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É Desporto

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03 de Janeiro, 2019

John Charles. O Bom Gigante da Juventus

Rui Pedro Silva

John Charles

Antes de Gareth Bale e Ryan Giggs houve John Charles. Para muitos, continua a ser o melhor jogador galês da história. Nascido em 1931, notabilizou-se no Leeds mas foi na Juventus que atingiu o olimpo e a imortalidade no futebol italiano.

 

Era um jogador diferente de todos os outros: um autómato com inteligência artificial de nível avançado. Era médio ofensivo. Mas podia ser defensivo. E jogava na frente de ataque, mas também podia ser lateral. Era uma coisa no clube e outra na seleção.

 

John Charles era aquilo que lhe pediam para ser porque tinha uma capacidade técnica, física e tática invulgares. Se hoje se costuma dizer que o jogador polivalente não é mais do que um que, na verdade, não é muito bom a fazer o que quer que seja, o galês prova que é possível acontecer o oposto.

 

O «gigante» de 188 centímetros nunca deixou que a altura o impedisse de singrar em várias posições. Nem permitiu que a ausência de competitividade estragasse uma carreira que ameaçava ficar estagnada em Gales. Por isso, com apenas 17 anos, saiu de Swansea, perto da terra onde nasceu, e rumou para Yorkshire, para representar o Leeds United.

 

Estávamos em 1949 e a Inglaterra estava ainda a recuperar das marcas da II Guerra Mundial. O próprio Charles, como toda a família, tinha sido obrigado a fugir durante uma das ofensivas da Luftwaffe. Sem ter de correr pela própria vida, o adolescente começou a sprintar pelo sucesso. E sim, a velocidade era outra qualidade que tinha sem limites.

 

Elland Road não demorou muito tempo a render-se às qualidades de Charles. O início até foi marcado pelos jogos a médio, numa posição mais recuada, mas só quando começou a aparecer mais perto das balizas adversárias é que demonstrou, sem margem para dúvida, que era um diamante por lapidar.

 

A ascensão do Leeds United foi marcada pela consolidação de John Charles como o melhor jogador galês e um dos melhores talentos britânicos da década. Tudo corria na perfeição: em 1956 foi o melhor marcador no ano da promoção ao escalão principal e em 1957 sagrou-se o melhor marcador com 38 golos em 40 jogos.

 

O jogo que impressionou Agnelli

John Charles

John Charles tornou-se maior do que a ilha e despertou a atenção de várias equipas continentais. Quando Umberto Agnelli, então presidente da Juventus com apenas 22 anos, viu o jogo entre Gales e a Irlanda do Norte em Belfast, em abril, deixou de haver margem para dúvida: o jogador era bom e Turim estava à sua espera.

 

A Vecchia Signora não estava sozinha na corrida e o Real Madrid até começou por tomar a dianteira. A Juventus estava a fazer uma época abaixo da média e o perigo de descer de divisão era real. Se isso acontecesse, ir para Itália deixaria de ser uma opção e os merengues apresentavam-se como solução inevitável. Não aconteceu: a Juventus venceu quatro dos últimos seis jogos, garantiu a permanência e a contratação de Charles, perante um Leeds United conformado e a precisar de dinheiro para requalificar o estádio após um incêndio.

 

A chegada de John Charles a Turim mudou radicalmente a realidade da Juventus. O valor da contratação, 65 mil libras, mostrava que o clube não estava para brincadeiras e as negociações incluíram ainda um prémio de assinatura robusto e a oferta de… um Fiat.

 

A Juventus queria títulos e John Charles foi um dos atalhos encontrados. Omar Sívori chegou do River Plate na mesma temporada e ajudou a compor o Santo Tridente, composto ainda pelo italiano Giampiero Boniperti.

 

A postura de Charles conquistou toda a gente, até os adversários. Dizer que o galês fez toda a carreira sem ver um único cartão é um dos seus cartões-de-visita mas ignora que durante uma boa parte não havia propriamente o estatuto de amarelo e vermelho. Apesar disso Charles era, de facto, um exemplo dentro e fora das quatro linhas. O seu fair-play não tinha limites e ia desde colocar a bola fora quando ia isolado para a baliza ao perceber que tinha lesionado acidentalmente um adversário até convidar os adeptos do Torino para beberem vinho com ele depois de estes o terem incomodado de madrugada após um jogo.

 

John Charles não queria saber. Era o que era e a rivalidade não ia mudar isso. Os adeptos da Juventus também não pareciam aborrecidos e atribuíram-lhe a alcunha pela qual ficou famoso: o Bom Gigante (Il Gigante Buono). Afinal, o Santo Tridente ia de vento em popa e os bianconeri conquistaram o título logo na primeira oportunidade. Charles marcou 28 golos, foi o melhor marcador do campeonato e terminou votado como o melhor jogador do ano.

 

Os recordes e a fase decadente

Charles, Sívori e Boniperti

A carreira de John Charles pela Juventus (1957-1962) foi memorável. Venceu três campeonatos e duas Taças de Itália e foi somando golos atrás de golos. Em 1959 ficou em terceiro na corrida à Bola de Ouro, atrás de Di Stéfano e Kopa. No ano anterior tinha feito história pela seleção, ao levar Gales aos quartos de final do Mundial, fase em que perderam com o Brasil de Pelé (1-0).

