo acidente de viação, mas desta vez o caso foi sério e resultou na morte da sogra, a mãe de Elza.

 

Já sem grande razão para viver – e com o futebol profissional a virar-lhe as costas -, Garrincha tentou matar-se em duas ocasiões distintas. Numa, ao deixar o gás aberto. Noutra, ao beber até ficar inconsciente numa banheira cheia de água. Das duas vezes, Elza salvou-lhe a vida.

 

À procura de uma nova vida na Europa

 

Garrincha nunca pareceu perceber que os seus tempos áureos tinham passado. Quando a instabilidade política tomou conta do Brasil, Elza decidiu levar Garrincha para Itália e fazer vários espetáculos em Roma. O futebolista, fiel ao seu passado, e recordando os tempos em que os clubes italianos faziam fila para oferecer milhões ao Botafogo pelo seu passe, acreditou que seria capaz de encontrar uma nova oportunidade.

 

Mas já não era mais do que um espelho partido de si próprio. Bastavam cinco minutos em campo para perceber que havia perdido a sua rapidez, a capacidade para deixar qualquer lateral preso à relva e desequilibrar pelo flanco. Numa das muitas tentativas de encontrar um clube, Garrincha foi a Lisboa, ao Estádio da Luz. Encontrou-se com Eusébio, esteve no relvado a mostrar o que valia, mas o evento não foi mais do que o reencontro de dois amigos. Afinal, estávamos em 1968 e faltavam vários anos até que o Benfica tivesse o primeiro estrangeiro no seu plantel.

 

O regresso ao Brasil foi uma consequência imediata da falta de dinheiro. A espiral destruidora de Garrincha subia de velocidade a cada ano que passava e a constante presença dos amigos de infância, Pincel e Swing, só aumentava as oportunidades de beber álcool até cair.

 

Garrincha começou a tornar-se violento e a evidenciar sintomas de dependência aguda de álcool. Já não era um jogador, era um homem a precisar de ajuda urgente. Amigos e fãs do passado juntaram-se mais do que uma vez para garantir que teria o tratamento necessário mas faltou sempre o mais importante: a vontade de melhorar.

 

Não parava de beber. Por mais que fosse proibido, por mais internamentos que tivesse durante um ano, arranjava sempre uma forma de esconder álcool de quem mais o queria ajudar. Nem mesmo as contratações para jogos de exibição, com enormes prémios de presença, ou cargos para ensinar crianças a jogar futebol, serviram a Garrincha.

 

Mais tarde ou mais cedo, cederia à tentação do álcool. Depois de se separar de Elza, encontrou nova mulher e foi pai pela 14.ª vez (que se tenha conhecimento). Mas, por esta altura, já nem teve tempo para exibir a sua figura paternal. No início de 1983, depois de mais um internamento, o corpo cansou-se de aguentar tantos excessos e desistiu durante a madrugada.

 

O homem estava morto, tinha sido derrotado pelos vícios, pelos excessos, por uma vida que só o futebol havia feito brilhante. Mas Garrincha continua vivo até hoje. Os anos não apagaram a genialidade e a inocência de um homem que foi a alegria do povo quando até o seu aspeto parecia jogar contra si.

14 de Fevereiro, 2019

Tetyukhin. A família real do voleibol russo passou por Lisboa

Rui Pedro Silva

Sergey Tetyukhin passou o talento do voleibol para os filhos

Chama-se Pavel e chegou à Luz com o número oito nas costas. O zona 4 russo do Belogorie Belgorod, que eliminou o Benfica no set de ouro da eliminatória dos quartos-de-final da CEV Challenge Cup, passou praticamente ao lado do encontro.

 

Só por uma vez esteve em campo, entrando para servir, já no decisivo set. Fez um serviço, a equipa ganhou o ponto, com o jovem de 18 anos a salvar uma bola após o ataque encarnado, e repetiu o gesto, desta vez sem sucesso coletivo. Foi substituído e, minutos mais tarde, festejou o apuramento para as meias-finais.

