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É Desporto

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10 de Janeiro, 2019

Futebol dos 90. O Farense de 1997/98

Rui Pedro Silva

Farense 1997/98

Falar do Farense na década de 90 é falar de Paco Fortes. O pequeno treinador espanhol, que tinha chegado a Portugal ainda como jogador, para representar a equipa algarvia em 1984, era um espetáculo dentro do próprio espetáculo. O seu carisma e garra, apesar da baixa estatura (1,68 metros), tornaram-se uma ideia indissociável dos jogos do Farense no São Luís.

 

Não havia transmissão televisiva, relato na rádio ou resumo em que não fosse referida a forma como Paco Fortes incentivava os seus jogadores, quase sempre com um bigode farto e esbracejando vivamente com um casaco feito à medida para quem sempre sonhou ser jogador de basquetebol mas demorou muito tempo até poder entrar em montanhas-russas.

 

Paco Fortes era a alma farense. Foi ele que levou a equipa à final da Taça de Portugal e que subiu a equipa ao primeiro escalão em 1990, que garantiu um apuramento europeu e que bateu o recorde de seis presenças consecutivas no primeiro escalão. Em 1997, o espanhol estava preparado para atacar a Liga Portuguesa pela oitava edição seguida.

 

O Verão garantiu o melhor reforço que os adeptos podiam desejar. Depois de duas temporadas na Luz, Hassan, o goleador marroquino que tantas saudades tinha deixado com um rasto de golos e destruição das defesas adversárias, voltava para reassumir o trono do reino dos Algarves.

 

As notícias não foram exclusivamente boas. Peter Rufai, o príncipe nigeriano, tinha dado o salto a meio da época anterior para o futebol espanhol (Hércules) e, pela primeira vez desde 1994, a época ia começar com outro guarda-redes titular. Numa lógica de rei morto, rei posto, a posição foi ganha por um imperador. Marco Aurélio, contratado ao Rio Ave, mostrou ser uma alternativa digna e lançou raízes sólidas de uma carreira que só iria acabar no Restelo em 2006/07, com Jorge Jesus.

 

As saídas significativas não se ficaram por aí: Raul Barbosa saiu para Felgueiras, Paiva para Guimarães, Tozé para Barcelos e o mítico Helcinho, um jogador que parecia combinar as características físicas de Rui Barros com as de Domínguez, foi para Espanha.

 

O reforço do plantel, sobretudo no meio-campo, foi uma prioridade e chegaram jogadores com experiência: Mauro Soares, ex-Belenenses e Sporting, foi recrutado no Brasil e Besirovic chegou de Espinho.

 

Início auspicioso não foi continuado

Hassan é sinónimo de Farense

O sorteio das primeiras jornadas não foi fácil para a equipa algarvia. Receber o Sporting a abrir, algo que já tinha acontecido em 1994, seria sempre uma tarefa difícil mas o Farense de Paco Fortes impôs-se e sacou um nulo. Para a história, ficou o primeiro onze daquela temporada: Marco Aurélio, Carlos Costa, Camilo, Paulo Sérgio, Pedro Miguel, Paixão, Mauro Soares, Besirovic, Hajry, Djukic e Hassan.

 

A expulsão do avançado marroquino, por duplo amarelo, foi a pior notícia possível mas nem assim os algarvios perderam o sentido da baliza na viagem até Braga para a segunda jornada. Paco Fortes repetiu as opções que podia e a alternativa a Hassan, o irreverente Bráulio, bisou com dois golos em cinco minutos no empate (2-2).

 

Quando a equipa de Paco Fortes somou dois triunfos nos dois jogos seguintes (3-0 no Restelo e 1-0 ao Desp. Chaves), a época estava a assumir contornos otimistas. À partida para a quinta jornada, o Farense era quarto classificado com oito pontos, a quatro do líder FC Porto e à frente de Sporting (7) e Benfica (4). Mas o êxito foi sol de pouca dura, mesmo no Algarve. Até à passagem de ano, os algarvios só voltaram a vencer um jogo (1-0 ao Varzim no São Luís com um golo de Hassan), num total de oito pontos. Pelo meio, o sorteio da Taça também não foi amigável e acabaram eliminados pelo Benfica na Luz (4-2).

Farense foi eliminado na Luz

A série negativa não foi suficiente para empurrar a equipa para os últimos lugares. Na primeira jornada de 1998, o Farense era 12.º com 16 pontos, enquanto os lugares de descida eram ocupados pelo Boavista (13), Belenenses (9) e Desp. Chaves (8).

 

O novo ano trouxe uma nova vida ao Farense. A derrota pesada em Setúbal a abrir (4-1) foi um percalço sem repetição numa série positiva que durou até ao início de março. Durante esse período, em nove jogos, os algarvios só voltaram a perder um jogo (em Alvalade com o Sporting, com Paulo Alves a fazer o decisivo 3-2 a três minutos do fim), somaram um total de 14 pontos e foram notícia ao travar o Benfica em casa: 1-1 num jogo “decidido” aos oito minutos depois de golos de Tahar (4’) e Marco Nuno (8’).

 

Sofrer para garantir a permanência

 

Faltavam dez jornadas para o final do campeonato e o futuro permanecia uma incógnita. Os algarvios tinham conseguido uma boa série de jogos sem derrotas mas o excesso de empates (12 em 24 jogos eram o máximo registado naquela época) não tinha ajudado a cavar um fosso suficiente para o último lugar de descida, ocupado então pela Académica, com 24 pontos. O Farense tinha 30.

 

O pior período do Farense vinha a caminho e na pior altura possível, uma vez que Hassan já estava lesionado desde a jornada 19 e só voltaria a jogar no penúltimo encontro. Nos sete jogos seguintes, registaram uma série de cinco derrotas consecutivas, num total de seis. Pelo meio, pontuaram apenas uma vez, na receção ao Leça (1-1).

 

Durante este período, Paco Fortes foi apostando num ataque mais móvel, alternando combinações que incluíam Ramos, Marco Nuno, Bráulio, Zezinho, Pintassilgo, Youssef e Djukic.

 

O calendário entrou em Maio, faltavam apenas três jogos, os dois primeiros lugares já tinham sido assegurados por FC Porto e Benfica e os lugares de descida estavam ao rubro. O Belenenses já tinha sido despromovido, mas Desp. Chaves (28), Varzim (29), Farense (31) e Académica (32) tinham uma margem reduzida para garantir a permanência.

 

Paco Fortes juntou esforços e, na antepenúltima jornada, guiou a equipa ao triunfo no São Luís sobre o V. Setúbal (2-0 com golos de Ramos e Mauro Soares). Os três pontos foram valiosos, sobretudo porque Varzim e Académica perderam. Com seis pontos em disputa, os algarvios pareciam ter mais margem para respirar.

 

As aparências iludiram. Na penúltima jornada, os algarvios podiam ter fechado as contas no jogo em Coimbra mas perderam com a Académica (1-0, João Tomás). O Varzim imitou o resultado e ficou automaticamente despromovido mas o Desp. Chaves surpreendeu e foi vencer a Setúbal por 2-1, graças a um bis de Míner. Conclusão: faltava descer uma equipa e havia cinco equipas separadas por três pontos – V. Setúbal e Campomaiorense (37), Académica (35), Farense e Desp. Chaves (34). Por agora, a vantagem no confronto direto sobre os flavienses fazia a diferença.

 

A última jornada foi vivida ao limite. Se o Farense ia receber um Rio Ave cómodo no meio da tabela e sem nada pelo que lutar, os outros dois maiores aflitos iam jogar entre si: Desp. Chaves-Académica em Trás-os-Montes.

 

Até ao apito final, tudo podia acontecer. Djukic marcou para o Farense antes do intervalo e o duelo do norte continuava sem golos. Mas, a qualquer momento, um golo do Rio Ave aliado a um do Desp. Chaves podia empurrar o Farense para a segunda divisão.

 

Não aconteceu. Os resultados não sofreram alterações, o Farense respirou de alívio e terminou no 14.º lugar com 37 pontos, à frente da Académica com 36 e do despromovido Desp. Chaves com 35.

 

Relatório e contas da temporada

Paco Fortes no seu estilo inconfundível

O balanço final acabou por ser positivo. Marco Aurélio foi o único totalista do plantel e o reforço Besirovic foi o jogador de campo mais utilizado por Paco Fortes. Contratado para fazer golos, Hassan não desiludiu e assumiu-se como o melhor marcador da equipa com nove.

 

A temporada de regresso de Hassan trouxe dois dados muito curiosos: marcou no terreno dos quatro campeões nacionais à altura (um no Restelo, um na Luz, dois nas Antas e um em Alvalade), e foi expulso no primeiro e último jogo que fez na temporada: no São Luís com o Sporting por acumulação de amarelos e em Coimbra com vermelho direto depois de entrar aos 74 minutos.

 

Ramos e Bráulio, cada um com sete golos, também foram decisivos. Velozes, os dois jogadores ajudaram a desequilibrar muito pelos flancos e assumiram-se como peças essenciais da estratégia de Paco Fortes.

 

Dois últimos destaques para Hajry e Djukic. O outro marroquino do plantel, que é um verdadeiro sinónimo do Farense na década de 90, foi uma peça nuclear da equipa, desequilibrando pela experiência e com três golos que garantiram três pontos. O sérvio, herói da última jornada, em época de despedida, fez apenas dois golos.

09 de Janeiro, 2019

Ryoyu Kobayashi. Largar o Porsche para fazer história

Rui Pedro Silva

Ryoyu Kobayashi

Tem 22 anos e não lhe falta nada. Num país como o Japão, que acarinha os seus melhores talentos e lhes dá todas as condições para fazer história, dinheiro é algo comum na vida de Ryoyu Kobayashi há muito tempo.

