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É Desporto

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15 de Fevereiro, 2017

Zaire. A piada que não tinha assim tanta graça

Rui Pedro Silva

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Participação africana no Mundial-1974 foi uma das melhores notas de rodapé da fase final na República Federal da Alemanha. Mas havia muito mais em jogo do que goleadas humilhantes: Mobutu tinha a mira apontada às costas dos futebolistas se a vergonha se repetisse. 

 

Tempos de desespero…

 

Nova Iorque pode ter a moda e Paris o glamour mas a capital do lusco-fusco é Kinshasa, nada República Democrática do Congo (antigo Zaire). Pelo menos foi o que nos garantiu Ricardo de Araújo Pereira em mais um sketch dos Gato Fedorento durante o período áureo.

 

Eram cinco, sete minutos em que tudo acontecia. Em que tudo podia acontecer. Tal como na RFA em 1974. O lance entrou no anedotário do futebol mundial: livre para o Brasil nos últimos minutos do jogo, o árbitro apita e Mwepu Ilunga sai disparado da barreira para chutar a bola para longe.

 

O momento gerou estupefação. Ninguém percebeu o que se tinha acabado de passar. O árbitro mostrou amarelo e o lado colonialista dos europeus esboçou o raciocínio jocoso de que os africanos tinham dificuldades na interpretação das regras. «Um momento bizarro de ignorância africana», comentou John Motson, na BBC.

 

Afinal, o que se passava era a dificuldade de todos os outros em perceber que havia muito mais do que um resultado em jogo. Ali, naquele lusco-fusco final do encontro, os jogadores do Zaire podiam muito bem estar a lutar pelas suas vidas.

 

O Zaire era o campeão africano em título mas a campanha no Mundial estava a ser desastrosa, com as derrotas frente à Escócia (0-2) e à Jugoslávia (0-9). O ditador zairense, Mobutu Sesu Seko, como tantos outros africanos nesta era, fazia do desporto uma ferramenta de afirmação e informou a comitiva de que não iria suportar outra humilhação do mesmo género.

 

… exigem medidas desesperadas

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O Brasil era o campeão do mundo mas ainda não tinha qualquer golo no torneio, fruto dos empates a zero. As contas de apuramento eram simples: como havia um Escócia-Jugoslávia no outro encontro, o escrete sabia que uma vitória por três ou mais golos garantiria o apuramento independentemente do outro resultado.

 

Era um pesadelo para os zairenses. Acabados de ser humilhados e forçados a defrontar um campeão do mundo obrigado a golear. Mobutu não queria nova catástrofe. «Depois do jogo [com a Jugoslávia], ele enviou os guardas presidenciais para nos ameaçar. Fecharam o hotel aos jornalistas e disseram-nos que se perdêssemos por quatro golos contra o Brasil, mais valia não voltarmos.»

 

A confissão é de Mwepu Ilunga, o jogador que saiu disparado da barreira, cometendo um ato desesperado para evitar o pior. «Entrei em pânico e chutei a bola para longe. Os jogadores do Brasil e o público acharam muita graça mas não percebiam a pressão a que estávamos sujeitos», disse. O jogo terminou 3-0.

A promessa de bonança antes da tempestade

 

O Mundial não estava habituado a seleções africanas. Quatro anos antes, no México, Marrocos tinha-se tornado a primeira equipa a conseguir, de facto, um apuramento para a fase final. Agora, na Europa, apesar de serem completos desconhecidos, os zairenses surgiam como campeões continentais.

 

Amadores, os jogadores tinham a promessa de receber mundos e fundos caso conseguissem garantir o passaporte para o Mundial. Mobutu prometia tudo, de carros a casas, passando por férias com despesas todas pagas. Era o pacote habitual: na Zâmbia, por exemplo, o presidente Kenneth Kaunda ofereceu férias na Líbia à equipa depois da final alcançada na CAN e pagou a viagem para assistir ao Mundial em 1974 a todos os jogadores da comitiva.

 

Mobutu podia prometer mais mas cumpria menos. Quando o Zaire viajou para a Europa, apenas alguns jogadores se podiam regozijar com um carro ou uma casa nova. Sempre modestos, ainda assim. Os outros nem isso. Obviamente, depois dos jogos, tudo piorou.

 

Os jogadores foram ignorados, a seleção deixou de receber financiamento do ditador e os olhos viraram-se para outro desporto. Pouco mais de quatro meses depois, George Foreman e Muhammad Ali receberam milhões de dólares para protagonizarem o Rumble in the Jungle.

 

«Na Europa, honram os futebolistas. Aqui, quando jogas conhecem-te, quando terminas esquecem-te», queixou-se o antigo jogador Ndaye Mulamba, apenas um entre muitos dos que acabaram entregues à miséria nas estradas do país.