 

A ausência de tempo de jogo não é sinónimo de falta de qualidade. Pelo contrário. Pavel está na órbita do estrelato no voleibol russo há pelo menos dois anos e é considerado uma futura estrela. Internacional nos escalões jovens pela Rússia, é um de três irmãos que carregam o peso do nome Tetyukhin.

 

São todos filhos de Sergey, agora com 43 anos, e visto como um dos melhores jogadores na história do voleibol. Nascido a 23 de setembro de 1975, na república do Uzbequistão, não demorou muito até começar a dar nas vistas, já como internacional russo.

 

O início da carreira profissional, em 1992, começou precisamente em Belgorod, e terminou na época passada, no clube agora representado pelo filho. A passagem de testemunho é tão real que Pavel até enverga agora o número do pai: o oito.

 

Seguir as pisadas de Sergey será uma utopia. Para Pavel e para a esmagadora maioria dos jogadores de voleibol. Entre 1996 e 2016, o oposto fez 450 jogos pela seleção e construiu um palmarés praticamente inigualável.

Esteve em todos os Jogos Olímpicos com a Rússia entre 1996 e 2016

Venceu duas vezes a Taça do Mundo, uma vez a Liga Mundial e conquistou um total de 19 medalhas entre Mundiais, Taças do Mundo, Ligas Mundiais, Europeus e Ligas Europeias. Mas foi nos Jogos Olímpicos que fez verdadeiramente a diferença.

 

Faz parte de uma elite masculina, juntamente com Samuele Papi e Sérgio Santos, que conquistou quatro medalhas olímpicas durante a carreira. Mas se o italiano tem duas pratas e dois bronzes e o brasileiro dois ouros e duas pratas, o russo é o único que pode dizer que saboreou os três lugares do pódio: foi vice-campeão em Sydney-2000, terceiro classificado em Atenas-2004 e Pequim-2008 e saiu de Londres-2012 com o tão ansiado título olímpico.

 

Em 2016, no Rio de Janeiro, ficou pertíssimo de alcançar a glória isolada mas a Rússia perdeu para os Estados Unidos no jogo de atribuição do terceiro lugar, depois de desperdiçar uma vantagem de dois sets. Tinha 40 anos e disse adeus a às experiências olímpicas que tinham começado precisamente nos Estados Unidos, em Atlanta-1996, também com um amargo quarto lugar (1-3 vs. Jugoslávia).

 

O título olímpico de 2012 pôs fim a uma carreira de sofrimento que chegou a parecer hipotecada depois de um acidente de viação em 2000, quando jogava em Itália. Partiu a pélvis, foi obrigado a uma longa recuperação e o clube, o Parma, perdeu a confiança na sua qualidade.

 

Tetyukhin provou com o passar do tempo que estavam errados. «Sabia que podia vencer o ouro», disse em 2012. «De outra forma não teria tentado estar aqui, já devia ter abandonado a seleção. Mas agora tenho esta medalha. Agora posso abandonar», confessou no calor da glória, apenas para mais tarde garantir que também estaria no Rio de Janeiro.

 

O verdadeiro adeus só chegou no ano passado, aos 42 anos. «Esta é a minha última época», disse o então jogador do Belogorie Belgorod. Porta-estandarte da Rússia em 2016, foi uma referência incontornável do voleibol russo.

 

«Todos os atletas têm de terminar a carreira, independentemente do valor que tenham. Chega uma altura em que temos de dizer basta. O momento chegou para mim e estou bem com isso», admitiu.

 

O nome Tetyukhin não chegou a arrefecer, nem na equipa de Belgorod nem na seleção. Além de Pavel, também Ivan é um jogador que dá nas vistas e, agora com 21 anos, jogou ao lado do pai na época de despedida.