 

Aos 22 anos, a neve já faz parte desde os cinco, altura em que começou a esquiar. Pouco depois, muito influenciado pelo irmão mais velho, Junshiro, deu o salto… para os saltos de trampolim. O talento é inegável e o aparecimento dos patrocínios, bem como dos prémios por participações, fazem dele um atleta com recursos.

 

Esta foi a principal dificuldade do seu novo treinador, o finlandês Janne Vaatainen, com quem começou a trabalhar antes do início desta temporada. «Quando começou a perceber que tinha de fazer mais do que limitar-se a conduzir o seu Porsche, tornou-se bom. Tenho estado a pressioná-lo para treinar mais, mas até agora não gostou. Está a aproveitar a vida e, faça o que fizer, continua com aquele sorriso maroto na cara», disse.

 

Kobayashi é, por estes dias, um nome incontornável nos desportos de inverno. A dupla faz parte da comitiva japonesa, tal como o experiente Noriaki Kasai, que ano após ano tenta fazer frente à hegemonia europeia. Não é novidade para ninguém: a especialidade é exigente, não tem grande tradição e é dominada quase exclusivamente por atletas do Velho Continente.

 

O histórico do Torneio dos Quatro Trampolins é esclarecedor. Existe desde 1953, com quatro etapas por ano, e só em 15 provas não foi ganha por um europeu. Mas, mais importante do que isso, em todas essas 15 ocasiões o vencedor foi… japonês.

 

E no início havia Yukio Kasaya

Yukio Kasaya

Foi preciso esperar até 1971/72 para ver a primeira vitória de um japonês numa etapa do torneio. Yukio Kasaya não fez a coisa por menos e venceu as primeiras três da temporada. Com o título à mão de semear e a possibilidade de se tornar o primeiro atleta da história a fazer o grand slam… Kasaya voltou para o Japão e falhou a quarta ronda.

 

«Pode parecer rude dizer isto hoje, mas tinha mesmo de fazer parte dos eventos de qualificação no Japão para os Jogos Olímpicos», recordou esta semana. E percebe-se: Sapporo ia organizar a edição e a expectativa nipónica era enorme. Ser galardoado em casa era a maior honra possível e vencer o torneio tornou-se secundário.

 

O Japão só voltou a aparecer no mapa da década de 90, com um triunfo de Noriaki Kasai em 1992/93, mas o ponto alto chegou na temporada 1997/98, com Kazuyoshi Funaki. Já com dois triunfos em edições anteriores, ambas em Innsbrück, o nipónico entrou fulgurante na competição e imitou Kasaya, com triunfos nas três primeiras provas.

 

Tal como em 1972, havia uma edição dos Jogos Olímpicos de Inverno à espera no Japão (Nagano) mas desta vez Funaki teve a oportunidade de lutar pelo grand slam e conquistar o título. Falhou a primeira, assegurou a segunda, tornando-se o primeiro japonês na história a destronar a hegemonia europeia. Mais tarde, tal como Kasaya, garantiu o ouro olímpico.

 

A evolução de Ryoyu Kobayashi

Ryoyu Kobayashi

Janne Vaatainen pode não gostar da forma como Ryoyu Kobayashi olha para a vida atualmente mas é indesmentível que o trabalho que tem vindo a desenvolver já se nota em competição. O jovem de 22 anos começou a competir no circuito em 2015/16 mas até esta época não tinha ido além de um sexto lugar. Agora, em onze etapas, já venceu oito.

 

Mais importante do que isso, quatro foram no Torneio dos Quatro Trampolins. Isso mesmo: Ryoyu começou por imitar os feitos de Kasaya e Funaki mas foi mais além e completou o grand slam com o triunfo em Bischofshofen no domingo, tornando-se o terceiro atleta a consegui-lo, sucedendo a Kamil Stoch (2018) e Sven Hannawald (2002).

 

«Isto é ainda mais fantástico», expressou o compatriota Noriaki Kasai depois de efetivado o grand slam. «É um feito impressionante que um saltador japonês nunca tinha alcançado. É verdadeiramente fantástico.»

 

A concorrência admitiu que, perante o talento do japonês, seria apenas uma questão de tempo. «Sabíamos que mais tarde ou mais cedo ele ia concretizar todo o seu potencial», confessou o treinador alemão Werner Schuster. O segundo classificado do torneio, Markus Eisenbichler, conformou-se perante a sua impotência: «Ele é verdadeiramente bom, temos de admitir sem qualquer tipo de inveja».

 

A admiração é contagiante e estende-se aos japoneses que abriram a caixa de Pandora no século XX. «É como um segundo Funaki», contou Kasaya. «Acho que ele é mais forte mentalmente do que era. Não é sorte», acrescentou Funaki.

 

Agora, ao contrário dos antecessores, não há uma edição dos Jogos Olímpicos de inverno para vencer. Mas o caminho para continuar a fazer história está ao seu alcance. Com ou sem sorriso maroto, acelerando mais ou menos no seu Porsche, Kobayashi está a um triunfo de igualar Funaki como recordista de triunfos no Torneio dos Quatro Trampolins.

 

Talento tem, e a dedicação está a aumentar. É uma questão de tempo.

09 de Janeiro, 2019

O contributo multidimensional de Pepe no FC Porto

Rui Pedro Silva

Pepe voltou ao FC Porto

O mercado de janeiro acabou de reabrir mas dificilmente haverá uma transferência de inverno com maior impacto do que o regresso de Pepe ao FC Porto. O internacional português pode ter 35 anos – fará 36 no próximo mês – mas continua a mostrar que consegue competir ao mais alto nível e será um recurso muito valioso para Sérgio Conceição durante a segunda metade da temporada.

 

A oportunidade de reaver o central, onze anos e meio depois de ter saído com grande lucro para o Real Madrid, pode não ter parecido uma prioridade mas o contributo de Pepe será multidimensional e dificilmente haverá um «contra» na análise a esta contratação.

 

Hoje, Pepe está mais maduro, mais inteligente e muito mais experiente do que quando saiu. Está também mais calmo. Foi-se assumindo como uma pedra basilar da seleção portuguesa e regressa ao Dragão inconformado mas com o sentimento de dever cumprido.

 

Não há outra forma de ver as coisas: se Pepe decidisse acabar a carreira ao rescindir com o Besiktas, o balanço já teria sido fantástico. Euro-2016 com Portugal, dois campeonatos com o FC Porto, três com o Real Madrid e três Ligas dos Campeões são apenas os pontos mais brilhantes de uma carreira que tem mais títulos domésticos, europeus e mundiais para acrescentar.

 

Mas Pepe sente-se em condições e decidiu continuar a jogar. E escolheu o FC Porto. No Dragão, será uma opção de luxo para Sérgio Conceição. Caso esteja interessado, o técnico pode blindar a baliza de Casillas com um quarteto defensivo de luxo composto por Éder Militão, Pepe, Felipe e Alex Telles.

 

Este quarteto defensivo nascido no Brasil (algo que num grande só tinha acontecido no Benfica de Ronald Koeman com Alcides, Anderson, Luisão e Léo) ajuda a suprir as dificuldades que a equipa tem sentido no lado direito da defesa e aumenta a qualidade de um setor que arrancou a época com o jovem Diogo Leite a «desenrascar».

 

Muito mais do que uma opção em campo

Vítor Baía era a maior referência do plantel quando Pepe chegou

O contributo de Pepe está longe de se esgotar em campo. A sua entrada para o plantel é também um sinal de que a crise de identidade e de mística que o FC Porto sofreu, sobretudo durante o tetracampeonato conquistado pelo Benfica, está ultrapassada.

 

Neste momento, Herrera é o jogador com mais épocas consecutivas no plantel (desde 2013) e até ao ano passado não tinha conquistado um único título. Esta falta de liderança clara tinha-se acentuado com a saída de Helton em 2017 e só a contratação de Sérgio Conceição para o cargo de treinador ajudou a reequilibrar o panorama.

 

Os dados não deixam dúvidas. Helton era o jogador há mais tempo no plantel quando deu lugar a Herrera, e recebeu esse testemunho de Vìtor Baía, que por sua vez o tinha recebido de Aloísio, que o tinha recebido de João Pinto. Entre estes jogadores, a mística foi sendo sempre assegurada e transposta de geração em geração como forma de garantir que o «ser Porto» era uma realidade e não apenas um lugar-comum debitado por Nuno Espírito Santo em conferências de imprensa.

 

Pepe sabe o que é «ser Porto» e tem a experiência necessária para servir de elemento-chave no plantel. É um nome sonante como Iker Casillas com o bónus de já ter passado pelo clube, de ter conquistado seis títulos em três anos e de se ter estreado numa Supertaça Europeia.

 

Quando Pepe era um novato, em 2004/05, a época pode não ter sido favorável mas tinha referências claras no plantel: Vítor Baía, Jorge Costa e, se quisermos alargar um pouco mais o espectro, Costinha.

 

A liderança nunca esteve em causa. Agora também não está mas há novamente um nome capaz de lançar as sementes na nova fornada de jogadores que estão a evoluir no Dragão e que poderão assumir-se como referências no futuro.

 

Pepe pode ser uma opção de luxo para Sérgio Conceição mas não era um reforço indispensável. Pode ser um nome sonante para aumentar o prestígio e a projeção internacional do clube mas para isso também há Casillas. O certo é que ninguém como ele poderá vestir tão bem o papel de referência e transportador da mística do que é «ser Porto». Só isso já valerá o investimento.

