O sucesso da regeneração do futebol inglês
Venceram o título em seis edições consecutivas da Taça dos Campeões Europeus e conquistaram 14 de 48 troféus europeus possíveis em década e meia. Num período em que o futebol inglês passeava na Europa, a tragédia de Heysel e a crise interna potenciaram o hooliganismo, a perda de qualidade e o desinteresse dos espetadores. O caminho de volta ao topo foi tortuoso mas o regresso triunfal às competições europeias, culminado com o título do Manchester United na Taça das Taças, e as negociações para a criação da Premier League estabeleceram as raízes do caso de regeneração de maior sucesso na história do desporto europeu.
A hegemonia do futebol inglês na Europa
Nunca um país teve um período tão brilhante no futebol europeu como a Inglaterra entre 1975 e 1985. Neste período de onze temporadas, as equipas inglesas só não estiveram na final da Taça dos Campeões Europeus em duas edições: 1976 e 1983.
A Europa ainda não tinha visto nada assim, nem voltaria a ver. Sim, a prova começou com o domínio espanhol, com seis títulos do Real Madrid e nove finais espanholas em onze edições, mas oito delas foram com os merengues. Foi o sucesso de um clube, ajudado pelo Barcelona em 1961, e não do país em si.
O mesmo se passou com o virar para a década de 1970. Depois dos quatro títulos holandeses, iniciados pelo Feyenoord mas catapultados pela hegemonia do Ajax de Cruiijff (1971-1973), chegou a era de Beckenbauer, com o tricampeonato do Bayern Munique (1974-1976). Foi precisamente nesta altura que os clubes ingleses apareceram, sem dar hipótese à concorrência.
O ponto de partida foi dado pelo Leeds, com a final perdida em 1975, mas o pilar do sucesso foi o Liverpool, campeão em 1977, 1978, 1981 e 1984, e finalista vencido em 1985. Mas também o Nottingham Forest (1979 e 1980) e o Aston Villa (1982) contribuíram para esta fase hegemónica.
O futebol inglês ao nível de clubes vivia o seu melhor momento de sempre. Até à tal final do Leeds, o país só tinha uma final, com o Manchester United em 1968. Depois, de repente, tudo mudou. Inspirados nos modelos de treinadores como Bob Paisley e Brian Clough, os ingleses provaram de facto – possivelmente pela primeira vez – que estavam à frente do futebol mundial.
Nas competições de segunda linha europeia, o sucesso até tinha chegado logo no início da década. Manchester City (1970) e Chelsea (1971) haviam vencido a Taça das Taças, enquanto na Taça UEFA o domínio tinha sido plantado com os troféus de Tottenham (1972) e Liverpool (1973), sendo depois continuado pelo próprio Liverpool (1976), pelo Ipswich Town de Bobby Robson (1981) e pelo Tottenham (1984). Na elite do futebol, na Taça dos Campeões Europeus, os seis títulos consecutivos constituíram um novo recorde que ainda hoje não foi alcançado – poderá ser igualado em 2019 se um clube espanhol voltar a conquistar a Liga dos Campeões.
Os triunfos eram sobretudo coletivos. Um inglês – Kevin Keegan – até conseguiu fazer uma dobradinha de Bolas de Ouro (1978 e 1979) mas só aconteceu depois de ter abandonado o Liverpool rumo a Hamburgo. Nas provas por seleções, contudo, o sucesso inglês era uma miragem. A Inglaterra falhou as fases finais dos Mundiais de 1974 e 1978 e não conseguiu atingir as meias-finais em 1982. Nos Campeonatos da Europa, os fracassos também foram consecutivos: fora do Euro-1972, do Euro-1976 e do Euro-1984 e eliminada na fase de grupos do Euro-1980.
Entre 1970 e 1985, o futebol inglês conquistou 14 de 48 troféus possíveis. Não era apenas um acaso: o domínio era claro e havia pelo menos uma conquista a cada quatro finais disputadas. Parecia que só uma tragédia poderia desviar este comboio que seguia a todo o vapor.
A tragédia de Heysel e a travessia no deserto
Os fins das hegemonias nem sempre são fáceis de definir. Por vezes, há pequenas réplicas que surgem pouco tempo depois que são de difícil enquadramento e não se consegue perceber se são de facto um novo ponto ou apenas o último sinal do anterior. No caso do poder do futebol inglês na UEFA, não há sequer dúvida: a hegemonia morreu na Bélgica, no Heysel Stadium, a 29 de maio de 1985. E, com ela, morreram também 39 pessoas.
