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É Desporto

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18 de Setembro, 2017

Um dérbi da linha com o Belenenses-Estoril

Rui Pedro Silva

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Domingo à tarde, como todos os jogos deviam ser, e um duelo entre dois adversários cuja rivalidade não se limita ao futebol sénior. Uma pena o Restelo não ser um local de peregrinação como no passado. 

 

Memórias do passado

 

Quando era pequeno, mesmo pequeno, não houve estádio da primeira divisão a que tenha ido mais vezes do que o Restelo. A minha memória consegue recuar pelo menos até aos sete, oito anos, altura de um Belenenses-Famalicão, que acabou com goleada gorda.

 

Um 7-0, com golos de Mauro Soares, João Manuel Pinto-2, Paulo Sérgio-2, Mauro Airez e Gonçalves. Não consigo justificar com certeza, pelo menos antes de perguntar, por que razão o meu tio escolhia o Belenenses e lá íamos tantas vezes. Não lhe conheço o clube – faz gala em dizer que não tem nenhum e apesar de levar uma vida diretamente ligada ao futebol há mais de 50 anos, sempre conseguiu manter esta capa de neutralidade com algum sucesso.

 

Consigo desconfiar. Aquele era o Belenenses de Figueiredo e de Gonçalves. O primeiro, guarda-redes, vivia em Tires, tal como eu, a poucos metros de minha casa. O segundo, médio, tinha tido o meu tio como primeiro treinador. Talvez fosse por isso.

 

A peregrinação era qualquer coisa de especial. Naquela altura, havia um, dois jogos na televisão no máximo e toda a minha rotina de fim-de-semana implicava começava a ouvir a emissão na rádio às duas e meia da tarde, conferindo os onzes e comparando com a previsão que o Record tinha nas suas páginas.

 

Ali, a caminho de Belém, a rotina mudava e ganhava cor. Ouvia-se exatamente o mesmo mas a caminho do estádio. Não havia lugares para estacionar, havia muita gente, cheirava a futebol.

 

Máquina do tempo

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Desde aquele Belenenses-Famalicão há quase 25 anos, as idas ao Restelo continuaram, nem sempre para ver jogos de futebol. Aí, lembro-me apenas de mais dois: um Belenenses-Estoril em 1993/94 e um Belenenses-Fabril Barreiro mais recente, para a Taça de Portugal. Em 1993/94 terá havido mais, mas a memória já não chega tão longe.

 

Tanto tempo depois, o Belenenses-Estoril voltou a ser o jogo escolhido. É um dérbi da linha e nem todos conseguem compreender a sua dimensão. Não apenas no futebol profissional mas também no de formação. Esse foi o que senti mais, na pele, como era. Durante três épocas no Estoril, foram várias as vezes em que o Belenenses surgiu como adversário, tanto em jogos oficiais como amigáveis.

 

A rivalidade existia. Benfica e Sporting dominavam, como ainda dominam, o futebol juvenil na Associação de Futebol de Lisboa e a segunda linha era disputada por Belenenses, Estrela e Estoril. Cada jogo entre eles era sempre mais aceso, tinha outro encanto.

 

Em 2017, tudo está diferente. O desábito é tão grande que o receio de não ter lugar para estacionar levou a que estacionasse muito mais longe do que o que poderia ter feito. Na bilheteira mais a norte, havia uma única pessoa a comprar bilhete. Na sul, junto à entrada dos sócios, havia fila.

 

Havia uma rouloute, havia adeptos do Estoril a juntarem-se, havia barraquinhas de cachecóis e outras lembranças. Só não havia um verdadeiro cheiro a dérbi. É certo que faltava ainda mais de meia hora, mas o encanto estava longe de ser o mesmo de 25 anos antes.

 

Uma oportunidade turística

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Ponto prévio neste parágrafo: esta rubrica surgiu com o objetivo de passar por todos os estádios dos clubes da I Liga. Ainda faltam muitos e o caminho será longo, pelo que esta afirmação poderá ser discutida, mas dificilmente haverá um estádio tão bonito e com uma vista tão deslumbrante como o do Restelo.

