John Charles. O Bom Gigante da Juventus
Antes de Gareth Bale e Ryan Giggs houve John Charles. Para muitos, continua a ser o melhor jogador galês da história. Nascido em 1931, notabilizou-se no Leeds mas foi na Juventus que atingiu o olimpo e a imortalidade no futebol italiano.
Era um jogador diferente de todos os outros: um autómato com inteligência artificial de nível avançado. Era médio ofensivo. Mas podia ser defensivo. E jogava na frente de ataque, mas também podia ser lateral. Era uma coisa no clube e outra na seleção.
John Charles era aquilo que lhe pediam para ser porque tinha uma capacidade técnica, física e tática invulgares. Se hoje se costuma dizer que o jogador polivalente não é mais do que um que, na verdade, não é muito bom a fazer o que quer que seja, o galês prova que é possível acontecer o oposto.
O «gigante» de 188 centímetros nunca deixou que a altura o impedisse de singrar em várias posições. Nem permitiu que a ausência de competitividade estragasse uma carreira que ameaçava ficar estagnada em Gales. Por isso, com apenas 17 anos, saiu de Swansea, perto da terra onde nasceu, e rumou para Yorkshire, para representar o Leeds United.
Estávamos em 1949 e a Inglaterra estava ainda a recuperar das marcas da II Guerra Mundial. O próprio Charles, como toda a família, tinha sido obrigado a fugir durante uma das ofensivas da Luftwaffe. Sem ter de correr pela própria vida, o adolescente começou a sprintar pelo sucesso. E sim, a velocidade era outra qualidade que tinha sem limites.
Elland Road não demorou muito tempo a render-se às qualidades de Charles. O início até foi marcado pelos jogos a médio, numa posição mais recuada, mas só quando começou a aparecer mais perto das balizas adversárias é que demonstrou, sem margem para dúvida, que era um diamante por lapidar.
A ascensão do Leeds United foi marcada pela consolidação de John Charles como o melhor jogador galês e um dos melhores talentos britânicos da década. Tudo corria na perfeição: em 1956 foi o melhor marcador no ano da promoção ao escalão principal e em 1957 sagrou-se o melhor marcador com 38 golos em 40 jogos.
O jogo que impressionou Agnelli
John Charles tornou-se maior do que a ilha e despertou a atenção de várias equipas continentais. Quando Umberto Agnelli, então presidente da Juventus com apenas 22 anos, viu o jogo entre Gales e a Irlanda do Norte em Belfast, em abril, deixou de haver margem para dúvida: o jogador era bom e Turim estava à sua espera.
A Vecchia Signora não estava sozinha na corrida e o Real Madrid até começou por tomar a dianteira. A Juventus estava a fazer uma época abaixo da média e o perigo de descer de divisão era real. Se isso acontecesse, ir para Itália deixaria de ser uma opção e os merengues apresentavam-se como solução inevitável. Não aconteceu: a Juventus venceu quatro dos últimos seis jogos, garantiu a permanência e a contratação de Charles, perante um Leeds United conformado e a precisar de dinheiro para requalificar o estádio após um incêndio.
A chegada de John Charles a Turim mudou radicalmente a realidade da Juventus. O valor da contratação, 65 mil libras, mostrava que o clube não estava para brincadeiras e as negociações incluíram ainda um prémio de assinatura robusto e a oferta de… um Fiat.
A Juventus queria títulos e John Charles foi um dos atalhos encontrados. Omar Sívori chegou do River Plate na mesma temporada e ajudou a compor o Santo Tridente, composto ainda pelo italiano Giampiero Boniperti.
A postura de Charles conquistou toda a gente, até os adversários. Dizer que o galês fez toda a carreira sem ver um único cartão é um dos seus cartões-de-visita mas ignora que durante uma boa parte não havia propriamente o estatuto de amarelo e vermelho. Apesar disso Charles era, de facto, um exemplo dentro e fora das quatro linhas. O seu fair-play não tinha limites e ia desde colocar a bola fora quando ia isolado para a baliza ao perceber que tinha lesionado acidentalmente um adversário até convidar os adeptos do Torino para beberem vinho com ele depois de estes o terem incomodado de madrugada após um jogo.
John Charles não queria saber. Era o que era e a rivalidade não ia mudar isso. Os adeptos da Juventus também não pareciam aborrecidos e atribuíram-lhe a alcunha pela qual ficou famoso: o Bom Gigante (Il Gigante Buono). Afinal, o Santo Tridente ia de vento em popa e os bianconeri conquistaram o título logo na primeira oportunidade. Charles marcou 28 golos, foi o melhor marcador do campeonato e terminou votado como o melhor jogador do ano.
Os recordes e a fase decadente
A carreira de John Charles pela Juventus (1957-1962) foi memorável. Venceu três campeonatos e duas Taças de Itália e foi somando golos atrás de golos. Em 1959 ficou em terceiro na corrida à Bola de Ouro, atrás de Di Stéfano e Kopa. No ano anterior tinha feito história pela seleção, ao levar Gales aos quartos de final do Mundial, fase em que perderam com o Brasil de Pelé (1-0).
A decisão de abandonar Itália para regressar a Inglaterra foi explicada pela vontade de dar uma educação inglesa aos filhos, mas assumiu-se também como o ponto de viragem no seu sucesso. O Leeds acolheu-o de volta com grande pompa e circunstância mas não fez mais do que 11 jogos e três golos em 91 dias de contrato.
Itália foi de novo o destino, agora para a Roma, mas os sinais de que a sua carreira não voltaria a ser a mesma estavam lá. O cérebro continuava a pensar o jogo de uma forma única, mas o corpo já não acompanhava.
Danny Blanchflower, figura do Tottenham entre 1954 e 1964, explicou melhor do que ninguém a qualidade de Charles: «Tudo o que ele faz é automático. Quando muda de posição para fazer o golo é instintivo. Os meus pés não pensam por mim como os do Charles fazem por ele. É por isto que nunca serei tão bom como ele.»
A fase decadente da carreira não estragou o brilho que alcançou nos tempos áureos. Hoje continua a ser visto como um dos melhores estrangeiros na história da Juventus (em 1997 foi mesmo eleito como o melhor) e foi o primeiro galês a fazer a diferença no futebol mundial.
Ter sido eleito o melhor marcador, em anos consecutivos, dos campeonatos inglês e italiano demonstra a sua capacidade única para marcar mas não conta toda a história. John Charles pode não ser falado frequentemente entre os melhores de sempre mas o seu contributo e a marca que deixou no futebol italiano são indesmentíveis.
E fez o que fez sendo sempre igual a si mesmo: um Bom Gigante.