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É Desporto

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27 de Outubro, 2018

Uma madrugada dramática a ver basebol

Rui Pedro Silva

Festa final dos Dodgers

Os jogos de basebol têm má fama. São longos, é fácil perder a atenção e são poucos os momentos que verdadeiramente definem o resultado final. O estereótipo existe, e muitas vezes tem razão de ser, mas esse não foi o caso durante as sete horas e vinte minutos que durou o jogo três da World Series entre os Boston Red Sox e os LA Dodgers.

 

Foi um recorde. Nunca um jogo da final tinha sido tão longo, tanto em número de innings (18) como em volume de horas. O tempo deixou de ser uma variável dependente do fuso horário. O jogo acabou muito tarde, independentemente do ângulo que se quiser ver: em Portugal começou à 1h10 e terminou às 08h30 (oito e meia da manhã!). Em Boston, eram já 3h30. E na Califórnia, os mais de 40 mil espetadores que fizeram questão de marcar presença num jogo que tinha início previsto para pouco depois das cinco da tarde, só ficaram livres… depois da meia-noite!

 

Qualquer encontro da World Series é importante e vivido de forma tensa, mas o jogo 3 de 2018 ganhou um estatuto transcendental que dificilmente conseguirá ser repetido tão cedo. Mais do que o teste que foi aos jogadores e equipa técnica, foi também uma experiência dura para os adeptos. Eu, fã dos Red Sox, me confesso.

 

A tensão num jogo destes deixa-nos o coração em farrapos. Desde logo, estamos em estado de alerta total e com o batimento acelerado num momento do dia em que o corpo está habituado a descansar. Estão a ver o que sentem quando o vosso Benfica, FC Porto ou Sporting está 90 minutos em stress? Agora acrescentem-lhe seis horas em cima.

 

Não há forma fácil de ver um jogo de basebol quando há tanto em jogo. Num encontro como o desta madrugada, a frustração e a esperança substituem-se instantaneamente uma à outra. Somos forçados a encontrar talismãs, a mudar de posição, a agarrar numa bola que temos da equipa para aliviar o stress, a destaparmo-nos para arrefecer o corpo por estarmos a suar durante os innings mais tensos.

 

E os minutos vão passando. Já vamos com mais de três horas em cima e os Red Sox estão a perder, no oitavo inning. Estou acompanhado mas dorme-se ao meu lado. No jogo 2, o resultado virou durante um período em que estávamos ambos acordados. «Se for preciso, acorda-me quando for para dar sorte!», diz-me, acreditando ser um verdadeiro talismã.

 

As superstições e amuletos no desporto servem para trazer esperança e não devemos brincar com elas. Acordo-a nessa altura: «Se é para dar sorte, chegou o momento», digo-lhe. Acede e… os Red Sox empatam com um home run de Jackie Bradley Jr. minutos depois. Está 1-1. Os lances sucedem-se mas as equipas parecem estar presas uma à outra. Passa das quatro da manhã e ela não se aguenta mais: «Acho que não vou conseguir ver mais, vou voltar a dormir.» Respondo-lhe, na brincadeira, ignorando o que me esperava, que se o jogo durar até às nove da manhã, acordo-a às oito e meia. 

Vou fazer o resto do caminho sozinho. Reforço o contexto: estamos a meio da madrugada, toda a gente dorme no prédio e recalco toda a tensão silenciosamente. Não há manifestações ruidosas, gritos de golo, asneiras, desabafos em voz alta como é tão habitual acontecer no futebol. Ali pareço praticamente o guarda-redes no momento do penálti, solitário, a sofrer silenciosamente.

 

Quando o jogo vai para innings extra, a tensão sobe de tom. Como os Red Sox jogam fora de casa, os Dodgers são os segundos a atacar e qualquer lançamento pode ditar o final do jogo. Cada um é um exercício agressivo para o coração, a qualquer momento a esperança pode desabar em frustração. Não é uma experiência amigável e o jogo teve não um, nem dois, nem três, nem quatro (…), mas nove innings extra. Foi um jogo extra inteiro com o coração nas mãos enquanto o mundo dormia à nossa volta.

