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É Desporto

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22 de Fevereiro, 2017

Larbi Benbarek. A estrela que nasceu e morreu sem que alguém desse por isso

Rui Pedro Silva

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Dizem que foi o primeiro grande jogador africano a atuar na Europa. Pelé afirmou que era o Deus do futebol. Fez história em França e em Espanha mas morreu abandonado de forma inglória. 

 

Genialidade no incerto

 

Os documentos oficiais dizem que Larbi Benbarek nasceu em 1917 mas o futebolista marroquino nunca atribuiu qualquer importância a essa data. De facto, tudo aponta que tenha nascido em 1914. Mas também pode ter sido em 1915. Ou em 1916.

 

Larbi Benbarek morreu em setembro de 1992. O dia não se sabe muito bem. Foi encontrado morto em casa e os relatos divergem: pode ter morrido três dias antes de o corpo ter sido encontrado. Mas também podia ter passado já uma semana.

 

A Pérola Negra, a primeira do futebol africano, nasceu e morreu sem pompa nem circunstância. Não houve festa, não houve respeito, não houve um acompanhamento claro de cada momento. Foram o início e o fim de uma vida com capítulos gloriosos mas à qual faltou o brilho final.

 

Não se sabe tudo sobre a vida de Larbi. Mas o que se sabe não deixa sombra para dúvidas. Raramente teve o vento pelas costas, mas nem por isso deixou de correr em frente para festejar. Para estabelecer a diferença: para conquistar Marselha, França, Madrid e Espanha com a qualidade do seu futebol. Uma história de genialidade que começou em Casablanca.

 

Combustível para vencer

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Torna-se irrelevante escrever que idade tinha quando começou a jogar futebol, quando se juntou ao primeiro clube ou quando assinou o primeiro contrato profissional. Não há garantias. Benbarek assumiu essa postura na sua carreira, a cada decisão que teve de tomar, a cada passo que foi obrigado a assumir com responsabilidade, sabendo que seria difícil voltar atrás.

 

A paixão pelo futebol era inegável, mesmo que para isso tivesse de acumular feridas nos pés, descalços, que continuavam a jogar na rua até quando o cansaço e a dor gritavam por uma pausa. Não queria saber. Filho de um reparador de barcos, de origem humilde, Benbarek encontrara na bola de futebol o seu refúgio.

 

A escola não o impressionava. Não era bom aluno. Até o poderia ter sido mas nunca foi uma prioridade, nunca lhe deu a atenção que pudesse merecer. Vivia a vida a duas dimensões: jogar descalço na rua e tomar banho no mar.

 

O USM Casablanca foi o primeiro clube a reparar no talento de Benbarek, quando este ainda atuava no Idéal. Seduzido pela qualidade técnica do adolescente, que jogava de igual forma com os dois pés, ofereceu-lhe 20 francos por mês e um trabalho numa bomba de gasolina.

 

O primeiro passo para o estrelato estava dado. Agora não havia como impedir o sucesso.

 

Interesse europeu

 

Casablanca tornou-se demasiado pequena para controlar o génio de Benbarek e os primeiros olheiros de clubes franceses – na década de 30, Marrocos era território gaulês – começaram a aparecer. O Marselha tomou a dianteira.

 

Era impossível não reparar no craque. Pela qualidade técnica e pelo tom de pele mais escuro do que o habitual, «quase de senegalês», que lhe valeu a alcunha de Pérola Negra pela imprensa. Estávamos em 1938 e a guerra já se vislumbrava ao fundo mas nem assim o interesse foi atenuado.

 

A primeira proposta do Marselha foi recusada. Benbarek não se quis precipitar, sentiu que a fasquia ainda estava baixa. Tinha razão: pouco tempo depois, a 28 de junho, o clube do sul de França pagou 44 mil francos franceses ao USM Casablanca para levar consigo o Pérola Negra.

 

Em Marselha, o único arrependimento foi Benbarek não ter chegado mais cedo. O jornal Paris-Soir considerou mesmo que o marroquino era a contratação de maior requinte feita em África e lamentou que não tivesse chegado a tempo de ajudar a França no Mundial-1938.