 

Situado poucos metros acima de locais de forte dimensão turística como o Mosteiro dos Jerónimos e da loja dos Pastéis de Belém, ter um jogo ao fim-de-semana à tarde pode ser uma oportunidade perfeita para angariar turistas com vontade de experimentar o futebol português. E turistas não faltaram ao Restelo.

 

O primeiro exemplo surgiu logo numa das barraquinhas de cachecóis, quando três estrangeiros compraram um cachecol. «Ah, fala muito bem português», disse a mulher com um timbre de voz claramente bairrista. «Obrigado!», respondeu-lhe ele, ligeiramente envergonhado, e com o cantarolar típico de um estrangeiro a agradecer.

 

Mas havia mais. Já depois da validação dos bilhetes, reparámos que o museu ficava mesmo ao lado do nosso setor. Decidimos entrar. Durante cinco a seis salas, mais duas ou três no segundo andar, os troféus multiplicavam-se. Começava-se com o futebol de formação. «Se calhar ainda há aqui fotografias de um torneio em que participaste», disseram-me. Duvido. Sinceramente não me lembro de alguma vez nos termos cruzado em torneios.

 

Do futebol de formação passamos para o futebol profissional. A grandeza do Belenenses e o passado repleto de tradição entranha-se em poucos segundos. Além dos títulos, surgem as fotografias do antigamente e os galhardetes de equipas espalhadas pelo mundo. Relembra-se a inauguração do Bernabéu. Relembra-se o cinquentenário do Bernabéu. Relembramos o despique entre Jorge Jesus e Bernd Schuster num Belenenses-Real Madrid.

 

Ao pé de nós, uma família brasileira diverte-se a enumerar os galhardetes de equipas do seu país, sempre com surpresa. Sentimos a tentação mas resistimos a contar que o início da carreira profissional de Ronaldo, o Fenómeno, tem uma ligação direta ao Belenenses. A mãe, também com muita surpresa, refere que o Belenenses não é só futebol. Com razão. Nas últimas salas daquele andar e nas salas do andar de cima, o destaque é todo feito para os troféus ganhos nas variadas modalidades do Belenenses.

 

A jóia da coroa, contudo, está no andar principal, mais ou menos a meio: o título de campeão nacional de 1945/46. Grande, imponente, muito maior do que os troféus nos pareciam quando eram entregues e vistos na televisão. Não está sozinho: tem com ele as Taças de Portugal, os títulos da segunda divisão e algumas memórias das finais do Jamor, sobretudo bolas utilizadas que foram ganhas em sorteio por adeptos e oferecidas ao museu do clube.

 

Um clube está longe de ser apenas a sua história. O presente é sempre muito importante. Mas cinco ou dez minutos no museu é suficiente para relembrar o que por vezes pode parecer distante: a dimensão que o Belenenses tem no desporto nacional.

 

Um estádio que merece mais

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O momento em que se vê o interior de um estádio é sempre especial. A antecipação crescente enquanto se sobe uns degraus que levam à porta da entrada na bancada é única. E raramente defrauda, mesmo quando o estádio parece estar às moscas.

 

Quando era novo ouvia muitas vezes a mesma pergunta em tom de piada: «Qual é o maior estádio do mundo?» As respostas de quem não a conhecia divergiam mas nunca acertavam na mouche: «É o Restelo. Por mais gente que lá tenha, nunca enche».

 

É uma pena. Durante o jogo com o Estoril, paramos algumas vezes para olhar em volta, sobretudo agora com o topo norte remodelado, e pensar como seria aquele estádio completamente a abarrotar. Que experiência seria… que fantástico seria o ambiente com três bancadas cheias e uma quarta que não “existe”, mas que dá livre-trânsito para ver a Ponte 25 de Abril, o Cristo Rei, o Tejo e os Jerónimos.

