Shota Arveladze. O goleador que pôs a Geórgia no mapa
Para verdadeiramente compreender o impacto que Shota Arveladze teve no futebol georgiano e europeu é preciso contextualizar o tempo em que viveu. Nascido em 1973, entrou na idade adulta praticamente em cima do desmembramento da União Soviética e num período em que o futebol ainda era fechado a futebolistas estrangeiros.
Só os melhores singravam. A procura era grande mas só os privilegiados conseguiam ter um lugar nas grandes equipas europeias. Não é por acaso que ainda hoje há eras que ainda são recordadas como “os holandeses do Milan”, por causa de Gullit, Rijkaard e Van Basten, ou “os alemães do Inter, por causa de Matthäus, Brehme e Klinsmann.
A Geórgia era um país muito fechado ao mundo mas começou a dar talentos ao futebol europeu que, à conta de nomes esquisitos e facilmente memoráveis, foram ficando no imaginário de milhões de adeptos. Houve Temur Ketsbaia (nascido em 1968), houve Giorgi Kinkladze (1973) e, mais tarde, Giorgi Demetradze (1976). Mas talvez nenhum tenha deixado uma imagem tão marca durante a década de 90 do que Shota Arveladze.
Dínamo Tbilisi como embrião comum
A Geórgia nunca foi a república soviética socialista com mais sucesso no futebol mas desde cedo que o Dínamo da capital se impôs no panorama do futebol nacional e europeu. Com dois campeonatos soviéticos (1964 e 1978) e duas taças (1976 e 1979), o Dínamo também deu cartas na Europa ao vencer a Taça das Taças e 1981 (2-1 vs. Carl Zeiss Jena na final).
Quando a Geórgia passou a ter um campeonato próprio, não houve dúvida de que a equipa iria desfilar a sua qualidade. O palmarés é esmagador: o Dínamo começou por ser campeão em 1990, ainda sem Shota Arveladze, e somou títulos consecutivos até 1999. Em 2000, a hegemonia foi furada pelo Torpedo Kutaisi.
Shota Arveladze foi um produto da formação da equipa e estreou-se pelo plantel principal e 1991, com três golos em sete jogos. Daí evoluiu para 22 em 30 em 1992 e nunca mais perdeu a veia goleadora. Em 1993/94, no primeiro jogo de uma equipa a representar a federação georgiana de futebol, Arveladze entrou na história ao marcar o primeiro golo, na Irlanda da Norte, frente ao Linfield. Foi insuficiente para seguir em frente mas a história estava feita.
A veia concretizadora começou a chamar a atenção dos clubes estrangeiros e o Trabzonspor ganhou a corrida. Só era preciso atravessar uma fronteira e a viagem de carro não chegava aos 600 quilómetros, mas foi o primeiro grande passo rumo a uma dimensão europeia de um jogador com golos no sangue.
Um estrangeiro à conquista da Turquia
«Tinha o sonho de jogar num grande campeonato. Era uma aposta muito grande e não podia errar. O campeonato turco tinha muito dinheiro, com treinadores como Carlos Alberto Parreira, Leo Beenhaker e Graeme Souness. Era por isso que a Turquia era um bom país para servir de trampolim», escreveu Arveladze na sua autobiografia «Yesterday», sobre a mudança para o campeonato turco em 1994/1995, já depois de ter dividido a época anteriores entre Tbilisi e Trebizonda, por empréstimo.
E, claro, havia um fator extra: o irmão gémeo Archil tinha trocado o Dínamo pelo Trabzonspor um ano antes e era mais um fator a correr a favor da mudança de ares.
Os 19 golos em 22 jogos ao serviço do Trabzonspor fizeram os dirigentes turcos avançar para a contratação em definitivo. «Estava adaptado e a Turquia esperava por mim. Foi muito bom mas ainda havia assuntos a tratar. Era preciso que aceitassem pagar o que o Dínamo estava a pedir», disse.
O resto da época correu na perfeição. Arveladze era um herói entre os adeptos, marcou 18 golos em 23 jogos e ajudou a equipa a vencer a Taça da Turquia com dois golos ao Galatasaray na final a duas mãos. «A cidade esperava por este triunfo há muito e ninguém dormiu à noite. Este sucesso fez-me sentir ainda mais confiante nas minhas capacidades.»
O talento para o golo construiu uma narrativa paralela à sede pelo título: os adeptos queriam que Shota Arveladze fosse o melhor marcador do campeonato. E o avançado fez questão de abraçar esse repto com uma adenda: nenhum golo seria de penálti.
Com Arveladze, o Trabzonspor era uma equipa especial, diferente, com futebol espetacular e golos. Os 25 no campeonato garantiram a promessa mas não foram suficientes para evitar a perda do título para o Fenerbahçe, com mais dois pontos. Memoráveis foram os 112 golos da equipa em toda a temporada e a série inédita de 14 triunfos consecutivos.
O Deportivo entrou em cena no final da temporada. A oferta para jogar ao lado de Bebeto era tentadora mas a família falou mais alto. Archil tinha uma lesão grave estava sem jogar há meses. Shota podia seguir para um campeonato muito competitivo mas não teve dúvidas.