 

 A seleção e o regresso a Marrocos

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Larbi Benbarek não demorou muito a provar a qualidade que tinha e a fazer por merecer a primeira chamada à seleção francesa, mesmo com o pormenor de não ter, oficialmente, a nacionalidade gaulesa.

 

O primeiro jogo com os bleus foi cinco meses depois, em Nápoles, com a Itália de Mussolini, na altura bicampeã mundial. Com um público hostil, Benbarek foi um de dois jogadores fortemente vaiados no início, devido à cor da pele. A reação não deixou mossa, com o futebolista a responder cantando a Marselhesa a plenos pulmões.

 

Poderia ter sido apenas um pormenor, na derrota por 0-1, mas marcou a diferença para o futuro. A imprensa nacional reparou, escreveu-o e garantiu que o jogador se tornasse rapidamente num dos favoritos do público.

 

Na época seguinte, com o deflagrar da II Guerra Mundial, Benbarek foi apanhado no meio de pormenores. Como não tinha nacionalidade francesa oficialmente, não podia ser mobilizado para combater na guerra. Mas como as equipas estavam a ficar sem jogadores, não teve outra solução que não fosse regressar a Marrocos, para jogar pelo US Marocaine.

 

À espera da vitória dos aliados

 

A melhor fase da carreira de Benbarek foi destruída pela guerra. Até 1945, foi obrigado a jogar num patamar inferior, aguardando impacientemente pelo fim do conflito e pelo regresso dos principais campeonatos europeus, sobretudo o francês.

 

Quando isso aconteceu, assinou pelo Stade Français, no meio de uma iniciativa do presidente de juntar várias estrelas do campeonato no ano do regresso da competição. Durante três anos, onde foi treinado pelo conterrâneo Helenio Herrera, Benbarek continuou a demonstrar que quem sabe não esquece.

 

E a idade, indiscutivelmente acima dos 30 anos, não foi um problema para o Atlético Madrid em 1948. O clube colchonero abriu os cordões à bolsa para levar a Pérola Negra para o Metropolitano (estádio do Atlético na altura) e partir à conquista do campeonato, que venceu em 1950 e 1951, já com Helenio Herrera como treinador.

 

A transferência para Espanha foi um risco. O regime de Franco não tinha fama de ser simpático com estrangeiros, muito menos com um marroquino de tez negra com fortes ligações a França. Mas Benbarek arriscou e saiu recompensado, tornando-se facilmente numa das maiores figuras na história do clube de Madrid.

 

Aí, tornou-se ainda melhor jogador, garantiu Herrera: «Melhorou assim que chegou porque percebeu que o nível era mais elevado do que aquele ao que estava habituado. E nunca iria permitir ser ultrapassado em talento por outros».

 

A fase decadente

 

A carreira de Benbarek, a caminho dos 40 anos, não terminou sem que antes regressasse ao Marselha, numa etapa marcada pela presença na final da Taça de França em 1954.

 

Foi também nesse ano que, 15 anos e dez meses depois da estreia, disputou o último jogo pela seleção francesa. Se o primeiro encontro foi contra a bicampeã mundial Itália, a despedida haveria de ser feita contra outra campeã mundial em título, a Alemanha Ocidental.

 

«O primeiro Pelé do futebol mundial», de acordo com o jornalista Faouzi Mahjoub, não teve muita sorte no capítulo final. Jogou apenas 27 minutos por culpa de uma lesão muscular e foi obrigado a terminar a carreira profissional, ainda que tenha continuado numa equipa argelina depois disso.

 

O exemplo de Benbarek foi usado pela Europa fora. Havia talento nas colónias africanas e era preciso descobri-lo. Em Portugal, Sporting e Benfica partiram à descoberta de talentos e encontraram estrelas como Eusébio, Coluna ou Hilário.

 

O tiro de partida estava dado, não havia como parar o fenómeno. Mas Benbarek foi votado ao abandono e esquecimento. Ainda se tornou o primeiro selecionador na história de Marrocos, mas na década de 70, quase vinte anos mais tarde, só Pelé lhe valeu, durante uma visita ao país do norte de África em 1976.

 

«Se eu sou o rei do futebol, Larbi Benbarek é o Deus.»

 

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