 

Será que um jogo da seleção, um daqueles importantes, seria suficiente? Não se trata de ver apenas bancadas cheias, não interessa a visita de um Papa ou um concerto de um Tony Carreira desta vida. Mas sim de um jogo de futebol. Onze contra onze dentro do campo e nem uma cadeira vazia na bancada.

 

Na vida real, quase tudo é residual ali. A bancada dos sócios, ao centro, até está composta, mas tudo o resto deixa muito a desejar. Adeptos do Estoril não devem ultrapassar os 100 e a bancada nascente (também conhecida por «aquela em que os adeptos se arriscam a levar com o sol durante o jogo») também está muito despida.

 

É pena mas é a tendência do futebol atual. As diferenças para duas décadas antes é abismal. O jogo ter dado na televisão justifica um pouco mas não justifica tudo. É a natural tendência que levamos e dificilmente se consegue inverter.

 

Dentro de campo, o jogo demora a carburar. A primeira parte é fraca. Os primeiros sinais de descontentamento surgem com o passar dos minutos mas, apesar de tudo, estão longe de se aproximar do que normalmente se associa a adeptos do Belenenses. Curiosamente, a poucos metros de nós, está um adepto do Estoril, claramente identificado, junto da bancada poente. Está sozinho. Não tem ninguém nas cadeiras ao lado, nem sequer nas filas mais próximas. Está calado, quase sempre na mesma posição. Vive o jogo de forma impávida, aparentemente sem emoção.

 

O caminho para os golos

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Há memórias do passado que não se apagam. Uma boa parte da experiência de ir ver jogos ao Restelo quando era pequeno incluíam a compra de queijadas a um dos inúmeros vendedores ambulantes que se passeavam pela bancada. Confesso que fui ao Restelo com isso na cabeça, ignorando se se mantinha.

 

Sim, havia um vendedor ambulante. Mas só o vimos, da primeira vez, a vender batatas fritas e pipocas. Minutos depois, surgiu novamente e vimo-lo a vender um pacote de queijadas. Era a nossa deixa. Chamamo-lo à atenção, dirige-se para nós e pedimos as queijadas. «Aquelas eram as últimas», diz-nos, provocando uma reação semelhante ao golo do empate sofrido nos descontos.

 

Com uma única frase, aquele homem olhou-nos nos olhos e tirou-nos o sabor doce do jogo. A partir dali, teria de ser o futebol dentro de campo a fazer a diferença. E fez, mas foi preciso esperar quase pelo último quarto de hora.

 

Tiago Caeiro deu a prenda. Dois minutos depois de entrar, o avançado teve um excelente pormenor dentro da área e conseguiu ficar isolado frente a frente com Moreira para fazer o golo. Dez minutos depois, André Sousa aumentou o nível do espetáculo e fez o segundo. Assim, de repente, o jogo ganhava cor e oferecia dois golos com… nota artística.

 

A desvantagem acordou o Estoril e tornou o final do jogo mais emocionante. Não que a vitória do Belenenses alguma vez tivesse ficado em causa (Kléber só reduziu nos descontos), mas porque o encontro abriu e os canarinhos ficaram mais atrevidos na frente.

 

A última imagem é a que fica e a do Belenenses-Estoril não desiludiu. Não apenas porque houve golos ou porque é sempre possível olhar uma última vez para o Tejo antes de ir embora, mas porque houve espaço para perceber a dimensão social do clube do Restelo. O espelho perfeito chegou ao intervalo, quando um rapaz que teria os seus onze ou doze anos, passou à nossa frente a equilibrar o seu avô, já com limitações motoras evidentes.

 

O Belenenses é um clube histórico. Nunca será apenas dos velhos e dos avós, dos que se lembram dos grandes feitos e os mantêm na memória, mesmo quando outras lembranças vão voando do cérebro. O Belenenses também é dos mais novos, dos sonhadores, dos que ouvem os grandes feitos do passado e imaginam um futuro igual. O Belenenses, tal como o Restelo, tem espaço para todos.

RPS/TMP 

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