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É Desporto

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11 de Janeiro, 2019

Andy Murray. O estatuto de lenda ninguém lhe tira

Rui Pedro Silva

Andy Murray em lágrimas durante a conferência

Era para ser uma conferência de imprensa igual a tantas outras. Mas não foi preciso esperar muito até se perceber que algo não estava bem. Andy Murray, de voz embargada, confessou que as dores levaram a melhor e que a reabilitação após uma operação à anca não correu como se esperava. Incapaz de ver um futuro positivo, o britânico admitiu, entre lágrimas e longas pausas para se recompor, que o Open da Austrália pode ser o seu último torneio. 

 

Profissional desde 2005, Andy Murray conhece os cantos à casa e há muito que se habituou ao ritual de entrar na sala, sentar-se na mesa com o microfone, encarar os jornalistas de frente e responder a perguntas que, muitas vezes, são tão pouco originais que só é preciso recorrer a meia dúzia de frases batidas.

 

O que os jornalistas não sabiam era que esta conferência ia ser muito diferente de todas as outras. Com uma simples pergunta de «como é que se sente?», tão habitual para abrir o diálogo com alguém que tem um histórico recente de problemas físicos, o castelo de cartas desmoronou-se.

 

Andy Murray abriu a alma e só o tom de voz seria suficiente para perceber um ser humano de rastos perante a impotência de voltar a ser o que era: «Não me estou a sentir bem, obviamente. Tenho estado com problemas há muito tempo, com muitas dores… há provavelmente vinte meses já. Fiz tudo o que podia para me sentir melhor mas não tem ajudado muito. Estou melhor do que estava há seis meses mas ainda sinto muitas dores. Tem sido duro».

 

Era um homem de rosto abatido, voz trémula e nariz fungoso, retendo as lágrimas nos olhos pelo maior tempo possível. «Ainda consigo jogar mas não ao nível que me deixaria feliz. Não é apenas isso. A dor é… demasiado grande. Não é algo que queira continuar, não quero continuar a jogar assim. Acho que tentei tudo o que podia para ultrapassar isto, mas não resultou».

 

Por esta altura, numa sala com um silêncio ensurdecedor, excluindo a frágil voz de Murray, o discurso foi exatamente para onde se começava a antever. «Falei com a minha equipa e disse-lhes que não conseguia continuar assim. Precisávamos de definir um fim, porque estar a jogar sem ideias de quando é que a dor ia parar… [pausa] disse-lhes que talvez aguentasse até Wimbledon. Era onde… era onde gostava de parar de jogar. Mas não estou certo que o conseguirei fazer».

 

As notícias não eram novidade para Andy Murray. A decisão estava tomada e tinha tido tempo para dormir sobre o assunto. Mas estar ali, enquanto tenista, a dar uma conferência de imprensa e a verbalizar o que lhe ia na mente e o que ia ser o futuro para o mundo, deixou-o incapaz. Baixou a cabeça, com o chapéu a tapar-lhe a cara e cedeu finalmente às lágrimas. Ouvir da própria voz que provavelmente não teria uma última oportunidade em Wimbledon, a prova-rainha para um britânico, o torneio que lhe garantiu o estatuto de lenda (não apenas por lá ter sido campeão olímpico em 2012 e, no ano seguinte, ter recuperado finalmente o grand slam para um tenista da casa) foi uma tarefa insuportável.

Andy Murray

Foi um teste que não podia ultrapassar sem chorar. Num mundo em que tenistas como Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic tendem a transparecer a ideia de que estamos perante super-heróis inquebráveis, Murray apareceu a mostrar que ninguém está imune. E, mais do que isso, que têm sentimentos. Abandonar a maior paixão da vida, aquela que lhe deu tantas alegrias e que o tornou o que é hoje, obrigado pelas dores é uma crueldade para a qual não estava verdadeiramente preparado. Porque nunca ninguém pode estar.

 

A conferência de imprensa continuou. Murray manteve a cabeça baixa, limpou as lágrimas dos olhos com a mão direita e, mesmo sem ter dado sinal de que estava preparado, um jornalista quebrou o silêncio com a pergunta necessária mas improferível: «Isso quer dizer que este pode ser o seu último torneio?».

