Andy Murray. O estatuto de lenda ninguém lhe tira
Era para ser uma conferência de imprensa igual a tantas outras. Mas não foi preciso esperar muito até se perceber que algo não estava bem. Andy Murray, de voz embargada, confessou que as dores levaram a melhor e que a reabilitação após uma operação à anca não correu como se esperava. Incapaz de ver um futuro positivo, o britânico admitiu, entre lágrimas e longas pausas para se recompor, que o Open da Austrália pode ser o seu último torneio.
Profissional desde 2005, Andy Murray conhece os cantos à casa e há muito que se habituou ao ritual de entrar na sala, sentar-se na mesa com o microfone, encarar os jornalistas de frente e responder a perguntas que, muitas vezes, são tão pouco originais que só é preciso recorrer a meia dúzia de frases batidas.
O que os jornalistas não sabiam era que esta conferência ia ser muito diferente de todas as outras. Com uma simples pergunta de «como é que se sente?», tão habitual para abrir o diálogo com alguém que tem um histórico recente de problemas físicos, o castelo de cartas desmoronou-se.
Andy Murray abriu a alma e só o tom de voz seria suficiente para perceber um ser humano de rastos perante a impotência de voltar a ser o que era: «Não me estou a sentir bem, obviamente. Tenho estado com problemas há muito tempo, com muitas dores… há provavelmente vinte meses já. Fiz tudo o que podia para me sentir melhor mas não tem ajudado muito. Estou melhor do que estava há seis meses mas ainda sinto muitas dores. Tem sido duro».
Era um homem de rosto abatido, voz trémula e nariz fungoso, retendo as lágrimas nos olhos pelo maior tempo possível. «Ainda consigo jogar mas não ao nível que me deixaria feliz. Não é apenas isso. A dor é… demasiado grande. Não é algo que queira continuar, não quero continuar a jogar assim. Acho que tentei tudo o que podia para ultrapassar isto, mas não resultou».
Por esta altura, numa sala com um silêncio ensurdecedor, excluindo a frágil voz de Murray, o discurso foi exatamente para onde se começava a antever. «Falei com a minha equipa e disse-lhes que não conseguia continuar assim. Precisávamos de definir um fim, porque estar a jogar sem ideias de quando é que a dor ia parar… [pausa] disse-lhes que talvez aguentasse até Wimbledon. Era onde… era onde gostava de parar de jogar. Mas não estou certo que o conseguirei fazer».
As notícias não eram novidade para Andy Murray. A decisão estava tomada e tinha tido tempo para dormir sobre o assunto. Mas estar ali, enquanto tenista, a dar uma conferência de imprensa e a verbalizar o que lhe ia na mente e o que ia ser o futuro para o mundo, deixou-o incapaz. Baixou a cabeça, com o chapéu a tapar-lhe a cara e cedeu finalmente às lágrimas. Ouvir da própria voz que provavelmente não teria uma última oportunidade em Wimbledon, a prova-rainha para um britânico, o torneio que lhe garantiu o estatuto de lenda (não apenas por lá ter sido campeão olímpico em 2012 e, no ano seguinte, ter recuperado finalmente o grand slam para um tenista da casa) foi uma tarefa insuportável.
Foi um teste que não podia ultrapassar sem chorar. Num mundo em que tenistas como Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic tendem a transparecer a ideia de que estamos perante super-heróis inquebráveis, Murray apareceu a mostrar que ninguém está imune. E, mais do que isso, que têm sentimentos. Abandonar a maior paixão da vida, aquela que lhe deu tantas alegrias e que o tornou o que é hoje, obrigado pelas dores é uma crueldade para a qual não estava verdadeiramente preparado. Porque nunca ninguém pode estar.
A conferência de imprensa continuou. Murray manteve a cabeça baixa, limpou as lágrimas dos olhos com a mão direita e, mesmo sem ter dado sinal de que estava preparado, um jornalista quebrou o silêncio com a pergunta necessária mas improferível: «Isso quer dizer que este pode ser o seu último torneio?».
Fez-se novamente um silêncio sepulcral. Murray não respondeu logo, nem conseguia se quisesse. Ouvir aquela pergunta arrastou-o novamente para o fundo do poço. Respirou fundo e chorou novamente. Já não eram apenas lágrimas, era um todo corporal, trémulo, incapaz de manter a respiração tranquila.
Percebia-se que o cérebro de Murray estava a mil. Dezenas de combinações de palavras passavam-lhe pela mente naquele momento. Estava à procura da frase certa, sempre com a cabeça baixa. Percebeu-se que tinha aberto a boca para iniciar uma frase mas arrependeu-se. Perdeu coragem. E novamente o mesmo processo. Ganhou calma, recompôs-se, levantou a cabeça e, enquanto limpava novamente as lágrimas dos olhos, respondeu: «Sim, acho que essa é uma hipótese».
Não havia mais nada que pudesse fazer. Tudo o que tinha para dizer estava dito. As dores são insuportáveis e não sabe se conseguirá aguentar a jogar por mais quatro ou cinco meses. Mas não são apenas mais quatro ou cinco meses. São esses em cima de todos aqueles que já aguentou, sacrificando-se, com uma esperança, agora morta, de que havia um futuro diferente a aguardar.
Em janeiro do ano passado, o escocês foi submetido a uma cirurgia à anca que o afastou até junho. Foi uma época ainda mais curta do que o esperado porque fez apenas 14 jogos, provocando nova interrupção em setembro. O objetivo seria conseguir a melhor reabilitação possível com um especialista, mas não houve antídoto para as dores. Não havia nenhuma varinha mágica que o pudesse transformar novamente no homem que tem dois títulos olímpicos, três grand slams (dois deles em Wimbledon) e que foi número um mundial numa era particularmente difícil.
O corpo de Murray poderá nunca mais recuperar deste problema – uma segunda operação é uma hipótese mas as hipóteses de reabilitação total são escassas – e a mente do tenista terá uma grande ferida que só o tempo será capaz de sarar. Mas Andy Murray, enquanto figura ímpar do ténis, nunca será esquecido. Os problemas físicos podem ter-lhe tirado a carreira e a alegria nos courts mas o estatuto de lenda será sempre intocável.