13 de Fevereiro, 2019

Major Taylor. O afro-americano que foi rei no ciclismo

Rui Pedro Silva

Major Taylor

A génese do talento de jogador de futebol no Brasil – e um pouco por todo o mundo - está muito associada à falta de condições e pobreza. Desde crianças, o cérebro percebe que a bola de futebol é a sua melhor amiga e é a partir dela que poderá conhecer o mundo e deixá-lo caído a seus pés.

 

A técnica é uma batalha diária. Mais do que contra os outros, a criança joga contra si mesma, tentando ser melhor do que no dia anterior. Mais toques sem cair, mais toques alternados entre pé direito e pé esquerdo, mais truques atrás de truques para ludibriar quem quer que lhe apareça à frente.

 

O futebol é um desporto único para propiciar este fenómeno mas houve, noutros tempos, quem o tenha feito com uma bicicleta. Marshall Walter Taylor, nascido em 1878, era uma entre oito crianças de uma família afro-americana do Indiana que tinha pouco dinheiro no final do século XIX. A amizade com uma família branca, porém, lançou as sementes daquilo que seria o futuro.

 

Amigo inseparável de um dos filhos, foi brindado com uma bicicleta. O seu mundo mudou. A partir daquele momento, o dia era feito para o que conseguia fazer montado no novo brinquedo. Mais do que andar de um sítio para o outro, Marshall tornou-se um génio talentoso. Não havia nada que não conseguisse fazer.

 

Tom Hay tinha uma loja de bicicletas e viu no talento de Marshall uma oportunidade para fazer crescer o seu negócio. A troco de seis dólares semanais – e recebendo uma nova bicicleta avaliada em 35 dólares – Marshall começou a servir de empregado de limpeza. Mas, mais importante ainda, era a tarefa na qual tinha de ir para a rua, em frente à loja, exibir as suas acrobacias a quem quer que passasse.

 

Foi também aqui que ganhou a alcunha de Major. Para tornar o momento mais fascinante, completava as suas acrobacias vestido com um uniforme militar. Marshall tinha ficado para trás: daqui em diante seria Major Taylor à conquista do mundo.

 

O início no ciclismo acompanhado de racismo

Major Taylor

O sucesso com Tom Hay proporcionou uma mudança de carreira rápida. Quando tinha 13 anos, foi inscrito pelo patrão numa corrida de dez milhas. Ganhou com seis segundos de vantagem e deu início a uma carreira brilhante. Depois de dar nas vistas, mudou de loja e foi usado para ensinar outras pessoas a andar de bicicleta. Foi também aí que conheceu Louis Munger, o homem que o convenceu a sair do Indiana.

 

O racismo e o preconceito tinham atingido novos níveis. Ninguém aceitava competir contra o Major Taylor numa prova e os organizadores começaram a bani-lo das competições. Quando conseguia participar, estava sujeito a ataques do público e dos adversários. Viam-no como uma ameaça, alguém que não devia estar ali, mas o então ainda adolescente só se preocupava com o ciclismo e reagiu sempre com desportivismo. «A vida é demasiado curta para guardar rancor no coração», escreveu na sua autobiografia, publicada em 1928.

 

A solução sugerida por Munger implicava ir viver para Worcester, no Massachusetts. À primeira vista, foi perfeito. «Não precisei de estar em Worcester muito tempo até perceber que não havia o mesmo preconceito entre ciclistas como havia em Indianápolis», disse, ignorando os problemas que continuou a sentir para competir nacionalmente e, sobretudo, dos obstáculos que os próprios vizinhos representaram.

 

Quando competia, o sucesso era irrefutável. A 30 de junho de 1895 foi o único atleta a completar uma corrida de 121 quilómetros. Mais tarde, depois de fazer 18 anos, abraçou o ciclismo profissional e foi o único afro-americano a participar na corrida de seis dias no Madison Square Garden, em Nova Iorque.

 

O esforço exigido era épico: à antiga, o único objetivo era completar o máximo número de voltas durante as 24 horas de seis dias. Taylor desistiu no quinto dia, cansado física e mentalmente, queixando-se da falta de segurança. Mesmo assim, chegou para terminar na oitava posição.