 

Fez-se novamente um silêncio sepulcral. Murray não respondeu logo, nem conseguia se quisesse. Ouvir aquela pergunta arrastou-o novamente para o fundo do poço. Respirou fundo e chorou novamente. Já não eram apenas lágrimas, era um todo corporal, trémulo, incapaz de manter a respiração tranquila.

 

Percebia-se que o cérebro de Murray estava a mil. Dezenas de combinações de palavras passavam-lhe pela mente naquele momento. Estava à procura da frase certa, sempre com a cabeça baixa. Percebeu-se que tinha aberto a boca para iniciar uma frase mas arrependeu-se. Perdeu coragem. E novamente o mesmo processo. Ganhou calma, recompôs-se, levantou a cabeça e, enquanto limpava novamente as lágrimas dos olhos, respondeu: «Sim, acho que essa é uma hipótese».

 

Não havia mais nada que pudesse fazer. Tudo o que tinha para dizer estava dito. As dores são insuportáveis e não sabe se conseguirá aguentar a jogar por mais quatro ou cinco meses. Mas não são apenas mais quatro ou cinco meses. São esses em cima de todos aqueles que já aguentou, sacrificando-se, com uma esperança, agora morta, de que havia um futuro diferente a aguardar.

 

Em janeiro do ano passado, o escocês foi submetido a uma cirurgia à anca que o afastou até junho. Foi uma época ainda mais curta do que o esperado porque fez apenas 14 jogos, provocando nova interrupção em setembro. O objetivo seria conseguir a melhor reabilitação possível com um especialista, mas não houve antídoto para as dores. Não havia nenhuma varinha mágica que o pudesse transformar novamente no homem que tem dois títulos olímpicos, três grand slams (dois deles em Wimbledon) e que foi número um mundial numa era particularmente difícil.

 

O corpo de Murray poderá nunca mais recuperar deste problema – uma segunda operação é uma hipótese mas as hipóteses de reabilitação total são escassas – e a mente do tenista terá uma grande ferida que só o tempo será capaz de sarar. Mas Andy Murray, enquanto figura ímpar do ténis, nunca será esquecido. Os problemas físicos podem ter-lhe tirado a carreira e a alegria nos courts mas o estatuto de lenda será sempre intocável.

11 de Janeiro, 2019

A pior viagem da minha vida

Rui Pedro Silva

Atlético Madrid-Málaga

Vou confessar-vos uma coisa. Sei que os azares existem mas ainda não houve uma viagem que tenha feito que me faça sentir que não voltasse a fazer. Nunca tive voos perdidos, nunca tive acidentes, nunca foi roubado e, apesar de já ter sido obrigado a ficar de fora de um voo de regresso, a compensação financeira… fez jus ao nome e ajudou a abrir espaço para outras viagens.

(Publicado originalmente em atlas de bolso)

 

Por tudo isto, não tenho sequer dúvida no momento de assinalar qual foi a pior viagem da minha vida. Foi em maio de 2014, em Madrid, para ir ver um jogo de futebol: o Atlético Madrid-Málaga. A equipa estava à beira de ser campeã e, como bom sócio (na altura ainda o era), decidi comprar dois bilhetes assim que venceram em Valência, duas semanas antes.

 

Se o Atlético cumprisse a sua parte, vencendo os próximos dois jogos – em Getafe e em casa com o Málaga -, seria campeão. Por isso, aquele jogo de 12 de maio era uma oportunidade única. Até porque qualquer outro desfecho atrasaria a decisão para a última jornada… no Camp Nou contra o Barcelona. Era pegar ou largar, parecia.

Vestidos a rigor

A estratégia estava delineada. Íamos de carro no sábado à hora de almoço, passávamos a noite num hotel – no dia em que a célebre Conchita Wurst venceu o Festival da Canção -, víamos o jogo e voltávamos à noite, pela madrugada dentro.