O Liverpool estava na sua quinta final em nove temporadas e defrontava a Juventus de Michel Platini. Os reds, orientados por Joe Fagan, tinham deixado Lech Poznan, Benfica, Austria Viena e Panathinaikos pelo caminho e eram os campeões em título. Era o Liverpool de Ian Rush e Kenny Dalglish. Do outro lado, estava uma equipa que já os tinha derrotado na final da Supertaça Europeia quatro meses antes (2-0) e que contava ainda com Boniek e Rossi.
A Vecchia Signora voltou a levar a melhor, com um golo de penálti convertido por Platini, mas o desfecho do jogo pouco importou. Ainda antes do pontapé de saída, um grupo de adeptos do Liverpool desencadeou uma cena de pancadaria ao invadir uma zona exclusiva de adeptos da Juventus, provocando o pânico e o colapso de um muro do estádio de Bruxelas. A confusão provocou a morte de 39 pessoas e ferimentos a outras 600. A tragédia não impediu, porém, que o jogo se desenrolasse: apenas o atrasou por uma hora.
A derrota do Liverpool pode não ter sido mais do que karma instantâneo mas a mão pesada da UEFA ia ser o grande destaque daquela final. Ninguém perdoou aos adeptos do Liverpool o que tinha acontecido e o organismo tomou medidas, já depois de a própria Margaret Thatcher, primeira-ministra à altura, ter pressionado a federação inglesa a retirar os clubes das competições internacionais. A UEFA não precisou de idêntica recomendação para, dois dias depois, banir as equipas inglesas por um «período indeterminado de tempo». A exclusão acabou por ser de cinco temporadas – entre 1985/1986 e 1989/1990 – com o Liverpool a sofrer uma época extra de «brinde».
Não se pode analisar o que se passava nesta altura no futebol britânico sem perceber o contexto político e social deste período. A Inglaterra vivia um período de forte recessão e, para tentar superar a crise, Thatcher aumentou os impostos e cortou na despesa pública. O descontentamento social aumentou, as greves dos mineiros foram um dos momentos mais quentes da década, e o número de desempregados chegou a ultrapassar os três milhões de pessoas.
O futebol era o local onde os ingleses descarregavam as frustrações. A violência e o hooliganismo aumentou e o adeus às provas da UEFA só ajudou a aumentar o desinteresse pelas equipas. Não era apenas o país que estava em crise: era também a sua modalidade mais sagrada. Os clubes não tinham dinheiro para investir, os adeptos não tinham dinheiro para comprar bilhetes e os bons jogadores preferiam ir para o estrangeiro. A espiral de decadência do futebol inglês surgia em contraciclo com a recuperação de campeonatos como o espanhol e, sobretudo, o italiano.
Era obrigatório encontrar uma solução antes que fosse demasiado tarde.
O regresso triunfal dos ingleses à UEFA
A temporada de 1990/91 marcou o regresso dos clubes ingleses às competições europeias. Numa altura em que as sementes para o brilhante futuro do campeonato inglês já estavam a ser lançadas, o Manchester United liderou o regresso da armada britânica na UEFA.
O Liverpool deveria ter sido o representante inglês na Taça dos Campeões Europeus, fruto do título (o último até hoje) no campeonato em 1990, mas como a exclusão se manteve para os reds por mais um ano, não houve qualquer equipa inglesa na competição mais importante.
O mesmo não se pode dizer da Taça UEFA (Aston Villa) e da Taça das Taças (Manchester United). O regresso à ribalta fez-se sem grande estrondo: a Inglaterra tinha perdido o seu estatuto e só tinha direito a apurar uma equipa para a Taça UEFA, distante das quatro da RFA, da Itália e da Espanha, e das três da Bélgica, Holanda, Portugal, Roménia e União Soviética.
O Aston Villa, campeão europeu há menos de dez anos, ultrapassou o Banik Ostrava da Checoslováquia sem problema na primeira ronda mas embateu no futuro campeão Inter à segunda ronda. Os golos de Kent Nielson e David Platt até deram vantagem na primeira mão (2-0), mas tudo foi diferente em Itália, com Klinsmann, Berti e Bianchi a marcarem no Giuseppe Meazza (3-0).
Por esta altura, no início de novembro de 1990, o Manchester United seguia de vento em popa na Taça das Taças. Os húngaros do Pecsi Mecsek tinham ficado pelo caminho (2-0 e 1-0), tal como os galeses do Wrexham (3-0 e 2-0).
Estes eram os red devils de Alex Ferguson e tinham um plantel com nomes experientes como Steve Bruce, Gary Pallister, Bryan Robson, Denis Irwin, Mark Hughes e Brian McClair. Da brilhante fornada que marcaria a década, apenas Ryan Giggs fazia parte do plantel, embora não tenha disputado qualquer minuto na UEFA.