 

Um título mundial inédito

Major Taylor

A experiência numa prova de seis dias foi marcante o suficiente para perceber que provas longas não eram para ele. Concentrou-se em distâncias mais curtas e a recompensa chegou no Mundial realizado em Montreal, no Canadá, em 1899.

 

Na prova da milha, Major Taylor foi o mais rápido e conquistou o primeiro título mundial de um afro-americano no ciclismo. Em todas as modalidades, foi apenas o segundo, sucedendo ao pugilista George Dixon, que conquistou o cinturão de campeão em pesos-penas em três ocasiões diferentes durante a década de 90.

 

A morte da mãe acabou por afetar a carreira de forma irreparável. Tornou-se um católico devoto e deixou de competir aos domingos, dias em que a maior parte das provas – sobretudo finais de Mundiais – eram realizadas. Quando voltou a disputar um título, em 1909, em Copenhaga, já não era o mesmo. Competir na Europa também foi um problema mas os organizadores renderam-se à fama deste militar e alguns alteraram a calendarização dos seus eventos apenas para ter Major Taylor em pista.

 

Um fim de vida em queda vertiginosa

 

Quando acabou a carreira, em 1910, teria angariado cerca de cem mil dólares em prémios. De muito famoso passou a alguém ignorado e passou a viver nos intervalos da chuva. Não esbanjou o dinheiro mas foi vítima natural do crash da bolsa em 1929, deixando apenas de pé o investimento que tinha feito para publicar sua própria biografia no ano anterior.

 

Sem ter onde viver ou como resistir, foi para Chicago, arrendou um quarto na YMCA e dedicou-se à venda ambulante do seu livro. Por esta altura já ninguém queria saber. Quando morreu em 1932, vítima de ataque cardíaco, ninguém reclamou o corpo na morgue. Não foi notícia. Não teve família. A ex-mulher e a filha faziam parte do passado.

 

Agora, em declarações ao New York Times, a sua bisneta lamenta que tudo tenha acontecido desta forma. «Foi um acontecimento trágico para alguém que foi tão aclamado em vida. A minha avó sempre odiou que ele tivesse morrido desta forma», disse.

 

O obituário publicado no New York Times este mês, enquadrado num trabalho que pretende homenagear afro-americanos que não mereceram o devido destaque no jornal no século passado não tem dúvidas: «Major Taylor foi, simultaneamente, o LeBron James e o Jackie Robinson da sua era».

12 de Fevereiro, 2019

O dilema moral da goleada

Rui Pedro Silva

Benfica marcou dez ao Nacional

O dez-zero no Benfica-Nacional, a fazer lembrar um sketch dos Gato Fedorento mas sem golos do tratador de relva, teve o condão de acordar o debate moral sobre a goleada. Qual é a linha que separa o profissionalismo da humilhação? O desejo obsessivo de marcar da fogueira do espezinhamento?

 

Não vi o jogo e só soube do resultado depois da hora de almoço do dia seguinte mas os argumentos dos dois lados continuavam vivos nas redes sociais. Afinal de contas, são jogadores profissionais e não haveria humilhação maior do que sentir que do outro lado estava um conjunto que tinha deixado o esforço de lado apenas por uma questão de pena. E mais: isto é uma competição que pode ser decidida nos pormenores e a diferença de golos é um dos primeiros critérios.

 

Do outro lado, da falange de adeptos que imploraria misericórdia a Commodus para salvar a vida do, agora gladiador, outrora general Maximus Decimus Meridius, o argumento recaía na empatia perante os esmagados e respeito numa altura que o jogo estava mais do que decidido e os três pontos a caminho da homologação em sede da Liga.

 

Tenho dificuldade em aceitar uma visão unidimensional da goleada, enquanto conceito abstrato, no futebol, seja ele profissional ou amador. Uma goleada robusta pode ser atingida sem tiques de profissionalismo – mesmo adaptado aos escalões de formação – e um triunfo pela margem mínima até pode ter tiques de malvadez e humilhação superiores a um dez-zero.

