O pesadelo de Jackson numa história infelizmente vulgar
Eusébio. Van Basten. Futre. Ronaldo. Mantorras. Não é preciso pensar muito para encontrar uma mão cheia de nomes que associamos rapidamente ao estigma de lesões. Jogadores que estiveram presentes, de uma forma ou de outra, no futebol em todas as décadas do futebol europeu desde os anos 60 e que entraram no século XXI.
Não é uma questão de qualidade, mas de fama. Fossem joelhos ou tornozelos, as mazelas e o tratamento deficiente, muitas vezes acompanhado pela pressão de voltar a entrar em campo no jogo seguinte, destruiu o bem-estar fora de campo e precipitou o fim nas quatro linhas.
Mantorras é o caso mais recente destes cinco mas, ainda assim, aquele em que a negligência humana (não necessariamente médica) mais marca deixaram. Não pela gravidade ou recorrência das lesões mas sim por ser aquele jogador em que o fim começou a ser anunciado demasiado cedo.
É demasiado fácil associar Mantorras ao Benfica e a Luís Filipe Vieira. Mas o internacional angolano – que brilhou num Mundial sub-20 que tinha D’Alessandro, Saviola, Kaká, Donovan, Robben, Van der Vaar, Essien, Muntari ou Cech – representou muito mais do que isso.
Mantorras era um “menino” que entusiasmava. Que jogava como se ninguém estivesse a ver, embora quem o visse não pudesse esquecer. Que driblava como se fosse dono do relógio, destruindo qualquer tempo de reação aos adversários.
Quando o fenómeno explodiu no Alverca, pouco tempo depois de ter arrasado a defesa do Sporting, o Sp. Braga surgiu como adversário seguinte. Mantorras voltou a brilhar, marcou um golo e, depois do jogo, estranhou, em declarações à comunicação social, o que o seu marcador direto (Artur Jorge) lhe foi dizendo repetidas vezes. «Olha que eu tenho família! Não me faças isto, eu tenho família!».
Mantorras era assim mesmo. Ingénuo. Não percebia que o seu talento, apesar dos 18 anos, já era suficiente para ridicularizar jogadores com centenas de jogos de experiência na Liga Portuguesa. Não percebia sequer a forma como o estavam a tentar condicionar com aquelas palavras. O brilho que dava a cada lance era tão forte como a ingenuidade que demonstrava a cada momento memorável da carreira – o célebre episódio dos apanhados com Argel é outro grande exemplo.
Mantorras viveu, jogou e resistiu enquanto podia. Talvez nunca tivesse sido o reforço sonante do Barcelona pelos 18 milhões (de contos) preconizados por Luís Filipe Vieira mas seria, sem dúvida, muito mais do que um atual símbolo de cómoda e sinónimo de piada associada à expressão que o imortalizou «Deixem jogar o Mantorras!».
Deixem jogar o Jackson!
A carreira de Jackson Martínez tem muito pouco a ver com a de Mantorras. O internacional colombiano foi campeão no FC Porto, jogou um Mundial, protagonizou transferências milionárias – primeiro para o Atlético, depois para a China – e toda a gente percebeu a plenitude do seu potencial. Mais do que ter percebido, atestou-a em campo.
O seu regresso a Portugal, para jogar no Portimonense, foi um sinal bastante claro de que não era o mesmo. A lesão no pé tinha arrasado as suas últimas épocas e mais do que uma hipótese de redenção, Portimão era uma chance de renascimento.
Jackson não é o mesmo. Como Mantorras o fez durante a carreira, continua a conseguir mostrar toques de brilhantismo aqui e ali, mas as dores impedem-no de o fazer com a regularidade desejada. Não o deixam ser aquilo que já foi, aquilo que ainda conseguiria ser se não vivesse de forma tão precária.
A entrevista ao Record vem confirmar o inferno vivido por Jackson. «É uma luta diária! Cada treino, cada momento em que me deito na cama para dormir... Quase todas as noites, por volta das três ou quatro horas da manhã, como se fosse um relógio, o meu sono é interrompido devido a algum incómodo no pé. Depois de alguns minutos passa e volto a dormir. Para treinar-me também não é fácil, não posso fazê-lo dois ou três dias seguidos. Queria muito trabalhar normalmente todos os dias mas os médicos e o fisioterapeuta esclareceram-me que isso era impossível e sigo um programa específico.»
Quem vê de fora consegue ser cruel. Nem sempre é fácil respeitar o sacrifício dos outros. A vida de Jackson Martínez é esta: ser jogador de futebol. Sempre foi essa e desde que é homem que não sabe fazer outra coisa. Pode ter ganhado já o suficiente para viver confortável mas a paixão pelo futebol, como tantos outros tiveram antes dele, é demasiado forte para que ponha o seu próprio bem-estar em cima de tudo o resto.
Jackson quer continuar a jogar. Quer jogar mais e melhor. Mas as dores não deixam. Cada treino ou jogo é um teste à capacidade de sacrifício – tantas vezes incompreendida – e a recuperação é um calvário constante. É um dependente: não de álcool, droga ou de jogo, mas de futebol.
Jackson nunca perdeu o seu sentido de posicionamento. Quem se notabiliza como um predador de área daquele calibre também não terá dificuldade em perceber o que é e onde está na vida. Jackson continua a sofrer porque é fiel a uma paixão. Porque acredita que pode ultrapassar o problema. Porque não se quis limitar a ouvir um não e a deixar que os outros escolhessem por ele.
Jackson é um exemplo. E a entrevista que deu humaniza-o de uma forma que, provavelmente, muitos não estariam dispostos a compreender. Afinal, seria mais fácil continuar a atacá-lo por estar em dúvida para jogos-chave ou pelo seu passado de dragão ao peito.
Jackson, como Mantorras (e muitos outros antes dele), merecem muito mais respeito do que alguma vez tiveram. Que nunca percamos essa noção.