 

A decisão de abandonar Itália para regressar a Inglaterra foi explicada pela vontade de dar uma educação inglesa aos filhos, mas assumiu-se também como o ponto de viragem no seu sucesso. O Leeds acolheu-o de volta com grande pompa e circunstância mas não fez mais do que 11 jogos e três golos em 91 dias de contrato.

 

Itália foi de novo o destino, agora para a Roma, mas os sinais de que a sua carreira não voltaria a ser a mesma estavam lá. O cérebro continuava a pensar o jogo de uma forma única, mas o corpo já não acompanhava.

 

Danny Blanchflower, figura do Tottenham entre 1954 e 1964, explicou melhor do que ninguém a qualidade de Charles: «Tudo o que ele faz é automático. Quando muda de posição para fazer o golo é instintivo. Os meus pés não pensam por mim como os do Charles fazem por ele. É por isto que nunca serei tão bom como ele.»

 

A fase decadente da carreira não estragou o brilho que alcançou nos tempos áureos. Hoje continua a ser visto como um dos melhores estrangeiros na história da Juventus (em 1997 foi mesmo eleito como o melhor) e foi o primeiro galês a fazer a diferença no futebol mundial.

 

Ter sido eleito o melhor marcador, em anos consecutivos, dos campeonatos inglês e italiano demonstra a sua capacidade única para marcar mas não conta toda a história. John Charles pode não ser falado frequentemente entre os melhores de sempre mas o seu contributo e a marca que deixou no futebol italiano são indesmentíveis.

 

E fez o que fez sendo sempre igual a si mesmo: um Bom Gigante.

03 de Janeiro, 2019

Schumacher. Ou porque os vilões também merecem respeito

Rui Pedro Silva

Michael Schumacher na Ferrari

E se eu vos dissesse que não gostava de Michael Schumacher? O piloto alemão era uma figura que provocava reações intensas antagónicas e sempre houve uma fação que não se deixou render pela hegemonia daquele que pode – e talvez deva – ser visto como o melhor na história da Fórmula 1.

 

Todos se lembram de um piloto que não se importava de ultrapassar o limite para ter o que queria – veja-se aquela corrida de final de época em que se engalfinhou com Damon Hill para garantir que não perdia o ponto de vantagem no Mundial de pilotos -, ou mesmo de alguém que secou tudo à sua volta enquanto construiu a hegemonia mais dominadora da especialidade.

 

O meu motivo é anterior a qualquer um dos mencionados. Também aconteceu em 1994, como no Grande Prémio da Austrália e a rábula com Damon Hill, mas foi surgindo. Não foi um momento específico, foi o início de época.

 

Melhor do que estar a reescrever, mais vale citar diretamente o que escrevi no «Ayrton Senna. A morte para um rapaz de oito anos»: «A glória nunca chegou. Não só Senna não conseguia terminar uma corrida (desistiu tanto no Brasil como no Japão), como o poderio da Williams parecia estar a deslocar-se para a Benetton de Michael Schumacher, vencedor das duas primeiras corridas».

 

Michael Schumacher é, para mim, o princípio do fim de Senna. É o piloto que alterou a hierarquia da Fórmula 1 numa temporada em que Ayrton Senna aparecia como favorito depois de finalmente assinar com a Williams, após perder os títulos de 1992 e 1993 para Mansell e Prost.

 

Ainda por cima, naquela era, os monolugares não eram todos iguais e aquele Benetton de Schumacher – embora hoje seja recordado com algum carinho por ser… radicalmente diferente de todos os outros – parecia uma aberração. Não só pelas cores – o que dizer daquele azul que já nem nos quartos de recém-nascidos se devia ver? – mas pelo formato tosco e matacão do nariz.

Schumacher ao volante de um Benetton

O certo, e indesmentível, é que Michael Schumacher era especial. Pode ter sido campeão pela primeira vez no ano da morte de Ayrton Senna, mas quando o brasileiro morreu, já o alemão ia lançado – tinha duas vitórias, a caminho da terceira, e Senna nem um ponto tinha somado.

 

A passagem de testemunho pode ter sido turbulenta mas Schumacher mereceu-a. Tinha um nome que deixava crianças portuguesas a digladiar-se sobre a pronúncia correta – até aqui a cena com Ayrton era mais simples – e um historial de sacana em vez de bom malandro, mas os resultados falam por si.

 

Schumacher podia ser um vilão na pista. E às vezes até fora dela. Mas sempre foi especial e merece respeito. Depois do bicampeonato com a Benetton, foi ele que ressuscitou a Ferrari, protagonizando uma parceria com a escuderia letal para os adversários. Durante anos, o seu nome foi sinónimo de triunfos, títulos, e ausência de fé para os rivais. Hoje, no dia dos 50 anos, é sinónimo de esperança.

 

O seu estado estar envolto em secretismo pode ser uma questão de privacidade mas dificilmente uma coisa assim poderá alguma vez ser vista como um bom sinal. Schumacher não é o mesmo e não estamos sequer em condições de perceber se alguma vez poderá voltar a ser uma boa fração do que era. Mas o seu nome será sempre eterno.

 

Sacana, sim. Vilão, sim. Mas também um piloto dos diabos. E nenhuma montanha poderá alguma vez destruir esta ideia.