 

É o caminho para a goleada que resolve a diferença. Há mais de vinte anos, havia um jogo para a Sega Saturn chamado Sega Worldwide Soccer. À semelhança de tantos outros, o hábito fazia com que fossem encontrados formas de viciar o próprio jogo para ganhar vantagem. Não demorámos muito a perceber que um lançamento em profundidade da zona central do meio-campo, ligeiramente descaído para qualquer um dos lados, provocaria uma saída errada do guarda-redes, socando a bola para o ar e permitindo que o cabeceamento do avançado – que tinha sempre vantagem sobre o defesa – acabasse caprichosamente na rede da baliza.

 

Os golos seguiam-se em catadupa. Não havia futebol. Era apenas uma forma pomposa de garantir um resultado folgado, viciando classificações e listas de melhores marcadores. Conseguíamos estar jogos inteiros sempre com o mesmo ritual: recuperar a bola, fazer o chuveirinho para a área, cabeceamento e golo. Eram uns atrás dos outros.

 

As goleadas nos escalões de formação

 

Lembro-me – demasiadas vezes – de uma coisa que disse durante um jogo de sub-17, depois de termos marcado mais um golo (já lhes tinha perdido a conta) a uma equipa modesta da zona de Carnaxide. A primeira parte ainda não ia a meio e já se adivinhava um resultado próximo do que seria o 15-2 final. «Vamos acalmar um pouco agora», disse aos meus colegas, mesmo que não tenha tido grande efeito prático.

 

Ali, naquele momento, o nosso futebol estava a buscar apenas o resultado gordo, a humilhação (ainda que adolescentes não pensem dessa forma). As fraquezas do adversário tinham sido detetadas – eram sobretudo mais lentos – e os nossos lances de ataque perdiam-se sempre na mesma rotina: velocidade num flanco, superioridade numérica, cruzamento e golo. Já tínhamos deixado de jogar futebol, de praticar o estilo de jogo que treinávamos semana após semana e que testaríamos contra os adversários mais fortes. Tínhamos sucumbido à tentação do golo, descobrindo um atalho e repetindo inúmeras vezes a tecla que nos tinha mostrado como viciar aquele jogo.

 

O meu repto não tinha sido uma falta de respeito pelo adversário, antes uma chamada de atenção para o respeito próprio. Tínhamos de ser iguais a nós mesmos e não monstros em metamorfose seduzidos pelo pecado capital da luxúria de terminar aqueles 80 minutos com uma goleada histórica, gritando a sete ventos durante a semana quantos golos cada um tinha marcado.

 

Mentalidades profissionais

Alemanha goleou Brasil no Mundial-2014

O futebol profissional é diferente. As diferenças, existindo, não são tão claras como nos escalões de formação das associações distritais em Portugal. Mas as goleadas continuam a acontecer. Umas por acidente – onde tudo corre bem a uma equipa ao mesmo tempo em que tudo corre mal a outra -, outras por uma clara mentalidade mecânica.

 

Não é à toa que Bayern Munique e Alemanha tenham sido protagonistas de tantas goleadas memoráveis. O alemão, enquanto jogador, é como um informático que encara o problema como um golo. A cada festejo, tradicionalmente pouco efusivo, os jogadores desligam e voltam a ligar o sistema. São máquinas desenhadas para encarar cada lance da mesma forma, independentemente do resultado. As goleadas aparecem como consequência do profissionalismo máximo.

 

Outras, como as do Real Madrid e Barcelona – ou mesmo de muitas outras equipas latinas ou com sangue predominantemente latino – acontecem pelo talento. Pelo espírito do futebol de rua, pela personalidade traquina de quem vive para as partidas e faz de um jogo destes um momento imortal.