08 de Janeiro, 2019

Lobanovskyi. O mentor do futebol total soviético

Rui Pedro Silva

Valeriy Lobanovskyi

«Quando se fala da evolução tática no futebol, a primeira coisa a ter em mente é a procura constante de novos rumos de ação que não permitam ao adversário adaptar-se ao nosso estilo de jogo. Se o adversário se ajustar e encontrar uma forma de contrariar, temos de encontrar uma nova estratégia.»

 

Valeriy Lobanovskyi foi muito mais do que um treinador de futebol. Foi um visionário, um estratega, um idealista que olhava para dentro de campo com uma noção de sintonia e com um claro entendimento de que a dinâmica coletiva seria suficiente para superar qualquer obstáculo individual.

 

O soviético, nascido na Ucrânia a 6 de janeiro de 1939, teve uma carreira modesta, mas positiva, enquanto jogador. No seu melhor período, ao serviço do Dínamo Kiev entre 1959 e 1964, conquistou um campeonato e uma Taça, e marcou um total de 42 golos em 147 encontros.

 

Mas foi quando passou para o lado de fora das quatro linhas, já depois de representar duas outras equipas ucranianas – Chornomorets de Odessa e Shakhtar de Donetsk – que começou a notabilizar-se verdadeiramente.

 

No primeiro desafio, ao leme do Dnipro Dnipropetrovsk, foi campeão do segundo escalão soviético. Depois, em 1973, chegou o convite do Dínamo e nada mais voltou a ser o que era.

 

Dínamo Kiev foi o laboratório perfeito

O revolucionário Dínamo Kiev de 1975

Lobanovskyi não precisou de fazer crescer o Dínamo. O clube de Kiev era uma das maiores potências soviéticas e antes da chegada do novo treinador já tinha conquistado cinco campeonatos (1961, 1966, 1967, 1968 e 1971).

 

O que o técnico fez foi ainda mais importante. Foi pegar numa equipa forte e torná-la demolidora. Foi pegar nos bons jogadores e fazer deles ainda melhores. Por muito boa que a ideia de jogo seja, de nada valerá se não houver quem a saiba interpretar em campo. Agora, homem, filosofia e plantel estavam numa sintonia total rumo à revolução do futebol.

 

O modernismo de Lobanovskyi impressionava. O treinador adaptou as necessidades do futebol de então às ideias que tinha e o resultado foi concludente. A imprevisibilidade aliada à diversidade de opções fizeram do Dínamo uma equipa sem antídoto.

 

«É preciso forçar o oponente a assumir a condição que lhe desejamos. Uma das coisas mais importantes é variar o tamanho da zona de jogo», dizia, realçando a importância de forçar o adversário a cometer um erro.

 

«Para atacar, é necessário retirar a bola ao adversário. Quando é que é mais fácil fazer isso: com cinco jogadores ou com toda a equipa? O mais importante no futebol é aquilo que um jogador está a fazer no campo quando não tem a bola», afirmou uma vez.

 

Obsessão pelo controlo

Valeriy Lobanovskyi

Valeriy Lobanovskyi era um nobre ditador. Sabia o quê, quando e onde pedir algo a um jogador. Sabia o que este lhe podia oferecer e não deixava de lhe exigir tal façanha enquanto este não correspondesse.

 

O plantel podia não ser vasto mas cada jogador estava obrigado a ter a capacidade de desempenhar mais do que uma função, não apenas entre encontros mas durante os jogos em si. Quando os jogadores correspondiam, a confiança era construída e criava-se uma relação de respeito.

 

Um bom exemplo disso foi quando Lobanovskyi, numa das vezes em que acumulou os cargos de treinador do Dínamo e de selecionador da União Soviética, decidiu escolher apenas jogadores do clube para o onze da seleção. A partida foi ganha mas a façanha não foi bem vista: o risco de correr mal e ser visto como uma provação ao comité central era demasiado grande e Lobanovskyi podia ser muita coisa, mas parvo não era uma delas.

 

A conquista de uma dimensão europeia foi o passo natural para um Dínamo que acumulou os campeonatos soviéticos de 1974, 1975, 1977, 1980 e 1981. Num espaço de onze anos, a equipa da Ucrânia conquistou duas Taças das Taças, subjugando facilmente as réplicas de Ferencvaros (3-0 em 1975) e Atlético Madrid (3-0 em 1986).

 

A União Soviética podia estar a caminhar para o seu fim mas as capacidades de recrutamento do Dínamo Kiev garantiam a Lobanovskyi uma capacidade de reciclagem e renovação de fundamentos que garantiam o perpetuar da hegemonia.

 

«Quando se fala da evolução tática no futebol, a primeira coisa a ter em mente é a procura constante de novos rumos de ação que não permitam ao adversário adaptar-se ao nosso estilo de jogo. Se o adversário se ajustar e encontrar uma forma de contrariar, temos de encontrar uma nova estratégia.» O lema era tão simples e estará sempre atualizado, independentemente da época.

 

Transposição de sucesso para a seleção

União Soviética de 1988

Ser dominador a nível interno não era suficiente para o treinador. A União Soviética vivia uma eterna guerra propagandística e a afirmação através do desporto sempre foi vista como uma arma fundamental. Nos Jogos Olímpicos, o sucesso tinha núcleos indesmentíveis mas no futebol as dificuldades eram maiores.

 

O ponto alto chegou em 1988, na final do Europeu que impôs um duelo de ideologias de futebol total contra a Holanda de Rinus Michels. O desmembramento estava ao virar da esquina e foi a derradeira oportunidade para o técnico conseguir fazer a diferença num grande campeonato. Perdeu 0-2 num jogo imortalizado pelo golo de Van Basten.

 

Dois anos antes, em 1986, o Mundial do México também começou de forma favorável mas a saída foi prematura, depois da memorável partida com a Bélgica nos oitavos-de-final (3-4 após prolongamento).

 

Em 1990, o Mundial foi uma desilusão e uma premonição do que estava para acontecer. Os jogadores não eram os mesmos, a capacidade para os controlar desaparecera e a abertura de novos mercados tinha deixado tudo mais complicado.

 

O regresso do rei

A última grande equipa de Lobanovskyi

Entre o Mundial-1990 e 1997, quando voltou a assumir o comando do Dínamo Kiev, Lobanovskyi fez carreira de forma discreta a receber milhões árabes, primeiro nos Emirados Árabes Unidos (1990-1993), depois no Kuwait (1994-1996).

 

O regresso a casa foi triunfal. Já sem União Soviética, o Dínamo Kiev assumia-se naturalmente como a maior força ucraniana mas, com Shevchenko, Rebrov e companhia, o objetivo passava cada vez mais por fazer a diferença na Europa.

 

Entre 1997 e 2002, o clube foi campeão nacional cinco vezes e o ponto alto chegou em 1998/99, quando o Dínamo atingiu as meias-finais da Liga dos Campeões, um ano depois da memorável goleada no Camp Nou ao Barcelona (4-0).

 

Foi o adeus perfeito a uma carreira – e a uma vida – memorável. Em maio de 2002, após um jogo, Lobanovskyi morreu depois de ter sofrido um enfarte. Para trás, ficou um legado impressionante que influenciou dezenas de jogadores e garantiu oito campeonatos soviéticos, cinco ucranianos, dois títulos europeus e uma final de um Europeu com a União Soviética, além de uma medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1976.

 

Era especial.

08 de Janeiro, 2019

Nick Saban. O peso pesado voltou a ir ao tapete

Rui Pedro Silva

Nick Saban perdeu segunda final em três anos

O desporto universitário nos Estados Unidos é tão efémero que os treinadores chegam a ser mais importantes do que os jogadores e as próprias equipas. Seja no basquetebol ou no futebol americano, há nomes que surgem como autênticas instituições e imediatamente associados a uma aura de respeito e sucesso.

 

Nick Saban é o peso pesado do futebol americano. Desde que assumiu o comando dos Alabama Crimson Tide, em 2007, a equipa montou uma estrutura capaz e tem escrito episódio de sucesso atrás de episódio de sucesso num livro cheio de história.

 

Em pouco mais de uma década, Alabama chegou a sete finais. Nos últimos anos, o poderio tem sido indiscutível e a presença no jogo decisivo é quase um facto garantido. O problema é que, ao contrário do que aconteceu nas primeiras quatro presenças (2010, 2012, 2013 e 2016), os triunfos não são automáticos.

 

Em 2017, os Clemson Tigers vestiram a pele de carrasco e ganharam 35-31. Esta madrugada, a mesma equipa voltou a assumir-se como o grande rival de Alabama e somou mais um triunfo, desta feita por 44-16.

 

O resultado é histórico: é a pior derrota na era de Nick Saban como treinador em Alabama. A equipa só por uma vez esteve em vantagem no marcador (16-14 durante o segundo período), foi para o intervalo a perder (16-31) e não conseguiu somar qualquer ponto durante toda a segunda parte.

 

À felicidade de Clemson, Alabama respondeu com a desinspiração. No início do terceiro período, por exemplo, os Crimson Tide tentaram simular um field goal mas não surpreenderam o adversário. «Pensávamos que tínhamos a jogada muito bem ensaiada mas alguém não bloqueou um adversário, por isso não conseguimos. Foi uma má decisão, é sempre assim», lamentou Saban na conferência de imprensa após o final do encontro.

 

A derrota não afeta o legado de Nick Saban mas faz lembrar as derrotas dos Patriots contra os Giants na Super Bowl (2008 e 2012). Há uma diferença clara entre alguém que vence todas as finais em que participa e alguém que se limita a vencer apenas uma larga maioria. Para Saban e Alabama, a aura de hegemonia de rolo compressor parece perdida. E onde os Patriots descobriram os Giants e o treinador Tom Coughlin, Alabama está obrigada a cruzar-se com Clemson e o treinador Dabo Swinney.

