Não há eleição de Donald Trump ou incerteza sobre o futuro que impeça que os norte-americanos festejem hoje um dos seus mais importantes feriados. O Thanksgiving, o dia de Ação de Graças, junta famílias e fá-los relembrar tudo o que de bom já tiveram e partilharam. Ou simplesmente encher uma mesa cheia de comida e comer até cair para o lado, enquanto a televisão passa jogos de futebol americano.
Por cá, a tradição não existe. Existindo, o «É Desporto» poderia dar graças a tanta coisa. O desporto da era moderna tem pouco mais do que um século mas é fácil sentir que já se passou por tanto. Por vezes, é mesmo difícil ter a capacidade de contextualizar apenas o que se passou nos últimos 25/30 anos e a importância e o impacto que isso teve no desporto nacional e mundial.
Dar graças? Não é preciso dar graças. Basta lembrar a emoção sentida quando Eder marcou à França e vingou gerações completas de futebolistas que vacilaram – ou fizeram-lhes vacilar – nos momentos decisivos. Por todos os Eusébios, Chalanas e Figos que ousaram em sonhar em tocar no troféu e saíram em lágrimas e com drama.
Ou quando, em 2013, Rui Costa superou a dupla espanhola – que de dupla teve muito pouco – nos últimos metros do Mundial de ciclismo. Ou de quando, no mesmo dia, apenas umas horas antes, João Sousa se tornou o primeiro, e até agora único, tenista português a vencer um torneio ATP.
Somos viciados em emoções fortes. Podíamos até perder eternamente na última jornada, na final da competição, no último minuto dos descontos, que continuaríamos a estar vidrados na adrenalina do desporto. No sonho de um dia podermos partilhar a euforia do triunfo com família, amigos e desconhecidos.
Mesmo quando vivemos por fora, torna-se impossível resistir. Somos apaixonados por histórias como a do Leicester de Ranieri ou a da Dinamarca de Schmeichel em 1992. Ou a dos Chicago Cubs no início do mês, ao conquistar um título que fugia desde 1908.
Desde 1908. Teremos sequer noção do que são 108 anos a sofrer no desporto? Nós, aqui num retângulo em que as 17 épocas do Sporting, as 11 do Benfica ou agora as três do FC Porto, que no passado já foram 19, são alvo de tanto escárnio e maldizer? Com 108, as canções são outras. É inexplicável.
Dizem os peritos que ver alguém a bocejar provoca um efeito reflexo. Bocejamos também. Não é o único gesto com essa capacidade. Vivemos numa sociedade capaz de se comover com as emoções alheias. Talvez seja por isso que valorizamos tanto os underdogs. Os que parecem lutar contra tudo e no final acabam em lágrimas, não de tristeza mas de alegria. Ninguém se levanta da cadeira quando o Bayern ganha mais um campeonato, mas tudo muda quando um Leipzig surge, mesmo que seja por breves jornadas, a ameaçar atacar a hegemonia.
Choramos também. Festejamos também. Com maior ou menor felicidade, temos a capacidade de reconhecer que acabámos de assistir a um momento histórico, sabemos situá-lo na cronologia de mais de 100 anos de desporto. Os feitos de Bolt, as medalhas de Phelps, as batalhas epopeicas entre Nadal e Federer, os sofrimentos de quilómetros sempre a subir no ciclismo.
Mas não é obrigatório ganhar. Também reconhecemos a recompensa de uma boa história. A da síria refugiada que nadou para salvar a sua vida e a de dezenas de pessoas e depois acabou nos Jogos Olímpicos. A de um sonho jamaicano de entrar nos Jogos Olímpicos de Inverno no bobsleigh, a de um país inteiro e quase esquecido como a Islândia a tomar de assalto o Europeu.
Somos viciados. Mais do que em ganhar, somos viciados no desporto, na emoção, na adrenalina. Gostamos de ganhar, temos as nossas preferências que nos levam a apanhar chuva, frio e a sofrer desilusões atrás de desilusões, mas não desistimos de procurar. O desporto é assim, é um vício.
E, ano após ano, os grandes momentos continuam a aparecer. Nunca há fome que não dê em fartura: há sempre uma fase final de Europeu ou Mundial, uns Jogos Olímpicos, faça sol no Verão ou chuva no Inverno, uma etapa ou grande volta de ciclismo, um tomba-gigantes na Taça.
Todos já fomos Beira-Mar ou Campomaiorense, todos já fomos Gondomar, Dragões Sandinenses ou Torreense por um dia, sem que para isso tenhamos de ter sido contra Benfica, Sporting ou FC Porto.
É a isto que mais devemos dar graças. Ao desporto. À capacidade renovadora eterna que tem de nos oferecer grandes momentos que julgávamos ser impossíveis, ou que simplesmente nos tínhamos conformado a deixar de procurar. E isso, desculpem-me que vos diga, é mais forte do que qualquer polémica alimentada pelo efémero. O desporto é eterno.