 

A rota para a goleada

 

Onde se encaixa o Benfica-Nacional não sei. Repito, não vi o jogo. Mas sei que não há razão para fazer deste jogo um pretexto para decretar o óbito da competitividade do futebol português – ainda que esse seja um problema -, muito menos para gritar falta (de respeito, personalidade ou empatia) de qualquer um dos lados.

 

O Benfica goleou porque aconteceu. Não foi uma questão de profissionalismo ou falta dele, muito menos de uma obsessão por saber que a diferença de golos pode vir a fazer a diferença no futuro. O Benfica goleou porque teve os ventos a seu favor e o Nacional teve as desfortunas a vir na sua direção. Juntos, combinaram um cocktail explosivo que desenhou um jogo histórico.

 

O Benfica é mais superior ao Nacional do que a Alemanha era em relação ao Brasil, do que o Manchester City era em relação ao Chelsea, ou do que Celta e Sporting eram em relação ao próprio Benfica em 1986 e 1999. As goleadas aconteceram… e pronto.

 

Nada implica que haja uma falta de profissionalismo. Mesmo que não faça sentido, há uma explicação natural para tanta vez se dizer que o 2-0 é o resultado mais traiçoeiro do futebol. É a altura em que os jogadores perdem um patamar de concentração por sentir uma rede extra. Com o avolumar da goleada, passa-se o mesmo. Entre os que marcam, cresce a confiança e a liberdade para fazer tudo bem, entre os que sofrem há uma incapacidade mental para reagir e estancar o problema.

 

Sejam jogadores do Nacional, Benfica, Brasil, Sporting, FC Porto ou Chelsea. Acontece e ninguém está imune. Verdade seja dita, estes jogos, sobretudo este 10-0, têm os ingredientes para se tornarem mais imortais do que qualquer que venha a ser o campeão no final da temporada (excepto o Sp. Braga, vá).

 

Porque o futebol é um livro de histórias. E, muitas vezes, o jogo é superior ao título. O acontecimento isolado, com princípio, meio e fim que se conseguem identificar perfeitamente na narrativa, é mais especial do que um desfecho que se repete anualmente – com algumas exceções. Não é por acaso que raramente as melhores histórias dos Mundiais ou dos Europeus pertencem aos seus vencedores. São os golos e os jogos memoráveis que constroem as lendas.

 

Uma goleada não o é apenas porque sim. Todas têm uma história para contar, um clima, uma narrativa e um clímax. A do Benfica veio tornar a história do futebol português mais rica. Afinal, desde que me conheço como gente, não me lembro de alguma vez uma equipa chegar aos dez golos no campeonato e, em todas as competições, só me recordo de um 12-0 ao Marinhense. 

01 de Fevereiro, 2019

Gascoigne. O irredutível inglês que vestiu a camisola da Lazio

Rui Pedro Silva

Paul Gascoigne com as cores da Lazio

Os italianos apaixonaram-se por Paul Gascoigne durante o Mundial-1990. Nas meias-finais contra a República Federal da Alemanha, o então jogador do Tottenham teve uma entrada sobre Thomas Berthold no prolongamento e o brasileiro José Ramiz Wright mostrou-lhe o amarelo. O sonho da final continuava em aberto mas Gazza percebeu naquele momento que o Mundial para ele tinha acabado – ia estar suspenso.

 

Passam poucos segundos e começa a engolir em seco. Gary Lineker conforta-o e olha para o banco, na direção de Bobby Robson, e avisa o selecionador de que Gascoigne não está bem. Tinha razão: o médio começa a chorar quase compulsivamente invadido pelo desespero.

 

Nos penáltis, a Inglaterra acabaria por perder – Gascoigne não foi chamado a marcar – mas aquela imagem tornar-se-ia imortal. Um ano depois, a Lazio apareceu em Londres para o contratar. A época ainda não tinha chegado ao fim mas os italianos não queriam perder tempo e chegaram a acordo por 6,7 milhões de libras.