 

A construção de um monstro competitivo

Nick Saban enquanto jogador

Os números de Nick Saban são impressionantes. O outrora elemento da linha defensiva de Kent State (1970 a 1972) tem um registo de 141 vitórias e apenas 21 derrotas em Alabama e antes de chegar à equipa já tinha conquistado um título com LSU, a equipa mais famosa do estado do Louisiana, que joga em Baton Rouge.

 

O facto inédito – é o único a ser treinador campeão por duas equipas diferentes – ajuda a perceber quão especial é. Mas o início foi mais um acaso do que qualquer outra coisa. Depois de tirar o mestrado em Administração Desportiva em Kent State, acabou por ser convidado pelo seu treinador para continuar como assistente.

 

Oportunidade atrás de oportunidade, Saban foi aproveitando e começando a construir currículo. Sempre como assistente, andou por Syracuse, West Virginia, Ohio State, Navy, Michigan State e Houston Oilers (NFL).

 

Foi nesta altura que deu pela primeira vez o salto para treinador principal, agarrando a oportunidade dada pela Universidade de Toledo, no Ohio. O regresso à NFL, para coordenador defensivo dos Cleveland Browns de uma equipa orientada por… Bill Belichick (atual treinador dos New England Patriots), durou de 1991 a 1994 e depois deste período, muito mau na opinião do próprio, andou por Michigan State, LSU e Miami Dolphins. A experiência como treinador na NFL foi medíocre, com 15 vitórias e 17 derrotas em duas temporadas e decidiu focar-se exclusivamente no futebol americano universitário quando chegou ao Alabama.

 

Hoje, 46 anos depois de ter aceitado o convite de Kent State, Nick Saban é um dinossauro que impõe respeito. Tem 232 vitórias, 63 derrotas e um empate enquanto treinador na NCAA e além dos seis títulos nacionais já conquistou oito vezes a divisão SEC, uma das mais importantes do futebol americano.

 

Os prémios individuais também se amontam ano após ano. Já foi duas vezes o treinador da temporada a nível nacional e quatro vezes da divisão SEC. Aos 67 anos, Saban não mostra sinais de abrandar e, mesmo que quisesse, a estrutura que ajudou a montar é uma locomotiva que não travará tão cedo.

 

Nick Saban está a meio de um contrato de oito anos com Alabama, válido até 31 de janeiro de 2025, que inclui um pagamento total de 65 milhões de dólares, além de um bónus de assinatura de quatro milhões e a possibilidade de ganhar até mais 700 mil dólares por ano de acordo com os resultados alcançados. Ou seja, Saban até pode ir ao tapete mas tão cedo não vai deixar de se levantar.

08 de Janeiro, 2019

Keizerball. A desconfiança é inimiga da estratégia

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Marcel Keizer

Escreveu o Luís Cristóvão no Twitter, pouco depois de o Sporting perder no terreno do Tondela: «Lá longe, no país dos resultadistas, ouve-se o indisfarçável som do afiar de facas. Enquanto isso, no país da posse, choram-se rios de lágrimas por uns últimos minutos de procura de solução pelo ar. Nem mais, voltamos a viver uma noite de corações partidos».

 

O comentário é pertinente e reflete na perfeição as duas ideias-chave que saíram de Tondela na noite de segunda-feira. Por um lado, os que têm feito a cama ao futebol atrativo de Keizer, clamando por dificuldades e incapacidade de ler o futebol português, ganharam espaço para exaltar que sempre tiveram razão e que um estrangeiro não pode chegar cá e limitar-se simplesmente a impor um estilo positivo, com uma ideia baseada na posse, dinâmica e procura constante pelo golo. Por outro, quem o tem defendido destes ataques não pode ter deixado de sentir alguma desilusão ao ver que equipa e treinador fugiram à identidade que têm tentado construir quando André Pinto entrou para o lugar de Nani e os leões começaram a bombear bolas para a área.

 

O que fazemos dentro de campo depende muito da nossa confiança. Não é surpresa para ninguém que as ações de alguém confiante têm uma percentagem de sucesso muito maior. Seja na receção, no passe, no remate ou mesmo na dinâmica coletiva e na tomada de decisão, é muito mais confortável arriscar quando a confiança é máxima.

 

Há três momentos-chave capazes de colocar a confiança em risco: uma série de maus resultados, a reação a um golo sofrido e uma posição de desvantagem com o jogo a aproximar-se do fim. Na era Keizer em Alvalade, a primeira não chegou a ser problema. Tiago Fernandes tinha feito um trabalho satisfatório e o calendário permitiu ao holandês entrar com facilidade, somando goleadas na Taça e na UEFA. A reação a golos sofridos também não foi um problema. Nos primeiros três jogos, o Sporting sofreu o empate após entrar em vantagem e em todos estes jogos acabou por garantir triunfos confortáveis.

 

Depois, mais tarde, com Aves (0-1) e Nacional (0-2) em Alvalade, a equipa conseguiu dar a volta a situações de desvantagem. Porquê? Porque já havia uma identidade de confiança na capacidade de marcar. O próprio treinador tinha vindo a referir que preferia ganhar 4-3 do que 1-0. Se o adversário marca um, nós marcamos dois. Se marca dois, nós marcamos três. É esta a filosofia que retira peso ao golo sofrido, em contrabalanço com o modelo resultadista da vitória por margem mínima sem sofrer golos, onde uma ligeira alteração ao plano torna tudo mais complicado.

Sporting perdeu pela segunda vez em três jornadas

Em Tondela, como já tinha acontecido em Guimarães, o Sporting passou pelo terceiro momento-chave: entrar nos últimos minutos a perder. Mas, ao contrário do que aconteceu no Minho, surgiu numa posição mais delicada. Primeiro, porque a desvantagem avolumou-se na reta final da partida; depois, porque o leque de opções nunca foi tão curto. Com Bas Dost e Jovane de fora, os leões jogaram com um ataque com Diaby, Nani e Raphinha e um banco de suplentes que tinha apenas uma opção que  podia permitir revolucionar o ataque: Montero.

 

A estratégia de Keizer - e a forma de encarar o jogo - não mudou mas, perante a adversidade, a confiança desapareceu. A equipa deixou de acreditar que seria capaz de chegar ao golo confortavelmente, como tem acontecido em jogos anteriores, deixou de ter alternativas credíveis para tentar abanar o Tondela e perdeu a capacidade de chegar ao desequilíbrio através da filosofia que o holandês tem tentado impor.

 

E cedeu. Cederam os jogadores e cedeu o treinador, ao recuperar um truque que outro treinador vindo da Holanda para Portugal - Bobby Robson - tentou na década de 90: fazer entrar um central para a frente de ataque. Só mudou o Pinto: de João Manuel para André. 

 

A desconfiança foi inimiga da estratégia. Ao deixar de acreditar que seria possível alcançar o objetivo sendo fiel aos princípios, a equipa cedeu à ideia irracional de que a melhor forma de marcar é levar a bola para a área da forma mais rápida possível. Fosse com André Pinto, ou mais tarde com Coates e Mathieu, o Sporting usou e abusou do jogo direto para a área, perdendo a capacidade de raciocínio e promoção do desequilíbrio, sobretudo numa fase que jogava em superioridade numérica.

 

O percalço tem consequências diretas no futuro da equipa. Ficar a oito pontos do FC Porto, uma semana antes de receber os dragões, deixa a equipa num fosso que poderá ser inultrapassável. Além disso, a desconfiança exibida, independentemente de haver atenuantes como a falta de opções (o que deve ser visto também como um alerta para a direção e para o ataque ao mercado de janeiro), abalou a identidade que vinha a ser construída.

 

Essa é mesmo a maior conclusão a tirar do jogo do Tondela. O mês e meio de Keizer ao leme do Sporting não foi suficiente para impor a identidade e o modelo de jogo que preconiza. Ou, também é uma hipótese, não deixa de ser igual a outros que, quando o obstáculo aparece, cede ao facilitismo e está disposto a trair a sua ideia.

 

Na próxima semana, com o FC Porto, estas ideias voltarão a estar em xeque. O que fará Keizer? Uma certeza é indesmentível: o legado do holandês só será verdadeiramente admirável quando, irracionalmente, os jogadores já procurem obedecer às ideias-chave do modelo de Keizer quando o cenário for desfavorável.

 

07 de Janeiro, 2019

Tony Romo. Quando um quarterback arruinou um field goal

Rui Pedro Silva

Tony Romo não consegue segurar a bola devidamente

Voltou a acontecer. Não é necessariamente algo muito frequente mas os últimos anos têm demonstrado que o peso do momento consegue ser demasiado insuportável para que os kickers consigam resolver jogos dos playoffs nos últimos segundos.

 

As justificações podem ser várias. A chuva, o vento, o frio, as costuras da bola estarem do lado errado. O certo é que desde 2012 já houve três jogos que entraram para a galeria dos horrores, marcando para sempre as carreiras de Billy Cundiff, Blair Walsh e, desde ontem, Codey Parker.

 

Vamos por partes e recuamos até 22 de janeiro de 2012, dia de um clássico na distrital do Porto que atraiu milhares de adeptos: Felgueiras-Salgueiros (2-1). Mais tarde nesse dia, os Baltimore Ravens jogaram no Gillette Stadium com os New England Patriots para garantir o acesso à Super Bowl. Faltavam 15 segundos para o final e os Ravens tinham uma oportunidade para forçar o prolongamento. Billy Cundiff partiu para a bola, as costuras da bola estavam do lado errado, e falhou os postes. Na ressaca, o jogador foi dispensado e a sua carreira nunca mais voltou a ser a mesma.