 

Os Red Sox ameaçam. Estiveram muito perto de marcar logo no início do prolongamento mas a corrida de Ian Kinsler é travada de forma brilhante por um arremesso do outro mundo de Cody Bellinger. Desespero. Como foi possível desperdiçar uma oportunidade tão boa?! O passo seguinte é sempre o mesmo: normalizar o que aconteceu. Perceber que foi, efetivamente, uma jogada espetacular dos Dodgers, focarmo-nos na beleza do momento em si e não na dor que nos provocou. 

As unhas vão desaparecendo e as idas à casa de banho repetem-se. Ora agarramos a bola, ora não queremos nada com ela. Tiramos o som à televisão para reduzir os estímulos nervosos, especialmente sendo o jogo no estádio dos Dodgers. E, depois, chega o 13.º inning. Os Red Sox marcam finalmente, com muita sorte à mistura, e tudo parece encaminhar-se. Podiam ter sido mais mas a vantagem é de apenas um ponto.

 

A equipa está nas últimas. O lançador que estava previsto começar o jogo 4 já foi obrigado a entrar em campo (numa altura em que todos os suplentes de campo já foram utilizados e não há mais margem para alterações). Entre os maiores contribuidores ofensivos, apenas Mookie Betts continua em campo, por isso conseguir marcar parece constituir uma oportunidade perfeita para fazer o 3-0 na série.

 

Falta eliminar três jogadores. Elimina-se o primeiro, elimina-se o segundo. Só falta um. Já há um jogador na segunda base mas aparentemente está tudo controlado. Eovaldi, o lançador em campo, tem dado mais do que provas desde que chegou em julho que é fiável. De repente, o mundo desaba-nos em cima. Yasiel Puig põe a bola em jogo e Ian Kinsler, numa jogada difícil mas exequível, falha completamente o lançamento para a primeira base, não consegue garantir a eliminação e… abre caminho para o empate.

 

O momento de frustração é o maior que alguma vez senti em onze anos de adepto dos Boston Red Sox. Ver um triunfo fugir assim na World Series é o último nível de dor que se pode sentir num jogo de basebol – ou em qualquer outro desporto. Levanto-me, vou-me embora. Preciso de recuperar, dar um descanso ao coração, e faço um chá, ignorando o que está ainda para acontecer naquele inning. Preciso de acalmar e repor as coisas em perspetiva. Afinal, por muito que sofra, é apenas um jogo. Convenço-me disso mesmo, como tenho aprendido a fazer desde há muito em várias modalidades. Imagino a dor que os adeptos terão sentido na final de 1986 com o erro de Bill Buckner, que impediu o primeiro título desde 1918. 

Quando volto, mais calmo, o inning acabou e o corpo parece ter entrado num estado de dormência. Convenço-me que a equipa vai perder, preparo-me desde logo para esse desfecho. São seis e meia da manhã e o chá ajuda. O jogo… nem por isso. Entre os inúmeros planos de adeptos dos Dodgers a sofrer, sou invadido por uma sensação de empatia. Estão ali, ao vivo, a sofrer e não veem a sua equipa ser campeã desde 1988. Eu, novato nestas andanças, já festejei os títulos de 2007 e 2013 (no de 2004, o mais importante, ainda não acompanhava).

 

O ataque dos Red Sox está em farrapos e não consegue aproveitar as poucas oportunidades que tem para voltar a marcar. Do outro lado, os Dodgers têm mais opções para lançadores – caso seja preciso continuar a mudar -, mantêm viável a opção para o jogo 4, e o alinhamento do ataque continua a ser temível. Não há folgas. 

O momento esperado mas nada ansiado acontece no 18.º inning. Muncy faz um home run e o jogo acaba logo ali, não há espaço para tentar recuperar. Olho para o relógio e são 8h30. A conversa de horas antes parece ter sido premonitória e acordo-a. «Ganharam?! A sério? E são oito e meia? Estás a gozar? Estiveste a noite inteira a ver o jogo?», pergunta-me. Sim, claro que estive. Ninguém vai dormir com um jogo assim. Escrevo o tweet no É Desporto, que já estava nos rascunhos, e preparo-me para dormir (sem saber se vou conseguir).

 

O meu corpo passou por uma experiência de tensão máxima de sete horas e vinte minutos e não vai ser fácil. Mas preciso de descansar. Esta noite há jogo outra vez, à mesma hora, e nem sequer sei se vai haver uma escolha fiável para lançador inicial. Mas é só um jogo, convençamo-nos todos disso.