 

O destino adiou a aventura no continente quando Gascoigne sofreu uma rotura dos ligamentos cruzados do joelho na final da Taça de Inglaterra com o Nottingham Forest. A lesão fê-lo falhar a época seguinte mas a Lazio não desistiu e chegou a um novo acordo com o Tottenham, por 5,5 milhões de libras.

 

A paragem na carreira permitiu que se deslocasse a Itália para conhecer melhor o clube. Foi então que se deu o primeiro choque com a realidade. Glenn Roeder, antigo companheiro de Gazza no Newcastle, acompanhou-o na altura e não tinha dúvidas: «Nos anos 90, o campeonato italiano era a grande liga para testar o talento e o Paul tinha tudo para ter sucesso. Tinha técnica e visão de jogo. Construía e marcava golos. De certa forma, era feito para o futebol italiano. O grande problema eram as lesões».

 

Gascoigne e Roeder assistiram ao encontro particular contra o Real Madrid e acompanharam a deslocação da Lazio ao terreno do Andria. Os rituais da equipa surpreenderam-no, com vinho antes do jogo e café no regresso ao hotel, após o encontro. «Gazza não conseguiu perceber aquilo, para ele era depois do jogo que se devia beber vinho, para celebrar.»

Gascoigne com Boban: o talento abundava no futebol italiano

A estreia chegou finalmente em 1992. O Channel 4 comprou os direitos de transmissão da Serie A e mais de três milhões assistiram ao jogo com a Sampdoria. Com um detalhe: Gascoigne estava lesionado. Só depois, a 27 de setembro, fez o primeiro jogo pela Lazio, contra o Genoa.

 

A personalidade e o talento de Gascoigne fizeram dele um sucesso imediato – dentro de campo estreou-se a marcar no dérbi com a Roma (faz o golo do empate aos 89 minutos); fora dele, ia somando episódios desde comer as barras de Mars que os adeptos atiravam para o relvado até deixar uma cobra morta no saco de Roberto DiMatteo. «Nunca vi alguém saltar tanto», brincou Gazza.

 

Num outro episódio, a claque da Atalanta brindou-o com um enorme cartaz que tinha uma garrafa de cerveja gigante e uma inscrição que dizia: «Esta é para ti, Gazza». Toda a dimensão de Gascoigne no futebol italiano era fora do normal e as partidas tornaram-se frequentes. Afinal, este foi também o homem que chegou a esvaziar os pneus do Porsche de Aron Winter e que tinha o hábito pouco saudável de aparecer nu nos jantares da equipa.

 

O momento mais polémico terá sido, ainda assim, quando Paul Gascoigne respondeu à insistência de um jornalista com um simples e sonoro arroto. Os jogadores da Lazio estavam proibidos de falar à imprensa e o inglês decidiu ser original. O médio foi multado e o caso foi bastante escrutinado em Itália mas para a claque, a ação foi memorável. «Damos nota dez ao arroto. A culpa é do jornalista: se sabe que os jogadores estão em blackout, para quê insistir?», comentou um adepto.

 

A novela continuou até abandonar o futebol italiano em direção ao Rangers em 1995. Entre críticas à sua forma física - ganhava peso com muita facilidade -, os problemas físicos mais sérios (partiu a perna ao tentar roubar a bola a Alessandro Nesta durante um treino) e as polémicas fora de campo, Gascoigne tornou-se mais um obstáculo à tranquilidade da Lazio do que uma mais-valia no relvado.

 

E se o seu último treinador, Zdenek Zeman, não foi à bola com a personalidade do inglês, o primeiro, Dino Zoff, deixou-se conquistar. «Adorava aquele rapaz. Era um génio mas arrancava os cabelos à conta dele. O único problema é que foram poucas as vezes que pudemos comprovar o seu talento, destruiu tudo com a bebida e a comida. Ele comia gelado ao pequeno-almoço e bebia cerveja ao almoço. Quando estava lesionado, inchava como uma baleia. Mas como jogador? Fabuloso! Fabuloso!».