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É Desporto

É Desporto

12 de Abril, 2018

O último jogo do Sporting do meu avô

Rui Pedro Silva

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As experiências que vivemos e a educação que temos têm uma responsabilidade fundamental naquilo que somos quando crescemos. Numa altura em que o futebol em Portugal parece cada vez mais predisposto para o conflito e a rivalidade cega, talvez seja importante parar um pouco para pensar o impacto que o discurso atual está a ter nos adultos de amanhã e valorizar a importância de referências moderadas que nos façam gostar do futebol e do desporto na sua essência.

 

Da Taça UEFA à Taça de Portugal em vinte anos

A primeira memória que tenho de futebol é responsabilidade do meu avô. Na verdade, talvez nem deva dizer que é uma memória de futebol. Sei que ele estava a sofrer em frente à televisão e o Sporting estava numa fase avançada da Taça UEFA. E eu, ali ao lado, acabado de tomar banho, com a minha avó a enrolar-me a toalha à volta do corpo.

Não tenho forma de confirmar isto mas sempre parti do princípio que foi durante o percurso do Sporting em 1990/1991. Bate certo, uma vez que as minhas verdadeiras memórias, em que consigo situar o momento, o jogo e o que estava a fazer, começam em abril de 1991. Ali, no entanto, não assisti a mais do que um sofrimento alheio.

O sportinguismo do meu avô, apesar de dedicado, sempre foi moderado. Ouvia ou via todos os jogos, comprava diariamente o jornal e preocupava-se durante os 90 minutos, mas nunca foi assiduamente ao estádio. A primeira vez que me lembro de ter ido a Alvalade – e única, na verdade – durante a década de 90 foi em 1993/94, contra os turcos do Kocaelispor, e porque um vizinho tinha um bilhete a mais e ofereceu-se para o levar, evitando todas as preocupações com a confusão que o transporte provocaria.

Sinto que muita da minha forma de ver o desporto, e não apenas o futebol, deriva das experiências que fui acumulando na casa em que passei grande parte da infância. Os Europeus e Mundiais de hóquei em patins conquistados, a campanha de Portugal em Atlanta-1996, em que recriámos durante dias o penálti defendido por Nuno Espírito Santo com ele a atirar-me uma bola de ténis, os Tours a sofrer com Orlando Rodrigues, as grandes provas de atletismo e mais, muito mais.

Curiosamente, um dos dias mais memoráveis desses anos foi a forma como vibrámos e sofremos com a eliminação do Arsenal aos pés do Benfica na Taça dos Campeões Europeus em 1991/1992. Era sportinguista, sim, e não perdia uma oportunidade de bater argumentos com o benfiquista do clube de vídeo onde ia comprar diariamente o jornal, mas não deixava de sorrir perante os triunfos portugueses no estrangeiro. Por outras palavras, promovia uma rivalidade saudável.

Os anos passaram e começámos a ver cada vez menos jogos juntos. A única vez que me levou efetivamente a ir ver um jogo do Sporting, foi num jogo de pré-época contra o Estoril, na Amoreira. Era a meio da tarde, não havia confusão e, apesar de não sabermos, o Sporting ia jogar com os jogadores que não tinham um lugar no plantel garantido. Ficou 1-0 para o Sporting, marcou Mário Jorge.

Não me lembro da época, mas depois de pesquisar a carreira de Mário Jorge, faz sentido que tenha sido em 1995, quando saiu do Estrela da Amadora e acabou por ir parar ao Marítimo, presumo que envolvido na transferência de Paulo Alves.

 

Sporting como tema de conversa obrigatório

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O aumento da carga escolar e dos treinos, que passaram a ser quatro dias por semana, fizeram com que passasse cada vez menos tempo em casa dos meus avós e tivesse menos oportunidades para partilhar momentos desportivos com o meu avô. Mas, sempre que falávamos, o momento do Sporting surgia sempre como tema de conversa.

Gostei de o ver – e foi a primeira pessoa com que falei ao telefone – depois do final do jejum em 2000 e fomos partilhando opiniões daí para a frente. Curiosamente, independentemente da época, havia quase sempre “aquele rapazinho novo”. Com o passar dos anos, o testemunho foi sendo recebido por muitos jogadores, mas nenhum outro me parece tão associado a esta expressão como João Moutinho.

A ausência de títulos nunca foi um problema. Ser do Sporting não era uma questão de campeonatos ganhos ou de glórias alcançadas. É certo que hoje, quando olho para o passado, penso que pode ter ajudado o facto de os Cinco Violinos, que me ditava de cor, sempre com a mesma ordem, e com voz de rádio, terem tido tanto protagonismo nos “vintes” da sua vida.