 

Avançamos para 10 de janeiro de 2016, dia de um clássico na distrital de Setúbal, com vitória do Amora no Montijo (2-0). Mais tarde nesse dia, os Minnesota Vikings recebem os Seattle Seahawks na primeira ronda dos playoffs. A 22 segundos do fim, a equipa da casa perde 9-10 mas tem um field goal a 27 jardas dos postes. Blair Walsh entra em campo e… falha. O jogador continuou na equipa para a época seguinte mas não passou de novembro, depois de a desinspiração se ter prolongado no tempo com mais quatro field goals e quatro pontos extra falhados.

 

A terceira parte desta trilogia surge a 6 de janeiro de 2019, dia de um clássico na distrital de Lisboa, com empate sem golos no jogo entre Estrela e Belenenses. À noite, em Chicago, os Bears recebem os Philadelphia Eagles na primeira ronda dos playoffs. A três segundos do fim, a equipa da casa está a perder 15-16 mas tem a oportunidade de seguir em frente se Codey Parker converter o field goal. A bola bate primeiro no poste, depois na barra até finalmente voltar para trás. «Não dá para inventar isto. Sinto-me pessimamente. Deixei a equipa ficar mal. A responsabilidade é minha. Tenho de assumir, tenho de ser um homem. Infelizmente, foi assim que aconteceu.»

 

O futuro de Codey Parker ainda é uma incógnita mas os casos de Blair Walsh e Billy Cundiff não são animadores. Por outro lado, há um exemplo que destoa claramente desta trilogia. A 6 de janeiro de 2007, a responsabilidade caiu toda em cima do holder, o jogador que segura a bola para o pontapé. Na partida entre os Dallas Cowboys e os Seattle Seahawks, os texanos perdiam 20-21 a pouco mais de um minuto do fim e beneficiaram de um field goal. Tony Romo (esse mesmo, o quarterback) fez asneira, não conseguiu colocar a bola no sítio e fez uma tentativa desesperada, e sem sucesso, de chegar ao touchdown.

 

Uma raridade sem razão para acontecer

A desilusão de Tony Romo

A história nunca devia ter acontecido – onde já viu um quarterback a assumir uma posição tão fundamental durante um pontapé aos postes? – mas Tony Romo estava no início de carreira, na primeira época em que foi verdadeiramente titular e a continuar uma posição que lhe tinha sido atribuída no passado.

 

Era um desastre à beira de acontecer. Por muito que Tony Romo estivesse habituado a estar naquela posição, a sua importância na equipa tinha crescido exponencialmente e, mais não seja por uma questão de proteção, deveria ter deixado de estar exposto a este tipo de erros. Depois de ter acontecido o que aconteceu, todos pareceram saber perfeitamente que aquela situação se tinha prolongado durante demasiado tempo.

 

Um quarterback já é obrigado a viver com passes falhados, fumbles e interceções, não tem de arrecadar ainda mais cabelos brancos com as preocupações de segurar a bola para que outro pontapeie. O momento foi dramático e Romo não se perdoou. «Naquele defeso, o Tony ligou-me umas três ou quatro vezes sobre o que tinha acontecido e na noite do Pro Bowl estivemos a falar durante uns vinte minutos, com ele a pedir desculpa», contou na semana passada o long snapper (o jogador que faz o passe para o holder para que este possa posicionar a bola para o pontapé) LP Ladouceur.

 

«Dava para perceber que ele se preocupava mesmo com isto. Ele jogou por mais dez anos e sempre a um nível muito alto. Há outras coisas que podem criar um impacto muito maior, não é?», acrescentou.

 

A marca foi grande e o Tony Romo que se apresentou na conferência de imprensa após a derrota foi um homem derrotado pela vida. «Não sei se alguma vez me senti assim tão mal. Fiz com que os Dallas Cowboys perdessem um jogo dos playoffs. É algo que me vai perseguir durante muito tempo», afirmou.

 

Terrell Owens, o wide receiver da equipa, demonstrou empatia. «Nem consigo imaginar o que estará a passar pela cabeça dele neste momento. Está mesmo numa situação difícil. Sinto-me como ele. Apetece-me chorar», afirmou.

 

O erro de Tony Romo, o jovem quarterback que tinha levado os Cowboys às costas, ia deixar uma forte marca e o proprietário da equipa, Jerry Jones, fez questão de ir à procura de Romo no balneário. Naquele momento, era imprescindível garantir o apoio necessário para que o jogador conseguisse ultrapassar aquela desilusão.

 

A carreira de Tony Romo continuou e tornou-se um dos melhores quarterbacks da NFL. Nunca conseguiu chegar a uma Super Bowl, por muito pouco, mas não deixou que aquele momento o definisse. Tanto assim foi que uns anos mais tarde chegou mesmo a voltar a desempenhar a função de holder, enquanto o habitual responsável recuperava de lesão.

06 de Janeiro, 2019

Estrela-Belenenses. Uma prova de vida do futebol puro

Rui Pedro Silva

Estrela-Belenenses

Domingo, 6 de janeiro, três da tarde. E um dia de sol suficiente para obrigar os friorentos a tirar os casacos. Parecendo que não, esta é uma receita simples do futebol tradicional. Pode não ser requintada, pode não ter ecrãs gigantes com a constituição das equipas nem sequer o marcador do jogo, pode não ter uma bancada coberta… mas não engana.

 

O futebol, o puro, é aquele que resiste nas nossas memórias e nos faz ter saudades do passado. A qualidade podia não ser melhor, as arbitragens eram igualmente contestadas e as condições de treino estavam a anos-luz das atuais, mas continuamos a recordar esse futebol com um brilhozinho nos olhos e a nostalgia de que algumas coisas possam voltar a ser como antes.

 

A receita do Estrela-Belenenses, dois históricos da área metropolitana de Lisboa e com um passado rico no futebol português, é como a do bolo de iogurte que se faz em poucos minutos e nunca dececiona. Reparem: é um jogo à tarde de domingo. Depois há, claro está, as nuances que fizeram deste jogo uma partida tão especial e ansiada desde que o calendário saiu.

 

São dois clubes que pagaram os erros cometidos. No Restelo, o Belenenses cortou o cordão com a SAD e foi obrigado a recomeçar do zero. Na Reboleira, o Estrela da Amadora no início da década e tem agora a continuação da árvore genealógica assegurada pelo Clube Desportivo Estrela. O reencontro de dois rivais – num antagonismo que se estendia aos escalões de formação – foi automaticamente associado ao futebol nostálgico e ninguém quis faltar.

 

Se dúvidas houvesse, ficaram desfeitas quando duas bancadas encheram ainda antes do apito inicial. Isto não era um Estrela-Belenenses. Era a prova que o português sente falta do futebol puro e faz fila para ver história.

José Gomes regressou ao antigamente

As portas abriram cerca de meia hora antes do apito inicial mas o reboliço nas imediações era enorme. «Bem, isto é um ambiente de um jogo da primeira liga!», ouvimos numa esquina. As bilheteiras registavam vendas a uma velocidade recorde e os grupos de adeptos alimentavam conversas à espera do arranque.

 

Fotógrafos, jornalistas e câmaras de televisão juntavam-se à festa e precipitavam os primeiros cânticos. Ali tão perto, um carro destacava-se por exibir um cachecol do Estrela imediatamente abaixo de um do Belenenses.

 

A rivalidade fora esquecida. Ali, naquele momento, eram apenas dois amigos de longa data que se voltavam a ver logo a seguir aos piores momentos das suas vidas. Dois amigos que acreditavam que, juntos, poderiam regressar à elite.

 

O sistema sonoro do estádio entrou em ação e, ironia das ironias, arrancou com uma aparente mensagem subliminar.

 

«A recordação vai estar com ele aonde for

 […]

Lambando estarei ao lembrar que esse amor

Por um dia, um instante, foi rei»

 

A Lambada acertava em cheio no nervo. A música foi lançada em 1989, época em que o Estrela de João Alves, com Bobó, Paulo Bento, Abel Xavier, os irmãos Neves, Rebelo e muitos outros, foi até ao Jamor conquistar a Taça de Portugal. Numa final contra o Farense que, na ronda anterior, tinha afastado o Belenenses.

 

Agora, trinta anos depois, não havia mais do que recordações. E essas, felizmente, jorravam a cada dedo de conversa. Dos mais velhos aos mais novos, eram várias as lembranças das visitas à Reboleira, os jogos, os jogadores e os grandes momentos que tinham visto.

 

O Estrela-Belenenses também foi mais do que um jogo de futebol: foi um momento de expiação. O significado era muito mais forte do que a qualidade. Até porque bem podemos dizer que é a Primeira Divisão da Distrital de Lisboa mas não deixa de ser… o terceiro escalão da Distrital de Lisboa.

 

O relvado também não ajudou. A qualidade foi a possível e os jogadores fizeram o máximo para aproveitar aquele que terá sido, muito provavelmente, o momento mais alto das suas carreiras. Se em campo havia praticamente 22 desconhecidos do grande público, nas bancadas brilhavam nomes como Filgueira, Rui e Jorge Neves, Rebelo e Abel Xavier.

 

Os adeptos deram a alma ao jogo. Antes do apito inicial, os líderes das claques Fúria Azul e Magia Tricolor trocaram cachecóis num momento muito aplaudido. Durante o jogo, ajudaram a aquecer ainda mais uma tarde quente, com cânticos intensos, bate-bocas saudáveis e uma onda ecoante durante as jogadas de perigo.

Estrela-Belenenses

Esta última é mesmo aquele momento que torna um jogo ao vivo tão especial. A forma como ouvimos as reações espontâneas, em simultâneo, de centenas de adeptos que se juntam em coro perante o desejo – e obsessão – de poder haver um golo.

 

Mas não houve. Nenhum. Nem sequer oportunidades flagrantes que resistam na memória. Fosse o contexto diferente e diríamos que o jogo tinha sido mau, uma perda de tempo. Mas ali, no velhinho José Gomes, os adeptos nunca perderam o entusiasmo. O interesse era tão grande que a bancada nascente teve de ser aberta por razões de segurança.