 

A viagem começou a correr mal antes mesmo de nos fazermos à estrada. O Atlético perdeu em Getafe e o plano tornou-se muito menos infalível. Real Madrid e Barcelona teriam uma palavra a dizer e as contas estavam muito mais complicadas. Ainda assim, naquele dia, tudo podia acontecer: “bastava” que o Atlético vencesse o Málaga e o Barcelona não ganhasse. Ou, num cenário ainda mais surreal, que o Atlético empatasse desde que Barcelona e Real Madrid perdessem.

 

A história parecia jogar contra o Atlético. Não era uma questão de karma, muito menos uma tendência para tudo correr mal quando parece estar ao alcance de um pequeno esforço. É acima de tudo uma grande ironia perceber onde está construído o Vicente Calderón.

 

A nascente, o Paseo de los Melancólicos, paredes-meias com as portas do estádio, batizado pelos moradores por ser um local triste e desolador, capaz de incitar à depressão – isto ainda antes de haver futebol. A poente, o cemitério de San Isidro, que apesar de estar do outro lado do rio é facilmente identificável das bancadas do estádio do Atlético Madrid.

 

O contexto aponta para tristeza e mortes, mas domingo era um dia que se queria de festejos. O Atlético estava a um pequeno passo de um título nacional que escapava desde 1996. O apito inicial estava marcado para as sete da tarde, mas às duas já ninguém conseguia escapar ao ambiente do jogo. O trânsito adensava-se e os lugares de estacionamento eram um bem precioso, o que nos obrigava a procurar a outra margem do rio. Não havia euforia. Não parecia um jogo do título. O estádio ia estar cheio e via-se muita gente com as camisolas do clube – muitas de Simeone e da época em que conquistaram o último título – mas não havia festejos.

Banda que animou as imediações do estádio

Afinal de contas estávamos na tal estrada da melancolia, sentados na sombra da bancada. A contagem decrescente era teimosa, mas uma banda improvisada ajudou a passar o tempo. Os acordes remetiam para alguns dos cânticos mais entoados pelos adeptos e estes respondiam à altura. Quando surgiu o hino, mesmo que com umas notas ao lado, não houve quem ficasse calado. O ritmo puxa por todos e a preparação para o refrão, em crescendo e a puxar por tons heróicos, é a apresentação perfeita para se soltar um “Atleti! Atleti! Atlético de Madrid” mesmo ali a poucos metros de nós e com um eco que aumentava a cada nova voz que se juntava.

 

Parecia capaz de acordar mortos e satisfazer melancólicos. Não havia euforia. Mas havia confiança, havia vontade de fazer história. Já dentro do estádio, o speaker repetia as mesmas indicações de dez em dez minutos: havia bandeiras para agitar, um minuto de silêncio para recordar as vítimas de um acidente em Badajoz e o hino para cantar, mais uma vez, mas sem a habitual música a sair dos altifalantes. E acabava com um confiante “Vamos fazer desta tarde uma tarde memorável!”

 

“Juega cada partido como si fuera el último”, lia-se nas bandeiras brancas e vermelhas que, quando agitadas pelas quatro bancadas do Vicente Calderón, transmitiam uma sensação de não haver uma única alma por ali que não tivesse o mesmo objetivo. Ali, naquele momento, o futebol era a duas cores: vermelho e branco. Na fila da frente, um casal de brasileiros, mais interessados em sentir os lábios um do outro do que em ver o jogo, não eram exceção, mesmo que as camisolas tivessem sido acabadas de comprar numa banca de produtos não oficiais e o patrocínio “Azerbaijan Land of Fire” se tivesse transformado em “Azerbayan Land Off Fire”.

Bancadas vestidas de vermelho e branco

Parecíamos estar numa página de um livro de “Onde está o Wally?”. Sim, toda a gente estava de vermelho e branco, vestida da mesma forma, mas quem é que era preciso encontrar? Quem era o Wally? Quem era o herói da vitória e do título? David Villa não foi. Mas poderia ter sido. Deu início a um festival de oportunidades falhadas – acertou na trave; mais tarde foi Willy Caballero, guarda-redes do Málaga, a negar o golo com grandes defesas para canto. Por todo o estádio havia profetas, não da desgraça, mas da euforia.