O ano mudou de 1990 para 1991 e, em março, o Manchester United estava nos quartos de final, juntamente com Juventus, Barcelona, Dínamo Kiev, Sampdoria, Montpellier, Legia Varsóvia e Liège. Os franceses assustaram ao empatar em Old Trafford, mas o jogo da segunda mão foi resolvido facilmente com golos de Clayton Blackmore e Steve Bruce.
Depois, nas meias-finais, o Legia Varsóvia não chegou sequer a importunar. No ano de regresso dos clubes ingleses às competições europeias, o Manchester United ia estar na final… contra as primeiras raízes da Dream Team de Johann Cruijff no Barcelona.
Em Roterdão, a 15 de maio de 1991, o Manchester United fechou com a chave de ouro o princípio deste novo capítulo. Mark Hughes bisou (67’ e 74’), tornando irrelevante o golo de Ronald Koeman aos 79 minutos. Seis anos depois de Heysel, os ingleses tinham finalmente um motivo para festejar. O futuro era promissor mas ainda era preciso arrumar a casa na ilha.
As sementes da Premier League ganham vida
O regresso das equipas inglesas às competições europeias coincidiu com o trabalho de reorganização do futebol nacional. O país estava a soltar-se das amarras da recessão, os episódios de violência diminuíam, a segurança nos estádios aumentava e a presença na meia-final do Mundial em 1990 servia de importante tónico para avançar com a reestruturação.
Havia um produto de sucesso, como o passado já o tinha tão bem demonstrado, mas era preciso adaptá-lo a uma nova realidade, potenciando-o e, com isso, garantindo o futuro do projeto. Basicamente, seria algo em que todos sairiam a vencer e ninguém poderia perder.
Tudo girou à volta de dinheiro, claro está. Mas com o dinheiro aumentava a projeção, aumentava a segurança, aumentava a qualidade dos jogadores recrutados e, como consequência natural, do produto apresentado. Foi este o momento em que se percebeu a relevância dos direitos televisivos. Se o produto ia ser de topo, não havia razão para privar milhões de pessoas – em Inglaterra e no estrangeiro – de o ver. O futebol continuaria a ser um desporto para estádios cheios, vibrantes e dinâmicos, mas o passo fulcral viria acompanhado da caixinha mágica.
Arsenal, Everton, Liverpool, Manchester United e Tottenham foram os representantes naturais das reuniões. Eram as equipas mais atrativas de Inglaterra, tinham um total de 45 títulos conquistados e moviam o maior número de adeptos.
A estratégia televisiva do produto era clara: melhores equipas com mais adeptos geram mais interesse do que as outras. Este foi o ponto de partida fundamental para a criação da Premier League. Os big five eram o conteúdo premium, faltava agora definir o que acontecia com o resto.
A relação distante entre a Federação Inglesa de Futebol e a Liga Inglesa foi o trunfo utilizado pelos promotores da Premier League. Com o apoio da primeira, a segunda não teria capacidade para resistir. A criação de uma nova competição, moldada pelos interesses televisivos e por milhões de libras a alimentar as ambições dos clubes, seria uma realidade.
Por isso, em maio de 1992, o projeto saiu finalmente do papel e deu origem à criação formal da Premier League. A partir da temporada seguinte, o campeonato ia ser mais profissional, arrancando com um total de 24 equipas. O Manchester United somou o primeiro título da história da competição, dando também o mote para aquilo que seria o (des)equilíbrio de forças para as décadas seguintes.
De violento e perigoso, o futebol inglês passou a ser vibrante e atrativo. Os talentos nacionais deixaram de pensar em emigrar e os melhores jogadores estrangeiros começaram a olhar para a Premier League com outros olhos.
A violência desaparecera. Os estádios nunca mais voltaram a estar vazios. O fluxo de chegada de treinadores e estrangeiros moldou o futebol inglês para o tornar no campeonato mais interessante do mundo. A hegemonia europeia nunca mais foi recuperada – em 26 anos, as equipas inglesas só foram campeãs europeias quatro vezes (Manchester United em 1999 e 2008, Liverpool em 2005 e Chelsea em 2012) - mas o produto interno tem tanta qualidade que esse chega quase a ser visto como um assunto periférico.
As equipas têm rendimentos de centenas de milhões de euros – mesmo as que lutam pela permanência – e não ficam em nada atrás dos antigos rivais espanhóis e italianos. E se a Juventus teve um papel fulcral no fim da hegemonia inglesa na década de 80, também é indesmentível que nenhum outro campeonato decresceu tanto na qualidade nos últimos vinte anos como o italiano.
Com violência, casos de racismo e uma hegemonia interna pouco saudável, é em Itália que se está à procura de uma salvação agora. O modelo inglês teve sucesso mas dificilmente será aplicado da mesma forma por ares transalpinos. Os tempos são outros e é preciso fazer alguma coisa… se é que há realmente alguma coisa a fazer.