Bancada nascente também teve de abrir

Este Estrela-Belenenses não foi um 0-0 da divisão mais baixa do campeonato distrital. Este Estrela-Belenenses foi um exemplo. Um que já tínhamos vivido, com as proporções devidas, nas distritais de Portalegre, com um Elvas-Campomaiorense, e do Porto, com um Felgueiras-Salgueiros.

 

Foi um jogo de renascimento. Foi uma prova de vida. Do Estrela. Do Belenenses. E dos adeptos que nunca perderão o interesse pelo futebol puro, pelos momentos especiais e pelas boas histórias. O Estrela e o Belenenses foram as personagens principais, claro, mas todos nós fomos figurantes deste episódio marcante da temporada.

04 de Janeiro, 2019

Bianca Andreescu. A sensação de Auckland

Rui Pedro Silva

Bianca Andreescu

Tenista canadiana de origem romena tem apenas 18 anos e está a surpreender o mundo do ténis na Nova Zelândia. Depois de ultrapassar Caroline Wozniacki, a primeira cabeça-de-série em Auckland, fez o mesmo a Venus Williams. Agora, o céu parece ser o limite.

 

O nome não engana. Apesar de ser canadiana, Bianca tem origem romena e nasceu um dia antes de Costinha ter saído do banco para resolver o Portugal-Roménia do Euro-2000 no último minuto (16 de junho).

 

Sim, Bianca tem apenas 18 anos. Nunca foi além do 143.º lugar no ranking WTA (14 de agosto de 2017) e atualmente ocupa o 152.º posto. Mas não por muito tempo. Na Nova Zelândia, em Auckland, a adolescente saiu diretamente da qualificação, onde era apenas a quinta cabeça-de-série, para o estrelato.

 

Primeiro, eliminou Timea Babos. Depois, a fasquia aumentou mas não foi o suficiente para intimidar a jovem canadiana. Caroline Wozniacki, número três mundial, era a grande candidata mas não conseguiu sequer vencer um set, acabando eliminada com um duplo 6-4. Muitas vezes, estas revelações deixam-se levar pelas emoções e vacilam na ronda seguinte. Bianca Andreescu não. Contra Venus Williams, a tenista não só garantiu um lugar nas meias-finais como fê-lo depois de ter perdido o primeiro set.

 

Su-Wi Hsieh é a próxima adversária mas aconteça o que acontecer, Bianca Andreescu já garantiu 110 pontos para o ranking WTA e uma módica soma de 11300 dólares. Na próxima segunda-feira, no mínimo, estará na melhor posição de sempre e à beira do top-100.

 

Crescer no ténis com os olhos em Halep

Bianca Andreescu com Simona Halep

O ténis não foi uma escolha instintiva. Quando começou a praticar desporto, as atenções de Bianca estiveram divididas. Passou pelo futebol e pela natação, pela ginástica e pela patinagem antes de se decidir pelos courts.

 

A sua vida sempre foi impulsionada por mudanças de ares. Com sete anos foi com a família para a Roménia, onde começou de facto a apostar no ténis, mas não muito tempo depois já estava de regresso ao Canadá. Simona Halep, uma romena, surgiu como uma inspiração - «gosto dela porque muita gente diz que temos estilos parecidos. E adoro a determinação como joga. Gostava de moldar o meu jogo com base nela» - mas, por viver no Canadá, começou a ser vista como alguém que poderia seguir as pisadas de Eugenie Bouchard.

 

Em 2015, ainda com 14 anos, a sua progressão era irrefutável. Tornou-se a tenista mais jovem de sempre no top-60 do ranking júnior (14 anos e 11 meses) e assumia-se como alguém «concentrada e otimista» dentro e fora do court. «Melhorei muito a minha força mental e física este ano», dizia.

 

A tendência manteve-se de ano para ano. O trabalho com a treinadora Nathalie Tauziat também deu frutos e um ano depois, em 2016, chegou ao quarto lugar do ranking. «É uma tenista muito boa», dizia Tauziat. «Pode fazer muita coisa, tem boas bancadas e muita potência. Ainda só tem 15 anos mas está muito determinada no ténis. Tem grandes objetivos e está a fazer muito para os alcançar. É uma rapariga inteligente e espero que consiga.»

 

E conseguiu logo em 2017. Não venceu nenhum grand slam júnior em singulares (só dois em pares) mas tornou-se a primeira tenista a nascer depois de 1 de janeiro de 2000 a derrotar uma adversária do top-20, contra Kristina Mladenovic (13.ª) em Washington.

 

Foi também neste ano que conseguiu a única participação, até agora, no quadro principal de um grand slam (derrotada por Kristina Kucova na primeira ronda em Wimbledon) e foi eleita a melhor jogadora canadiana da época, interrompendo uma série de quatro prémios consecutivos para Eugenie Bouchard.

 

A evolução estagnou um pouco depois disso mas o desempenho em Auckland pode ser o empurrão que faltava para se começar a impor entre a elite do ténis feminino mundial.

04 de Janeiro, 2019

Rui Vitória. Não ser Jorge Jesus deixou de ser trunfo

Rui Pedro Silva

Rui Vitória

Onze anos depois, o Benfica voltou a mudar de treinador durante a época. A corda que ligava Rui Vitória aos encarnados estava cada vez mais esticada, ameaçou romper a 29 de novembro e cedeu finalmente após a derrota em Portimão, no primeiro jogo de 2019.

 

Não foi a primeira vez que Rui Vitória esteve com o lugar em risco mas nunca tanto, como agora, o trunfo de não ser Jorge Jesus estava tão gasto. A contextualização do ambiente que se vivia na Luz quando chegou ao clube não é dissociável da margem que teve para alcançar o sucesso.

 

O Benfica sentia-se traído com a saída de Jorge Jesus, sem aviso, para o Sporting e construiu uma narrativa – lógica e relevante – de mudança de paradigma. Rui Vitória foi o homem escolhido não para ser um anticristo mas sim para ser um antijesus.

 

Era um homem que já tinha passado pela Luz, um confesso benfiquista, alguém que não exigia completa independência na altura de atacar o mercado – pelo contrário – e que não tinha problemas em lutar com as armas que lhe davam, sem descurar o recurso à equipa B e aos jogadores da formação.

 

Foi esta a capa que Rui Vitória vestiu – que já lhe tinha assentado bem em Guimarães – e foi desta forma que a estrutura do Benfica o acarinhou e protegeu dos ataques. Na verdade, Rui Vitória começou por não ser mais do que um «rebound» da relação conflituosa e apaixonada entre clube e Jesus.

 

Se o ex-treinador tinha saído para o Sporting, era imprescindível garantir que tudo corria bem e dar um sinal para fora de que a nova relação era ainda melhor. Rui Vitória passou a ter todas as virtudes que antagonizavam os defeitos de Jesus. Falava melhor – nem sempre necessariamente bem -, apostava na formação e era apresentado como o treinador certo para recuperar a dimensão europeia do Benfica.

Rui Vitória e Luís Filipe Vieira

O problema é que o arranque de Rui Vitória foi desastroso. As três derrotas com o Sporting em quatro meses, que valeram um título perdido, uma eliminação da Taça de Portugal e um humilhante desaire na Luz, aliadas aos jogos perdidos em Aveiro com o Arouca e no Dragão com o FC Porto deixaram Rui Vitória numa posição delicada.

 

A 30 de novembro de 2015, precisamente três anos antes da célebre conferência de imprensa de reconciliação de Rui Vitória, o treinador encarnado tinha o futuro a escapar por entre os dedos. A contestação subia de tom após a eliminação da Taça em Alvalade, o empate em Astana não tinha ajudado e a deslocação a Braga podia ser vista como um tira-teimas. Com dois golos nos primeiros onze minutos, os encarnados garantiram o triunfo e mantiveram a distância de oito pontos para o líder Sporting, embora com menos um jogo disputado.

 

Durante este período, Rui Vitória defendeu-se como pôde. Se os resultados dentro de campo não ajudavam, era imprescindível mostrar aos sócios e adeptos que o treinador estava a fazer, de facto, um corte com o passado. Na primeira prova de fogo, na Supertaça, começou por apostar em Nelson Semedo. Depois, a partir daí, os jogos pós-desaires eram garantia de aposta em jovens.

 

Depois da derrota com os leões na Luz (0-3), a deslocação a Tondela ditou as estreias de Renato Sanches e Clésio. O agora médio do Bayern Munique só foi utilizado um minuto no mês seguinte… até os encarnados perderem em Alvalade para a Taça. Renato voltou a ser titular no jogo seguinte, no Cazaquistão com o Astana, pegou de estaca, marcou o golo fundamental em Guimarães no início de janeiro e assumiu-se como uma pedra basilar rumo ao tricampeonato.

Renato Sanches foi a melhor arma de Vitória

Estes pequenos momentos ajudaram a segurar Rui Vitória no Benfica. Isso e a impossibilidade de dar a parte fraca numa época que se adivinhava conturbada. Luís Filipe Vieira nunca gostou de dispensar treinadores a meio da época e fazê-lo numa edição liderada pelo Sporting de Jorge Jesus seria a última coisa da sua lista. De repente, as vitórias começaram a aparecer consecutivamente, as águias chegaram aos quartos da Liga dos Campeões e somaram 20 vitórias nas últimas 21 jornadas do campeonato – perderam apenas com o FC Porto na Luz.

 

Rui Vitória saiu por cima. Com o recorde de 88 pontos, o tricampeonato e os quartos da Liga dos Campeões, o Benfica fez xeque-mate a Jorge Jesus, salvou-se de uma época que ameaçava ser desastrosa e validou a aposta no novo técnico.