«O Archil ir comigo não era uma opção para o Deportivo, uma vez que ia estar mais quatro ou cinco meses sem jogar. Tentei explicar-lhes que aquilo era importante para mim. As negociações duraram dez horas e decidi recusar. Sabia que se me fosse embora, o Trabzonspor deixaria de pagar ao meu irmão e ele teria de continuar a recuperação em Tbilisi, o que seria mau para a carreira dele. Acredito que ele teria feito o mesmo por mim: nunca poria a minha carreira à frente do meu irmão», escreveu.
O fim na Turquia e um sonho chamado Ajax
O cenário de rosas na Turquia não demorou muito a mudar de figurino. O Trabzonspor mergulhou numa crise financeira, a qualidade da equipa diminuiu e o futuro de Shota Arveladze tornou-se uma incógnita gigantesca que o atirou para uma crise de confiança.
Marcou apenas nove golos no campeonato em 27 jogos (16/37 em todas as competições) e todos os dias se perguntava onde continuaria a jogar. Quando saíra da Geórgia, sabia que não tinha margem para errar e que tinha de fazer as escolhas certas. Agora, menos de um ano de ter dito que não ao Deportivo, sentia-se num limbo sem opção, sem salários e com uma mulher grávida.
E, depois, surgiu o Ajax. «Algo que seria impensável tornou-se realidade para mim. Ia fazer parte do topo do futebol europeu e mundial», disse. Antes de seguir viagem para Amesterdão, aconselhou-se com o presidente da federação georgiana de futebol: «Não te limites a ir para a equipa, não ajas como um convidado, faz de conta que já lá jogas há muito tempo».
Era o verão de 1997 e o Ajax ainda vivia na ressaca do título europeu de 1995 e da final de 1996, perdida para a Juventus. Aquela equipa era uma parada de estrelas: tinha Van der Sar, os irmãos De Boer, Danny Blind, o português Dani, Michael Laudrup, Sunday Oliseh, Richard Witschge, Jari Litmanen e, a partir daquele momento, Shota Arveladze.
O cenário encontrado foi radicalmente diferente. «Sempre fui um apaixonado pelo treino. Ali, os exercícios eram como jogos, a tensão e a concentração eram exatamente iguais». Para Shota, a adaptação não foi simples e queria poder jogar todos os jogos.
As primeiras semanas podem ter sido difíceis mas o balanço da primeira época ajudou a cristalizar o legado de Arveladze no futebol europeu. «Marquei 37 golos em 44 jogos e desempenhei um papel crucial no sucesso da equipa», lembrou, referindo-se à dobradinha na Holanda.
«Milhares de adeptos cantaram o meu nome quando voltámos a Amesterdão depois do 5-0 ao PSV na final da Taça. É uma sensação fantástica, senti-me como um dos heróis com tantos gritos aplausos e celebração. Foi um sonho concretizado», disse.
No ano seguinte, Arveladze jogou ao lado daquele que diz ser o melhor jogador georgiano da história: Giorgi Kinkladze. «Se dez anos antes alguém dissesse que íamos jogar juntos no Ajax, provavelmente seriam vistos como malucos», brincou.
Os dois foram vistos como heróis. Eram dois georgianos a jogar no Ajax, campeão nacional, e na Liga dos Campeões. Eram ícones, modelos a seguir. «Gostei de fazer com que os europeus pudessem ver que os georgianos podiam fazer milagres num campo de futebol», escreveu na autobiografia.
Os anos seguintes não conseguiram confirmar o momento glorioso da época de estreia. Morten Olsen foi demitido do cargo de treinador depois da derrota nas Antas com o FC Porto e até 2001, Arveladze só venceu mais um título: a Taça em 1999. Pior do que isso, só por uma vez voltou a marcar mais de dez golos.
Rangers e o regresso à Holanda
O balão de oxigénio foi ficando cada vez mais curto e a solução foi procurar um novo desafio. O Rangers, onde estava o grande amigo Ronald de Boer – talvez fosse uma relação especial entre gémeos – surgiu como opção e, mais uma vez, Shota fez o que melhor sabia fazer: marcar golos.
Em quatro temporadas, até 2004/05, somou 57 golos em 132 encontros e conquistou cinco títulos (dois campeonatos escoceses). Por esta altura, o seu nome já era um dos mais marcantes do futebol europeu.
O futebol georgiano estava mais famoso, graças a Kaladze, mas Arveladze continuava a ser a fiel referência de uma era em que as seleções mais desconhecidas eram famosas por um, dois jogadores no máximo. Arveladze era o caso mais claro disso.
Golos, golos e mais golos foram o seu cartão de visita por onde quer que tenha passado e os dois últimos anos de alto nível, já depois de ter regressado à Holanda para representar o AZ Alkmaar, foram a prova disso, com 48 golos em 89 jogos.
O fim da carreira marcou um objetivo antigo: o futebol espanhol. Mais de dez anos depois de ter dito não ao Deportivo, Shota Arveladze aceitou uma proposta do Levante e representou a equipa em 2007/08 em apenas quatro jogos… sem marcar. Foi um final triste que não mancha em nada a dimensão gigantesca de um nome como o de Shota Arveladze.
Até porque os recordes continuam por bater. Com 26 golos (61 jogos), Shota continua a ser o maior goleador na história do país.