 

Eram os que tinham os ouvidos tapados por auscultadores que traziam as últimas novidades do Celta-Real Madrid e Elche-Barcelona. “1-0, golo do Celta”, ouviu-se, dando origem a alguns festejos contidos. Dois minutos depois, o estádio entra em erupção pela primeira vez. Num efeito visual a fazer lembrar a “hola mexicana” festeja-se como se o Elche tivesse acabado de marcar. Afinal, aquele momento provocado pela claque não era mais do que uma reação com atraso ao golo de Vigo.

 

O intervalo chegou com tudo a zeros: em Madrid, com domínio e melhores oportunidades, e no jogo do Barça. “Estão a dominar. O Elche está encostado lá atrás. Acho que não vão aguentar”, diz um homem idoso capaz de pensar que aquela poderia ser a última oportunidade para ver o Atlético campeão. O problema é que mesmo que o Elche aguente, é preciso marcar ali. Não está a ser fácil.

 

A segunda parte é imprópria para cardíacos. A expressão é muitas vezes usada com exagero mas naquele momento é isso mesmo. Os nervos aumentam – dentro e fora de campo – e as oportunidades falhadas levam ao desespero. O Elche até faz a parte dele mas quando o Málaga marca num contra-ataque o estádio cai num abismo. Por alguns segundos, não se ouve um sussurro (tirando um desabafo asneirento bem português que deixa dezenas de espanhóis a olhar para mim) até que, tímida e espontaneamente, voltam os gritos pela equipa.

 

O golo do empate chega apenas oito minutos depois e deixa o Vicente Calderón em estado de empolgamento máximo. Pelo meio, recordam o passado de glória e gritam por Luis Aragonés (três vezes campeão como jogador e uma como treinador), que morreu três meses antes. Logo a seguir, há novo “golo” do Elche festejado.

 

Por muito que se queira festejar, é impossível não procurar os tais profetas para confirmar. «Foi golo do Elche? Foi golo do Elche? Não? Não? Não!» Ainda assim, nada está perdido: “Vamos Atlético. Dez minutos e um golo para sermos campeões!” ouve-se mesmo atrás de nós.

 

Quando o Elche-Barcelona termina, faltam ainda dois minutos dos cinco de descontos em Madrid e está por acontecer o momento que por muito tempo continuará marcado na memória dos adeptos – Adrián recebe na esquerda, flete para o meio, procura o ângulo e... Caballero voa para mais uma defesa fantástica.

 

O fim do jogo é um balde de água fria depressivo. As bancadas despem-se e o Paseo de los Melancólicos enche-se de adeptos. Mas não há festa, não há troca de ideias, não há nada. Quando atravessamos a ponte, um casal mais velho assiste com pena à romaria depressiva. «É incrível. Não se ouve uma palavra. Tanta tristeza», desabafa a mulher. É o silêncio ensurdecedor de uma desilusão.

Paseo de los Melancólicos

Fim da história? Antes fosse. A caminho do carro, parámos num multibanco para levantar dinheiro e… a máquina engoliu o cartão. Perdemos mais de meia hora a contactar o banco – sem grande sucesso – e o regresso a Lisboa foi sendo cada vez mais adiado. Depois, já no meio do trânsito, completamente parado, um homem num carro em sentido contrário dirige-se a nós num tom aparentemente gozão.

 

“Isto não fica por aqui”, diz-me, uma semana antes do tal Barcelona-Atlético e a duas semanas da final da Liga dos Campeões em Lisboa com o Real. “Não fica não, que hoje só páro em Lisboa”, digo-lhe, perspetivando os mais de 600 quilómetros de viagem com o maior melão que o desporto já me proporcionou.

 

Foi a pior viagem, disso não há dúvida. A única atenuante foi mesmo o Atlético ter conseguido conquistar o título em Barcelona. Ainda assim, nunca me vou esquecer daquela madrugada de introspeção.