 

O ambiente de lua-de-mel não foi eterno. O Benfica foi tetracampeão na temporada seguinte, num título alcançado com relativa facilidade, mas as críticas ao estilo de Rui Vitória começaram a subir de tom. Na Liga dos Campeões voltaram a passar da fase de grupos – algo que foi novamente um trunfo contra a ausência de dimensão europeia dada por Jesus, o treinador que levou o clube a duas finais consecutivas, - mas os sinais de descontentamento estavam lá.

 

Foi também nesta altura que não ser Jorge Jesus começou a deixar de ser um trunfo. Da mesma forma que a intensidade e obsessão do antigo treinador promoviam o desgaste perante exposição prolongada, também o regime laissez-faire de Rui Vitória acabaria por ser contraproducente.

Rui Vitória

Rui Vitória nunca travou o futebol do Benfica mas promoveu, lentamente, a sua desaceleração. E quando se tornou obrigatório acelerar já não havia argumentos. As individualidades, sobretudo num campeonato como o português, ajudaram a resolver jogos, mas a inércia e o desinvestimento tornaram tudo mais difícil dentro de portas e impossível na UEFA.

 

Hoje, o Benfica já tem outro líder. Rui Vitória garantiu em novembro que não era um treinador a prazo mas há muito que estava nessa situação. Curiosamente, no final da temporada passada, até foi salvo… por Jorge Jesus e pela incapacidade do Sporting em segurar o segundo lugar. Vieira arriscou, manteve-o para uma nova edição, mas o risco calculado não compensou.

 

O Benfica é quarto classificado depois da passagem do ano pela primeira vez desde 2008 e está a sete pontos do FC Porto. E o simples facto de não ser Jorge Jesus, sobretudo com o técnico nas arábias e desejoso de voltar a Portugal para qualquer clube que lhe estenda a mão, deixou de ser um trunfo. Até é uma desvantagem. Rui Vitória sai também como um de apenas quatro treinadores que perderam no primeiro e último jogo pelo clube (Zozaya, Autuori e Toni são os outros três).

 

Luís Filipe Vieira e o Benfica venceram o jogo do sério contra o Sporting de Bruno de Carvalho e Jorge Jesus. Perante a implosão em Alvalade durante o verão, os encarnados recuperaram tranquilidade e agora até podem promover o regresso de uma paixão antiga. Rui Vitória não resistiu e talvez faça agora o que tanto ameaçou na conferência de imprensa de novembro: «Seria muito fácil para mim apanhar um avião para outro lado qualquer».

 

O maior problema da carreira de Vitória é que o aeroporto é pequeno. Sim, venceu cinco títulos em três anos e meio, mas a imagem que fica é a de um treinador limitado. Em Portugal, é difícil imaginar que possa voltar a treinar um grande. Os milhões das arábias até podem ser um «agradecimento» do Benfica e de Vieira, mas o futuro não parece promissor. Não ser Jorge Jesus não lhe vai garantir nada daqui para a frente.

03 de Janeiro, 2019

John Charles. O Bom Gigante da Juventus

Rui Pedro Silva

John Charles

Antes de Gareth Bale e Ryan Giggs houve John Charles. Para muitos, continua a ser o melhor jogador galês da história. Nascido em 1931, notabilizou-se no Leeds mas foi na Juventus que atingiu o olimpo e a imortalidade no futebol italiano.

 

Era um jogador diferente de todos os outros: um autómato com inteligência artificial de nível avançado. Era médio ofensivo. Mas podia ser defensivo. E jogava na frente de ataque, mas também podia ser lateral. Era uma coisa no clube e outra na seleção.

 

John Charles era aquilo que lhe pediam para ser porque tinha uma capacidade técnica, física e tática invulgares. Se hoje se costuma dizer que o jogador polivalente não é mais do que um que, na verdade, não é muito bom a fazer o que quer que seja, o galês prova que é possível acontecer o oposto.

 

O «gigante» de 188 centímetros nunca deixou que a altura o impedisse de singrar em várias posições. Nem permitiu que a ausência de competitividade estragasse uma carreira que ameaçava ficar estagnada em Gales. Por isso, com apenas 17 anos, saiu de Swansea, perto da terra onde nasceu, e rumou para Yorkshire, para representar o Leeds United.

 

Estávamos em 1949 e a Inglaterra estava ainda a recuperar das marcas da II Guerra Mundial. O próprio Charles, como toda a família, tinha sido obrigado a fugir durante uma das ofensivas da Luftwaffe. Sem ter de correr pela própria vida, o adolescente começou a sprintar pelo sucesso. E sim, a velocidade era outra qualidade que tinha sem limites.

 

Elland Road não demorou muito tempo a render-se às qualidades de Charles. O início até foi marcado pelos jogos a médio, numa posição mais recuada, mas só quando começou a aparecer mais perto das balizas adversárias é que demonstrou, sem margem para dúvida, que era um diamante por lapidar.

 

A ascensão do Leeds United foi marcada pela consolidação de John Charles como o melhor jogador galês e um dos melhores talentos britânicos da década. Tudo corria na perfeição: em 1956 foi o melhor marcador no ano da promoção ao escalão principal e em 1957 sagrou-se o melhor marcador com 38 golos em 40 jogos.

 

O jogo que impressionou Agnelli

John Charles

John Charles tornou-se maior do que a ilha e despertou a atenção de várias equipas continentais. Quando Umberto Agnelli, então presidente da Juventus com apenas 22 anos, viu o jogo entre Gales e a Irlanda do Norte em Belfast, em abril, deixou de haver margem para dúvida: o jogador era bom e Turim estava à sua espera.

 

A Vecchia Signora não estava sozinha na corrida e o Real Madrid até começou por tomar a dianteira. A Juventus estava a fazer uma época abaixo da média e o perigo de descer de divisão era real. Se isso acontecesse, ir para Itália deixaria de ser uma opção e os merengues apresentavam-se como solução inevitável. Não aconteceu: a Juventus venceu quatro dos últimos seis jogos, garantiu a permanência e a contratação de Charles, perante um Leeds United conformado e a precisar de dinheiro para requalificar o estádio após um incêndio.

 

A chegada de John Charles a Turim mudou radicalmente a realidade da Juventus. O valor da contratação, 65 mil libras, mostrava que o clube não estava para brincadeiras e as negociações incluíram ainda um prémio de assinatura robusto e a oferta de… um Fiat.

 

A Juventus queria títulos e John Charles foi um dos atalhos encontrados. Omar Sívori chegou do River Plate na mesma temporada e ajudou a compor o Santo Tridente, composto ainda pelo italiano Giampiero Boniperti.

 

A postura de Charles conquistou toda a gente, até os adversários. Dizer que o galês fez toda a carreira sem ver um único cartão é um dos seus cartões-de-visita mas ignora que durante uma boa parte não havia propriamente o estatuto de amarelo e vermelho. Apesar disso Charles era, de facto, um exemplo dentro e fora das quatro linhas. O seu fair-play não tinha limites e ia desde colocar a bola fora quando ia isolado para a baliza ao perceber que tinha lesionado acidentalmente um adversário até convidar os adeptos do Torino para beberem vinho com ele depois de estes o terem incomodado de madrugada após um jogo.

 

John Charles não queria saber. Era o que era e a rivalidade não ia mudar isso. Os adeptos da Juventus também não pareciam aborrecidos e atribuíram-lhe a alcunha pela qual ficou famoso: o Bom Gigante (Il Gigante Buono). Afinal, o Santo Tridente ia de vento em popa e os bianconeri conquistaram o título logo na primeira oportunidade. Charles marcou 28 golos, foi o melhor marcador do campeonato e terminou votado como o melhor jogador do ano.

 

Os recordes e a fase decadente

Charles, Sívori e Boniperti

A carreira de John Charles pela Juventus (1957-1962) foi memorável. Venceu três campeonatos e duas Taças de Itália e foi somando golos atrás de golos. Em 1959 ficou em terceiro na corrida à Bola de Ouro, atrás de Di Stéfano e Kopa. No ano anterior tinha feito história pela seleção, ao levar Gales aos quartos de final do Mundial, fase em que perderam com o Brasil de Pelé (1-0).

 

A decisão de abandonar Itália para regressar a Inglaterra foi explicada pela vontade de dar uma educação inglesa aos filhos, mas assumiu-se também como o ponto de viragem no seu sucesso. O Leeds acolheu-o de volta com grande pompa e circunstância mas não fez mais do que 11 jogos e três golos em 91 dias de contrato.

 

Itália foi de novo o destino, agora para a Roma, mas os sinais de que a sua carreira não voltaria a ser a mesma estavam lá. O cérebro continuava a pensar o jogo de uma forma única, mas o corpo já não acompanhava.

 

Danny Blanchflower, figura do Tottenham entre 1954 e 1964, explicou melhor do que ninguém a qualidade de Charles: «Tudo o que ele faz é automático. Quando muda de posição para fazer o golo é instintivo. Os meus pés não pensam por mim como os do Charles fazem por ele. É por isto que nunca serei tão bom como ele.»

 

A fase decadente da carreira não estragou o brilho que alcançou nos tempos áureos. Hoje continua a ser visto como um dos melhores estrangeiros na história da Juventus (em 1997 foi mesmo eleito como o melhor) e foi o primeiro galês a fazer a diferença no futebol mundial.

 

Ter sido eleito o melhor marcador, em anos consecutivos, dos campeonatos inglês e italiano demonstra a sua capacidade única para marcar mas não conta toda a história. John Charles pode não ser falado frequentemente entre os melhores de sempre mas o seu contributo e a marca que deixou no futebol italiano são indesmentíveis.

