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É Desporto

É Desporto

08 de Dezembro, 2018

Uma experiência de sons e violência patrocinada pelos Bruins

Rui Pedro Silva

TD Garden na sua versão de hóquei no gelo

Por esta altura já se devem ter apercebido que consumimos – em grande escala – tudo o que é desporto norte-americano. Mesmo em casa, nas madrugadas e aos fins-de-semana, gastamos horas a ver jogos da NBA (bom, aqui mais eu do que a Sarah), de basebol e de futebol americano. Em tempos, mesmo antes de nos conhecermos, cheguei mesmo a ver um jogo de lacrosse indoor quando fui a Boston pela primeira vez.

 

(publicado originalmente no atlas de bolso)

 

Provavelmente já terão pensado que falta aqui uma modalidade dos big-four: o hóquei no gelo. Para nós, é o patinho-feio. Em Portugal nunca vemos e quando vamos aos Estados Unidos raramente está na nossa lista de prioridades. Afinal, o dinheiro não estica e por muito que queiramos a experiência completa, é sempre preciso fazer opções.

 

Por outro lado, também somos incapazes de dizer que não a um desafio. Em abril de 2017, na primeira vez em que fomos a Boston juntos, havia um jogo dos Bruins logo na primeira noite. A experiência foi muito semelhante ao que aconteceu agora em novembro: fazer o voo, chegar, instalar e sair pouco tempo depois a caminho do TD Garden.

 

O que se espera quando se vai ver um jogo de hóquei no gelo? «Porrada!», talvez fosse a primeira resposta da Sarah. Mais do que a violência das placagens associada a cada jogada, há sempre uma abertura para os jogadores perderem a paciência e sentirem que está na altura de tirar as luvas e partir para a troca de mimos, perante o olhar atento dos adversários e da equipa de arbitragem, que espera um momento seguro para intervir e aplicar a sanção habitual.

Cadeiras amarelas e pretas dominam o TD Garden

Mas um jogo de hóquei no gelo é mais do que isso. A tradição em Boston é grande – os Bruins são uma das seis equipas que estiveram na génese da NHL – e até as cadeiras do pavilhão o comprovam. Sim, se alguma vez se perguntaram por que razão o pavilhão onde jogam os Celtics está cheio de cadeiras amarelas e pretas, é porque o primeiro inquilino do contrato com os proprietários é a equipa de hóquei no gelo.

 

O frio que emana do rinque

 

Os preparativos para um jogo de hóquei não são muito diferentes dos outros. A romaria até à estação de comboio onde está o pavilhão começa horas antes e é impossível não percebermos que há jogo, à conta das centenas de camisolas larguíssimas – especialmente por serem usadas sem as proteções que os jogadores têm – que circulam pelos arredores.

O urso que nos recebe à entrada

Quando subimos as escadas rolantes para a entrada oficial no pavilhão, deparamo-nos com um enorme urso, uma oferta de outras núpcias que deixou o dono sem saber o que fazer e acabou por figurar no anel exterior da bancada. Depois, assim que se passa pelas portas de acesso às cadeiras, há uma corrente de ar frio que nos recorda perfeitamente o que estamos ali a fazer.

 

O público-alvo também é diferente. Aliás, o mais curioso (sobretudo se os jogos forem vistos de “seguida”) é perceber como os espetadores são tão diferentes de modalidade para modalidade. A multiculturalidade do basquetebol distancia-se dos desportos de nichos como o basebol – mais virado para as comunidades latinas – ou o hóquei no gelo. Quando estivemos em Atlanta, por exemplo, vimos mais brancos e latinos no jogo dos Braves do que nos três dias inteiros que passeámos pela cidade.

 

No hóquei no gelo reina o instinto, o grotesco, o animal. No rinque e na bancada. Os festejos por cada placagem mais violenta transportam-nos (como se fosse possível) para o Coliseu de Roma. O público quer golos e vitórias mas está sedento de violência, das jogadas mais agressivas, das pancadas no disco que ecoam pelo pavilhão e que atingem o auge quando entram em rota de colisão com um dos ferros da baliza.

 

O hóquei no gelo é também um desporto de sons. Talvez mais do que qualquer outro. Mesmo sentados na última fila do pavilhão, como caçadores que observam a presa (os Bruins) de longe, não conseguimos escapar a esta sensação. Os patins a cravar no gelo, o impacto das proteções de cada jogador numa jogada junto à parede do campo, os festejos nas bancadas… o disco a embater no poste. E, no auge, a sirene que toca assim que há um golo.

 

É o descarregar de toda a adrenalina. Não é uma emergência – embora o som seja igual à buzina de um grande navio – mas sim o toque de saída para a celebração. Cada equipa tem uma música que passa logo a seguir à sirene, que fica associada diretamente aos golos, e no caso dos Bruins é a Kernkraft 400 dos alemães Zombie Nation. É uma música eletrónica, pouco criativa, mas que se associa na perfeição a todo aquele ambiente. E que fica no ouvido.

 

Passada a euforia, já depois dos festejos e do recomeço do jogo, o comentador do pavilhão faz o anúncio oficial do golo, com o marcador e os autores da assistência. A terminar, religiosamente, solta uma espécie de uivo que é replicado por milhares de pessoas.

Bruins venceram 4-0

Sabem o que dizem do futebol em Portugal como sítio perfeito para descarregar as emoções do quotidiano? Bem, ver um jogo de hóquei no gelo consegue ser ainda mais adequado para libertar stress… nos momentos adequados.

 

A cada intervalo – um jogo tem três partes de vinte minutos – entram os famosos zambonis (uma espécie de trator que garante o estado perfeito do piso), muitas vezes com crianças no lugar do pendura. Assim, num abrir e piscar de olhos, a arena de gladiadores sobre o gelo torna-se num lugar para crianças inocentes cumprirem um sonho enquanto acenam para bancadas que reentraram numa fase de tranquilidade.

 

Resumindo, ver um jogo de hóquei no gelo nos EUA é uma experiência única. Tem momentos violentos mas não deixará de ser uma opção muito interessante, mais não seja para quem tenha algum interesse sociológico.