 

O sonho do novo Alvalade

Quando o novo estádio foi construído, houve um sonho que foi sendo alimentado: poder passar um dia em Alvalade, começando com almoço e acabando com um jogo do Sporting. Problema? O mesmo do cântico das claques leoninas: querem ir à bola ao domingo à tarde mas não podem.

Com uma situação de saúde cada vez mais delicada, em que o frio à noite seria sempre um problema, foi preciso esperar por um Sporting-Rio Ave da Taça de Portugal, a 21 de janeiro de 2007. Tinha 81 anos.

Ver Alvalade foi importante mas a experiência não foi a esperada, muito por culpa de uma sequência de atrasos e confusão na compra de bilhetes que pareceram apressar a tarde e torná-la em pouco mais do que um “ir e vir”.

A partir daí, a frase do sonho sofreu uma pequena alteração: «Gostava de ir outra vez, mas desta vez para almoçarmos mesmo lá e tudo». E foi assim continuamente até perceber que dificilmente poderia embarcar na mesma experiência outra vez.

 

O princípio do afastamento

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No início da época 2010/11, o cardiologista deu-lhe uma notícia que foi como um soco no estômago. Tinha o coração muito vulnerável, pelo que era aconselhado que deixasse de fazer coisa que o pudessem enervar.

Foi na semana do Benfica-Sporting. Lembro-me de lhe ter prometido: «Fazemos assim. Eu gravo o jogo em casa e se o resultado for bom vais lá a casa ver». Não foi. Cardozo fez os únicos dois golos do jogo.

Os conselhos do cardiologista acabaram por ser ignorados nas semanas seguintes. Como era possível, para alguém que tinha passado a ouvir e ver os jogos do Sporting, deixar de o poder fazer assim de um dia para o outro?

Em outubro, depois de pedir autorização à minha mãe, decidi fazer-lhe uma surpresa e comprei dois bilhetes para a eliminatória da Taça de Portugal com o Estoril, na Amoreira. Senti que os campos se tinham invertido e o caminho que fiz do António Coimbra da Mota até casa dos meus avós foi repleto de uma alegria de quem finalmente vai poder retribuir algo a quem tanto lhe deu.

Curiosamente, foi ele que me abriu a porta. Imediatamente a seguir aos dois beijinhos da praxe, passei-lhe os bilhetes para a mão e aguardei pelo momento em que percebesse o que aquilo significava. O olhar e o sorriso de alegria valeram mais do que três pontos, uma vitória ou um título. Ter o poder de deixar alguém feliz desta forma vale mais do que tudo o resto.

 

Uma aventura complicada

O jogo foi em 2010. Dez anos antes, o meu avô levava-me quatro vezes por semana ao campo do Estoril para os treinos. Ali, agora, era ao contrário. Desta vez, ao contrário do Sporting-Rio Ave, fomos só os dois. Não ia ser fácil, mas era uma experiência que íamos partilhar juntos, muito possivelmente uma última vez.

Estacionar por aqueles lados é difícil e ofereci-me para o deixar junto ao estádio e ir estacionar. Não quis. Quis ir comigo. Fiz o possível para arranjar um lugar o mais próximo possível e iniciámos a caminhada, cheia de metas volantes e paragens para “reabastecimento”, como quando víamos o Orlando Rodrigues representar Portugal na Volta a França.

Entrámos no estádio, descobrimos os nossos lugares e ele tinha um misto de olhar de criança e de cansaço acumulado. A primeira verdadeira frase completa que me disse foi: «Não te preocupes com o avô que o avô está bem».

Ali, naquele momento, conseguiu reinverter o que eu achava já impossível. Costumo dizer que o maior ponto de viragem na nossa vida é quando nos passamos a preocupar mais com os nossos pais e avós do que eles connosco. Ali, ele estava preocupado comigo, preocupado com a minha preocupação, tentando garantir que eu também conseguia aproveitar o jogo.

O Sporting ganhou. Esteve a perder mas deu a volta. Nos dois golos, olhei para ele e pareceu-me ligeiramente desconfortável. «Conseguiste ver quem marcou?», perguntei-lhe. «Não», respondeu-me. Sabia que tinha sido o Sporting, claro, mas a visão e a rapidez do jogo, e do próprio lance, não lhe deu grande margem. Estava feliz, obviamente, mas de certeza que havia muito mais a passar-lhe pela mente do que deixava transparecer.

Quando saímos, o caminho para o carro foi ainda mais complicado: desta vez era a subir. Por mais que se tentasse fazer de forte, não resistiu a pedir para pararmos. «Rui, o avô está um pouco cansado», disse-me, antes de finalmente ceder à minha insistência de ficar ali e deixar-me ir buscar o carro.

Regressou a casa feliz. Não era bem o sonho que tinha idealizado mas foi uma experiência que já nem pensava que pudesse ter. Foi a 16 de outubro, seis semanas antes de morrer.