 

E fez o que fez sendo sempre igual a si mesmo: um Bom Gigante.

03 de Janeiro, 2019

Schumacher. Ou porque os vilões também merecem respeito

Rui Pedro Silva

Michael Schumacher na Ferrari

E se eu vos dissesse que não gostava de Michael Schumacher? O piloto alemão era uma figura que provocava reações intensas antagónicas e sempre houve uma fação que não se deixou render pela hegemonia daquele que pode – e talvez deva – ser visto como o melhor na história da Fórmula 1.

 

Todos se lembram de um piloto que não se importava de ultrapassar o limite para ter o que queria – veja-se aquela corrida de final de época em que se engalfinhou com Damon Hill para garantir que não perdia o ponto de vantagem no Mundial de pilotos -, ou mesmo de alguém que secou tudo à sua volta enquanto construiu a hegemonia mais dominadora da especialidade.

 

O meu motivo é anterior a qualquer um dos mencionados. Também aconteceu em 1994, como no Grande Prémio da Austrália e a rábula com Damon Hill, mas foi surgindo. Não foi um momento específico, foi o início de época.

 

Melhor do que estar a reescrever, mais vale citar diretamente o que escrevi no «Ayrton Senna. A morte para um rapaz de oito anos»: «A glória nunca chegou. Não só Senna não conseguia terminar uma corrida (desistiu tanto no Brasil como no Japão), como o poderio da Williams parecia estar a deslocar-se para a Benetton de Michael Schumacher, vencedor das duas primeiras corridas».

 

Michael Schumacher é, para mim, o princípio do fim de Senna. É o piloto que alterou a hierarquia da Fórmula 1 numa temporada em que Ayrton Senna aparecia como favorito depois de finalmente assinar com a Williams, após perder os títulos de 1992 e 1993 para Mansell e Prost.

 

Ainda por cima, naquela era, os monolugares não eram todos iguais e aquele Benetton de Schumacher – embora hoje seja recordado com algum carinho por ser… radicalmente diferente de todos os outros – parecia uma aberração. Não só pelas cores – o que dizer daquele azul que já nem nos quartos de recém-nascidos se devia ver? – mas pelo formato tosco e matacão do nariz.

Schumacher ao volante de um Benetton

O certo, e indesmentível, é que Michael Schumacher era especial. Pode ter sido campeão pela primeira vez no ano da morte de Ayrton Senna, mas quando o brasileiro morreu, já o alemão ia lançado – tinha duas vitórias, a caminho da terceira, e Senna nem um ponto tinha somado.

 

A passagem de testemunho pode ter sido turbulenta mas Schumacher mereceu-a. Tinha um nome que deixava crianças portuguesas a digladiar-se sobre a pronúncia correta – até aqui a cena com Ayrton era mais simples – e um historial de sacana em vez de bom malandro, mas os resultados falam por si.

 

Schumacher podia ser um vilão na pista. E às vezes até fora dela. Mas sempre foi especial e merece respeito. Depois do bicampeonato com a Benetton, foi ele que ressuscitou a Ferrari, protagonizando uma parceria com a escuderia letal para os adversários. Durante anos, o seu nome foi sinónimo de triunfos, títulos, e ausência de fé para os rivais. Hoje, no dia dos 50 anos, é sinónimo de esperança.

 

O seu estado estar envolto em secretismo pode ser uma questão de privacidade mas dificilmente uma coisa assim poderá alguma vez ser vista como um bom sinal. Schumacher não é o mesmo e não estamos sequer em condições de perceber se alguma vez poderá voltar a ser uma boa fração do que era. Mas o seu nome será sempre eterno.

 

Sacana, sim. Vilão, sim. Mas também um piloto dos diabos. E nenhuma montanha poderá alguma vez destruir esta ideia.  

02 de Janeiro, 2019

O pesadelo de Jackson numa história infelizmente vulgar

Rui Pedro Silva

Jackson Martínez

Eusébio. Van Basten. Futre. Ronaldo. Mantorras. Não é preciso pensar muito para encontrar uma mão cheia de nomes que associamos rapidamente ao estigma de lesões. Jogadores que estiveram presentes, de uma forma ou de outra, no futebol em todas as décadas do futebol europeu desde os anos 60 e que entraram no século XXI.

 

Não é uma questão de qualidade, mas de fama. Fossem joelhos ou tornozelos, as mazelas e o tratamento deficiente, muitas vezes acompanhado pela pressão de voltar a entrar em campo no jogo seguinte, destruiu o bem-estar fora de campo e precipitou o fim nas quatro linhas.

 

Mantorras é o caso mais recente destes cinco mas, ainda assim, aquele em que a negligência humana (não necessariamente médica) mais marca deixaram. Não pela gravidade ou recorrência das lesões mas sim por ser aquele jogador em que o fim começou a ser anunciado demasiado cedo.

 

É demasiado fácil associar Mantorras ao Benfica e a Luís Filipe Vieira. Mas o internacional angolano – que brilhou num Mundial sub-20 que tinha D’Alessandro, Saviola, Kaká, Donovan, Robben, Van der Vaar, Essien, Muntari ou Cech – representou muito mais do que isso.

 

Mantorras era um “menino” que entusiasmava. Que jogava como se ninguém estivesse a ver, embora quem o visse não pudesse esquecer. Que driblava como se fosse dono do relógio, destruindo qualquer tempo de reação aos adversários.

 

Quando o fenómeno explodiu no Alverca, pouco tempo depois de ter arrasado a defesa do Sporting, o Sp. Braga surgiu como adversário seguinte. Mantorras voltou a brilhar, marcou um golo e, depois do jogo, estranhou, em declarações à comunicação social, o que o seu marcador direto (Artur Jorge) lhe foi dizendo repetidas vezes. «Olha que eu tenho família! Não me faças isto, eu tenho família!».

 

Mantorras era assim mesmo. Ingénuo. Não percebia que o seu talento, apesar dos 18 anos, já era suficiente para ridicularizar jogadores com centenas de jogos de experiência na Liga Portuguesa. Não percebia sequer a forma como o estavam a tentar condicionar com aquelas palavras. O brilho que dava a cada lance era tão forte como a ingenuidade que demonstrava a cada momento memorável da carreira – o célebre episódio dos apanhados com Argel é outro grande exemplo.

 

Mantorras viveu, jogou e resistiu enquanto podia. Talvez nunca tivesse sido o reforço sonante do Barcelona pelos 18 milhões (de contos) preconizados por Luís Filipe Vieira mas seria, sem dúvida, muito mais do que um atual símbolo de cómoda e sinónimo de piada associada à expressão que o imortalizou «Deixem jogar o Mantorras!».

 

Deixem jogar o Jackson!

Mantorras tem 36 anos

A carreira de Jackson Martínez tem muito pouco a ver com a de Mantorras. O internacional colombiano foi campeão no FC Porto, jogou um Mundial, protagonizou transferências milionárias – primeiro para o Atlético, depois para a China – e toda a gente percebeu a plenitude do seu potencial. Mais do que ter percebido, atestou-a em campo.

 

O seu regresso a Portugal, para jogar no Portimonense, foi um sinal bastante claro de que não era o mesmo. A lesão no pé tinha arrasado as suas últimas épocas e mais do que uma hipótese de redenção, Portimão era uma chance de renascimento.

 

Jackson não é o mesmo. Como Mantorras o fez durante a carreira, continua a conseguir mostrar toques de brilhantismo aqui e ali, mas as dores impedem-no de o fazer com a regularidade desejada. Não o deixam ser aquilo que já foi, aquilo que ainda conseguiria ser se não vivesse de forma tão precária.

 

A entrevista ao Record vem confirmar o inferno vivido por Jackson. «É uma luta diária! Cada treino, cada momento em que me deito na cama para dormir... Quase todas as noites, por volta das três ou quatro horas da manhã, como se fosse um relógio, o meu sono é interrompido devido a algum incómodo no pé. Depois de alguns minutos passa e volto a dormir. Para treinar-me também não é fácil, não posso fazê-lo dois ou três dias seguidos. Queria muito trabalhar normalmente todos os dias mas os médicos e o fisioterapeuta esclareceram-me que isso era impossível e sigo um programa específico.»

 

Quem vê de fora consegue ser cruel. Nem sempre é fácil respeitar o sacrifício dos outros. A vida de Jackson Martínez é esta: ser jogador de futebol. Sempre foi essa e desde que é homem que não sabe fazer outra coisa. Pode ter ganhado já o suficiente para viver confortável mas a paixão pelo futebol, como tantos outros tiveram antes dele, é demasiado forte para que ponha o seu próprio bem-estar em cima de tudo o resto.

 

Jackson quer continuar a jogar. Quer jogar mais e melhor. Mas as dores não deixam. Cada treino ou jogo é um teste à capacidade de sacrifício – tantas vezes incompreendida – e a recuperação é um calvário constante. É um dependente: não de álcool, droga ou de jogo, mas de futebol.

 

Jackson nunca perdeu o seu sentido de posicionamento. Quem se notabiliza como um predador de área daquele calibre também não terá dificuldade em perceber o que é e onde está na vida. Jackson continua a sofrer porque é fiel a uma paixão. Porque acredita que pode ultrapassar o problema. Porque não se quis limitar a ouvir um não e a deixar que os outros escolhessem por ele.

 

Jackson é um exemplo. E a entrevista que deu humaniza-o de uma forma que, provavelmente, muitos não estariam dispostos a compreender. Afinal, seria mais fácil continuar a atacá-lo por estar em dúvida para jogos-chave ou pelo seu passado de dragão ao peito.

 

Jackson, como Mantorras (e muitos outros antes dele), merecem muito mais respeito do que alguma vez tiveram. Que nunca percamos essa noção.

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