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É Desporto

É Desporto

24 de Janeiro, 2019

Não façam do golo um acessório do futebol

Rui Pedro Silva

Eder marcou o golo mais importante na história de Portugal

Poucos segundos depois do golo de Coates em Braga, o narrador do jogo da Antena 1 disse uma frase que serviu de rastilho para o que penso sobre futebol: «Está tudo como no início, mas agora com golos, que é o melhor do futebol».

 

A transcrição pode não ser 100% rigorosa mas a ideia era esta e é perfeita. Vivemos numa altura em que o futebol começa a ser pensado de muitas – e valiosas – maneiras, mas há quem comece a ceder à tentação de olhar para o golo com uma redução de importância pouco saudável. Há não muito tempo, Luís Freitas Lobo escreveu um artigo de opinião em que afirmava que marcar golos era tão importante como não sofrer.

 

Ali, naquelas linhas (pelo menos no excerto que me foi apresentado), o conceituado comentador, nem sempre consensual, atribuía uma importância perfeitamente idêntica aos dois atos, confirmando a obsessão que tem marcado a evolução do futebol ao longo das últimas décadas em que não sofrer se tornou prioridade.

 

A lógica desmente desde o início esta ideia. Se as duas forças tiverem igualmente impacto e se anularem, um jogo termina sem golos, com um empate e um ponto para cada equipa. A posição académica sobre este tema falha na primeira premissa. Pode ser um pormenor, pode não ter sido essa a ideia – ou o argumento – que o comentador queria passar mas a lógica do futebol começou por ser esta e será sempre a mesma: o mais importante num jogo de futebol é acabar o tempo com mais golos marcados do que sofridos.

 

É isto que dá a vitória, que garante um objetivo: o número de golos marcados tem de ser superior ao número de golos sofridos. Compreendem? Há uma hierarquia clara entre as duas variáveis. E mesmo alternando a visão, dizendo que o número de golos sofridos tem de ser inferior ao número de golos marcados, continua a haver uma dicotomia clara superior/inferior a fazer essa diferença.

 

O golo é o ópio do povo

Tardelli protagonizou um festejo icónico em 1982

Agora que já estabelecemos que a filosofia prevalecente deve ser aquela que descreve o triunfo e não o empate, talvez seja boa ideia partir para outras filosofias que ganham cada vez mais força: o número de golos e a beleza de um zero-zero.

 

Já toda a gente ouviu dizer, pelo menos uma vez, que um zero-zero pode ser um jogo mais espetacular do que um 3-3. Que compreender as vicissitudes de um jogo, a forma como duas equipas se encaixam, procurando gradualmente uma forma de encontrar as fraquezas do adversário para encontrar o melhor caminho, ao mesmo tempo que procuram os ajustes necessários para anular os pontos fortes do adversário, pode ser tão belo como um jogo cheio de golos.

 

Vamos por partes: sim, não tenho dúvida de que um 0-0 num superclássico no Camp Nou será infinitamente melhor do que um 7-5 num jogo entre amigos à segunda-feira à noite. O golo, por si só, não torna necessariamente um jogo melhor. Mas não haja dúvidas de que um bom jogo com golos será sempre melhor do que um bom jogo sem golos.

 

Porquê? Porque o futebol é um desporto de massas. O futebol não chegou onde está hoje porque um grupo de cientistas se sentou a uma mesa para analisar ao microscópio as ações que decorreram durante os 90 minutos para tentar descobrir a fórmula perfeita para chegar à vitória.

 

Sim, o estudo do futebol foi fundamental para o seu desenvolvimento e não faltam exemplos de equipas e treinadores que beneficiaram do seu avanço geracional no momento de construir hegemonias memoráveis. Houve sempre um pioneiro que fez o mundo avançar, fosse através de novos sistemas táticos, melhores métodos de trabalho ou uma atenção redobrada ao jogador enquanto ser humano.

 

Em qualquer um dos casos, estes avanços contribuíram apenas para uma coisa: agradar o espetador. Se o futebol fosse cinema, seria um blockbuster, não seria uma obra-de-arte genial premiada num festival alternativo.

 

O futebol nunca precisou de um público culto para vingar. Só precisou de ser o escape e tornar-se uma rotina imperdível na cabeça do adepto. Dos mais velhos aos mais novos, ir ver um jogo sempre foi uma ação que derivava do sonho de ver a sua equipa ganhar, marcar golos, ver a sua maior vedeta abrilhantar aquela tarde com gestos técnicos de encantar.

 

Um espetáculo para todas as idades

Festejos nas bancadas têm sempre outra cor

Uma criança, quando começa a dar os primeiros toques, não quer saber de sistemas táticos, de dados de rendimento ou de bloqueios de forças. Quando vai a um estádio, uma criança só se deixa encantar pelo mais puro de um jogo: o golo, a finta e, como dizia Cruijff, pelo som fantástico de uma bola a bater no poste.

 

Quando volta a casa, quando está a adormecer e a sonhar com o futuro, a criança não perde a respiração perante a forma brilhante como o treinador utilizou uma saída a três para povoar o meio-campo e desequilibrar através do jogo interior. Tem tempo para chegar a esse ponto, se quiser. Uma criança pensa no golo, no remate ao ângulo, na emoção que foi ouvir um estádio repleto de espetadores a festejar a bola a entrar na baliza.

 

A criança, o adolescente, o adulto e o idoso têm tudo isto em comum. O golo é o pináculo num jogo de futebol, é o melhor momento, o mais memorável. Um jogo com golos, com reviravoltas, com espetáculo, bate o futebol de estudo.

 

Porque nem toda a gente tem de se preocupar com isso. O futebol foi, é e será sempre do povo. Dos apaixonados, muitas vezes irracionais, que se despem de preconceitos e vivem na bancada como um adolescente vive numa pista de dança depois de um par de copos. Ali, o mundo é deles. É um mundo imaginário, de batalha, em conquista da glória.

 

E chegar ao fim com mais golos marcados do que golos sofridos é o fim da guerra… com um sorriso. Porque é o golo, a finta e a jogada perfeita que fazem o futebol andar para a frente e que conquista adeptos por todo o mundo. E mesmo as espetaculares defesas ou os cortes no último segundo, com todo o mérito que têm, só assumem essa importância porque fazem o estádio respirar de alívio, acreditando que o perigo passou.

 

Não façam do golo um acessório do futebol. O golo é o bater do coração, é um orgasmo. Será tanto melhor quanto forem a sedução e os preliminares, mas o mais importante é o conjunto. Ter o bom jogo sem um golo será sempre um espetáculo incompleto.