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É Desporto

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11 de Janeiro, 2018

Philip Boit. O primeiro queniano a competir no inverno

Rui Pedro Silva

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Nunca tinha visto neve na vida e, em menos de dois anos, chegou aos Jogos Olímpicos em Nagano. Ficou em último mas tinha o campeão à espera para lhe dar os parabéns. Não foi o primeiro africano mas é visto como o pioneiro que ajudou a lançar os desportos de inverno em África. 

 

Até a neve era nova

 

Nasceu no Quénia em dezembro de 1971 e era mais um igual aos outros. Cresceu numa região famosa pelos seus corredores e foi incapaz de fugir à tradição, especializando-se nos 800 e nos 1500 metros.

 

Philip não era apenas mais um. O apelido da família não o deixava esquecer-se que uma vez, em 1972, o tio Mike tinha vencido a medalha de bronze na prova de 800 metros dos Jogos Olímpicos de Munique.

 

Correr era o rumo natural mas este Boit decidiu fintar o destino e, após a assinatura de uma parceria com a Nike, juntamente com o seu compatriota Henry Bitok, fez as malas e rumou à Finlândia para se tornar um esquiador competitivo.

 

«Foi um grande desafio porque nunca tinha sentido frio na vida. Até pôr os esquis era difícil para mim. Mas aprendi a adaptar-me», recordou Boit.

 

Boit foi melhor do que Bitok e garantiu a vaga que o Quénia tinha nos Jogos Olímpicos de Nagano, no Japão em 1998. Ainda não tinham sequer passado dois anos da primeira vez que tinha visto neve mas ali estava ele, temerário, entre a elite dos desportos de inverno.

 

Circo da Nike?

 

A imprensa internacional franziu as sobrancelhas a esta iniciativa da Nike e fez questão de o notar durante a entrevista com toques de interrogatório ao presidente do Comité Olímpico do Quénia, Charles Mukora.

 

Julgavam que os atletas estavam a ser explorados pela Nike. «Quem é que está a ser explorado aqui? Temos um contrato de patrocínio desde 1991 e sem ele não teríamos capacidade para estar aqui. Estes jovens vão ser heróis no Quénia. Através das nossas embaixadas, estamos a encorajar a juventude que vive na Escandinávia, no Canadá, na Alemanha, nos Estados Unidos e por aí fora a participar em desportos de inverno.»

 

«Já assinei contratos para intercâmbios culturais com África do Sul, Itália, Holanda e Canadá. O desporto é a atividade que nos permite este tipo de expansão. É a única coisa que fazemos juntos no mundo. É a disciplina humana que todos entendem e promovem», continuou.

 

Philip Boit também levou a oportunidade muito a sério: «Não é algo para achar piada. Estamos a encarar isto com a mesma seriedade que encaramos a corrida. O objetivo é melhorar o tempo mas queremos algo maior no futuro, talvez no espetro de uma medalha».

 

O treinador finlandês Jussi Lethinen, que assumiu a preparação após a parceria, confirmou a evolução dos quenianos: «No primeiro dia até medo tinham do teleférico. Agora sabem o nome de todos os adversários que vão competir no Japão».

 

«Este é o meu desporto de futuro. Não vou voltar atrás!», garantiu Boit.

 

Vinte minutos de atraso com sabor a medalha

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As condições na prova dos dez quilómetros foram terríveis. Philip Boit sentiu ainda mais os problemas da falta de experiência e ia acumulando neve nos esquis durante a prova: «Era terrível quando estava a subir. Parecia que estava a andar de saltos altos».

 

A perseverança fez a diferença. Boit não desistiu e chegou no último lugar, em 92.º, com vinte minutos e um segundo de atraso para o campeão olímpico. À chegada, as bancadas receberam-no como um campeão. «Estavam todos a gritar por mim e pelo Quénia. Foi como se estivesse a ganhar uma medalha.»

 

O momento mais importante foi, ainda assim, outro. O campeão Bjorn Daehlie fizera questão de esperar por ele, mesmo que isso significasse adiar a cerimónia das medalhas. «Ouvimos nos altifalantes que ele estava perto do estádio e fiquei muito impressionado por ele ser capaz de terminar a corrida mesmo naquelas condições», disse o norueguês.

 

O gesto comoveu Boit. «O meu treinador falava-me sempre dele e via-o na televisão. Não quis acreditar que ele estivesse ali à minha espera para me dar um abraço», contou o queniano, que entretanto se tornou amigo de Daehlie.

 

A ligação dos dois tornou-se ainda mais forte quando Philip batizou o filho com o nome do norueguês. «Todos me diziam que ele tinha sido um grande homem por esperar por mim em Nagano e que devia manter aquele nome na família», explicou.

 

Boit não desistiu mas medalha… nem vê-la

 

O queniano cumpriu a promessa e continuou a especializar-se nos desportos de inverno. Em Salt Lake City-2002 e Turim-2006 voltou a competir e até escapou ao último lugar, mas esteve sempre muito longe de ser verdadeiramente competitivo.

 

O seu legado seria outro. Tal como Mukora havia previsto, Boit seria recebido como um herói no Quénia e encarado como um exemplo para todo o continente africano. Desde 1998, Camarões, Etiópia, Gana, Madagáscar, Zimbabué e Togo participaram nos Jogos Olímpicos de Inverno pela primeira vez.

 

«Dizem-me que vieram para este mundo por me terem visto na televisão em 1998. Dizem-me que sou um pioneiro, que sem mim não se teriam aventurado nestes desportos» conta Boit.

 

O queniano pode não ter sido o primeiro africano (África do Sul teve um par na patinagem artística em 1960 e Lamine Guèye representou o Senegal pela primeira vez em 1984) mas terá sido o mais mediático. Ou, pelo menos, importante.

 

O adeus aos Jogos foi triste. Boit tinha tudo pensado para se despedir em Vancouver-2010, já com 39 anos, mas a saúde trocou-lhe as voltas, falhando por doença.

 

«Não devia ter voltado a casa depois da Finlândia no final do ano passado. As mudanças de temperatura de 19 negativos para 25 no Quénia e novamente três negativos em Washington afetaram a minha saúde. Se tivesse ido diretamente para os Estados Unidos, teria conseguido. Tive febre e as mudanças de temperatura fizeram com que o meu corpo pagasse a fatura. Não conseguia mexer as mãos. É uma pena», disse.

RPS